Reforma política: a única saída para a corrupção revelada pela Lava-Jato

“Arrancar os frutos podres da árvore e manter suas raízes sob o esgoto não irá trazer qualquer modificação substancial. Não há futuro alvissareiro se a seiva que lhe chega à copa continuar a ser o chorume de um sistema servil aos interesses mesquinhos de uma casta de privilegiados que têm o poder de transformar o Congresso Nacional no seu covil particular de gárgulas”.

Por Gustavo Freire Barbosa, em Justificando

Em uma crônica sobre a globalização e seus efeitos no meio ambiente, Eduardo Galeano revela o que está por trás do falacioso chavão de que somos todos os grandes responsáveis pelo exaurimento dos recursos naturais do planeta. Atenta o escritor uruguaio para o fato de que a brutal maioria desses recursos é explorada pelos grandes conglomerados empresariais, desde a água usada no agronegócio baseado na monocultura extrativista voltada à exportação até o minério extraído das minas do leste do Congo, cujo comércio é intermediado por milícias que vendem matéria prima para a fabricação de produtos de alta tecnologia como laptops e aparelhos celulares.

Uma vez que nós, bem nutridos consumidores e consumidoras, estamos na escala de consumo, tendemos a ignorar ou a ver com desinteresse as condições em que as mercadorias que adquirimos foram produzidas, como bem explicou um velho filósofo alemão em sua principal obra: assim como o sabor do trigo não nos diz nada sobre quem o plantou, tampouco esse processo nos revela sob quais condições ele se realiza; se sob o açoite brutal do feitor de escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista.

Seguindo essa a lógica, o geógrafo britânico David Harvey costuma fazer em suas palestras e livros a seguinte reflexão: por qual razão nos regemos pelo imperativo moral de nos preocuparmos com o bem-estar das pessoas ao nosso redor mas somos indiferentes àquelas que produziram os bens que consumimos, não nos interessando, por exemplo, se foram feitos sob condições de trabalho escravo e de desrespeito a sua dignidade?

A ocultação dessas estruturas, de onde brota e se desenvolve a cadeia de acontecimentos que na ponta da lança nos chega aos sentidos, leva à conclusão certeira de Galeano: responsabilizar todos de forma indiscriminada é uma maneira de, simplesmente, não responsabilizar ninguém. Em outras palavras, joga-se na conta do micro para safar o macro. Não interessa se o agronegócio e a indústria [d]e mineração concentram juntos 82% do consumo de água, restando apenas 4% para o consumo direto, é você o responsável pela escassez de água no mundo por não fazer xixi durante o banho.

A fórmula é semelhante no que diz respeito à narrativa dos processos eleitorais no Brasil. A Operação Lava-Jato vem nesse sentido sendo bastante pedagógica ao demonstrar as evidências de uma democracia sequestrada pelo poder econômico, onde as três maiores candidaturas nas últimas eleições presidenciais receberam vultosas somas dos mesmos conglomerados empresariais e 70% da Câmara dos Deputados foi financiada por apenas dez empresas – incluindo a OAS, Andrade Gutierrez, Odebrecht, UTC e Queiroz Galvão, todas investigadas e acusadas de repassar propinas em troca de contratos junto à Petrobrás.

Enquanto menos de uma dúzia de empresas elegem mais da metade da Câmara dos Deputados, boa parte da população brasileira segue sub-representada. É o caso de indígenas e quilombolas, trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos, mulheres, integrantes do segmento LGBT, etc. É natural e esperado que o poder econômico não se interesse em financiar bandeiras que não se alinhem à satisfação de sua sanha predatória por lucros cada vez maiores. Cientes de que disputar o Estado é uma estratégia essencial para seus desígnios, enchem os alforjes de campanhas de candidatos que, uma vez diplomados, se prestam à inglória e anti-republicana função de cães de guarda dos interesses de seus patrocinadores.

A Lava-Jato expôs as entranhas de esquemas que, segundo informações de delatores e de planilhas do departamento financeiro da Odebrecht, tiveram início ainda na década de 80, abrangendo um sem número de parlamentares das mais diversas siglas e acabando por mostrar o óbvio: a corrupção é um problema sistêmico e estrutural que se baseia, sobretudo, na forma de organização do nosso sistema político, eleitoral e administrativo que permite até certo ponto ingerências nada democráticas por parte de oligopólios empresariais financiadores de campanhas políticas.

Em nota, a própria Odebrecht reconheceu, no contra-fluxo dos nossos meios de comunicação empresariais, o trunfo da Lava-Jato em revelar “a existência de um sistema ilegal e ilegítimo de financiamento do sistema partidário-eleitoral do país”. A lista da empreiteira apreendida por ocasião da 23ª fase da operação contendo nomes de mais de duzentos agentes políticos de diferentes partidos e cores ideológicas seguidos dos respectivos valores que teriam recebido indica exatamente a dimensão estrutural da corrupção em nosso país, por mais que a lista em si esteja longe de incriminá-los de alguma maneira.

Assim, não há solução efetiva para lidar com a corrupção endêmica que não passe por uma reforma política que, além da inegociável proibição do financiamento empresarial de campanhas, possibilite a criação de novas institucionalidades de modo a, no mínimo, mitigar a crise de representatividade que assola as relações entre o parlamento e a sociedade.

Paralelamente, como forma de intensificar o processo de legitimação social de nossas instituições democráticas, é imprescindível a adoção de medidas democratizantes do Poder Judiciário, quebrando com privilégios e paradigmas elitizados de membros da magistratura e possibilitando o acesso à justiça em suas dimensões sócio-culturais, integrando-a ao mundo real e a retirando do fetiche manualesco dos dogmas de gabinete. Talvez seja esta a melhor maneira de trazer ao Poder Judiciário uma real compreensão sobre a importância do respeito a direitos e garantias fundamentais, vilipendiados com uma frequência preocupante no cotidiano do nosso sistema de justiça e também pela Lava-Jato, conforme vêm apontando juristas, estudiosos e mais recentemente os ministros Marco Aurélio Mello e Teori Zavascki.

É por essa razão que criticar a condução da Lava-Jato, que vem tratando garantias fundamentais com um preocupante menoscabo, espetacularizando o processo penal e promovendo o populismo judiciário ao expressamente condicionar a atuação jurisdicional às reações da opinião pública, não significa o posicionamento favorável a práticas corrupção e tampouco o não-reconhecimento de suas virtudes. Como já colocado, a Lava-Jato trata sobretudo das nefastas influências do poder econômico no nosso sistema político, eleitoral e administrativo, ainda que setores da sociedade, direcionados pelos meios de comunicação hegemônicos, ainda não tenham percebido. Arrancar os frutos podres da árvore e manter suas raízes sob o esgoto não irá trazer qualquer modificação substancial. Não há futuro alvissareiro se a seiva que lhe chega à copa continuar a ser o chorume de um sistema servil aos interesses mesquinhos de uma casta de privilegiados que têm o poder de transformar o Congresso Nacional no seu covil particular de gárgulas.

Portanto, empunhar um discurso moralista contra a corrupção – expediente trágico, ineficiente e até desonesto, segundo nos mostram experiências históricas como a de Carlos Lacerda – ignorando as origens estruturais de sua prática e a necessidade de uma reforma política que a ataque em sua gênese, será tão útil quanto uma bicicleta para um peixe. Dificilmente veremos da mídia comercial o comprometimento com a implantação de uma agenda que objetive abrir mão do verniz moral e individualista conferido cotidianamente a propinas, caixas dois e contas em paraísos fiscais, mirando no micro para livrar o macro e, consequentemente, mantendo em pleno funcionamento as engrenagens responsáveis por todas estas distorções.

Da Operação Mãos Limpas, declarada inspiração de Sérgio Moro para a Lava-Jato, abriu-se espaço para a eleição de um dos mais corruptos, caricatos e fanfarrões políticos conservadores dos últimos tempos, o magnata Sílvio Berlusconi. É muito provavelmente o que nos aguarda se não deixarmos de encarar a Lava-Jato como a guilhotina da redenção e ignorarmos a oportunidade que temos para franquear ao debate um grau de politização até então inexistente, demonstrando que o potencial transformador do sistema passa indiscutivelmente por uma reforma política que se preocupe com o futuro e não só com o presente.

Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Comments (1)

  1. Com todo respeito a opinião do dr. Gustavo Barbosa, penso que o país carece de todas as reformas, não apenas a política. Se algum dia eu fosse descoberto como um guru e indagado sobre qual deveria ser a primeira e mais importante reforma, eu afirmaria, sem delongas: EDUCAÇÃO DE QUALIDADE.

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