O impeachment incentivado pelas altas burocracias pública e privada

As grandes corporações, em sua disputa pelas economias fundamentais, a verde e a marrom, dobram as pernas do governo de Dilma Rousseff e são chave fundamental para entender o impeachment

Por Luciana Gaffrée, Rel-UITA

O Brasil é importantíssimo para a expansão dos interesses das transnacionais porque possui as duas economias fundamentais, a verde e a marrom. Buscando entender esta relação entre política e economia na situação atual do governo Dilma, a Rel-UITA entrevistou João Roberto Lopes Pinto*, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2004), com doutorado sanduíche pela Universidade de Nanterre (Paris X) e coordenador do Instituto Mais Democracia, organização que monitora grandes corporações que atuam no Brasil e suas conexões com o estado brasileiro, com a Lava Jato e um possível impeachment.

– De que se trata o trabalho da organização Mais Democracia?

– A organização Mais Democracia busca entender os laços e as conexões dos grandes grupos privados com o estado. Em 2013, fizemos um estudo sobre os responsáveis pelas obras da copa do mundo e das Olimpíadas do Rio de janeiro, onde já apontávamos indícios muito claros de cartel e de tráfico de influência, envolvendo as maiores empreiteiras do país. Essas empresas são a Odebrecht, a Andrade Gutierrez, a Camargo Corrêa, a Queiroz Galvão e a OAS (S.A).

Portanto, a Lava Jato não é surpresa para nós.

– Por quê?

– Porque essa forma de corrupção é uma das características do estado capitalista contemporâneo, não só no Brasil, mas também em países como a Espanha, a Inglaterra, o Japão e agora a Alemanha. Isto é, o capital monopolista, essas grandes corporações privadas se encastelam, se articulam, se conectam com a alta burocracia do estado. E essa conexão se faz em segredo, fora do alcance da democracia. Por isso, pedimos Mais Democracia, para a democracia chegar nesse andar de cima da estrutura do estado.

– Então não são os partidos, mas as grandes corporações?

 – Exatamente. A corrupção não vem dos partidos. Eles na verdade amplificam algo que já está inscrito na estrutura do estado, por conta dessas conexões. Isso está muito evidente agora no caso da Lava Jato. Obviamente que os partidos não são vítimas, nem inocentes. Mas, a estrutura do estado é uma estrutura comprometida na medida em que nesse alto patamar dos órgãos centrais, como o Banco Central e o Ministério da Fazenda, a democracia não tem acesso, não há transparência e nem controle central.

Os partidos, ao assumirem os governos, nem denunciam nem expõem esses vínculos. Porque na verdade passam também a articular com essa estrutura, ou em benefício do partido, em benefício pessoal, ou da cúpula partidária.

Temos uma tríade: A alta burocracia, os grandes capitais e os partidos políticos.

– O que você quer dizer com alta burocracia do estado?

 –  A alta burocracia são os cargos altos dos aparelhos fundamentais do estado. Porque você pode ter a alta burocracia do Ministério da Saúde, essa não importa muito. Agora, a alta burocracia do Ministério da Fazenda essa sim interessa. Não é uma questão apenas de cargos altos. Estamos falando do primeiro escalão de determinados órgãos do estado com papel central na economia.

Estamos falando, por exemplo, de toda a diretoria do BNDES, hiperconectada com a alta burocracia dos grandes grupos privados que atuam no país e, obviamente, muitos deles conectados também com o capital estrangeiro.  Da mesma forma acontece na Petrobras, Eletrobrás, etc.

– E com que objetivo os grandes capitais se vinculam com as altas burocracias do estado?

– O objetivo é o de criar conexões com os centros de decisão, que cuidam das decisões econômicas, e que estão totalmente fora do alcance da democracia, do controle social, da transparência. Até porque a legislação não os atinge, já que o judiciário também está comprometido, pois são articuladas também conexões com a alta cúpula do judiciário.

Temos uma tríade: a alta burocracia pública, a alta burocracia privada e a cúpula dos partidos políticos que chegam ao governo. E é isso o que temos hoje nos estados capitalistas contemporâneos, e infelizmente essa é uma discussão que passa ao largo pela grande mídia.

– E a cúpula do PT está comprometida com essa estrutura que você acabou de explicar?

 – É inegável que o partido também estabeleceu esses elos junto com a alta burocracia do estado e com as grandes corporações, se beneficiando dessas articulações e se comprometendo com essa lógica corrupta. Mas, mesmo em relação ao Lula, que é liderança máxima, não há nenhuma prova de crime, há indicações, porém nada que prove essas conexões. No meu entendimento, dentro desse modelo de estado contemporâneo, essa tentativa de tirar a Dilma revela conflitos no interior das corporações que atuam no Brasil.

O impeachment goela abaixo: A nova agenda será profundamente neoliberal

– Como assim?

O processo do impeachment está sendo empurrado goela abaixo, porque não há um fundamento, nem objetivamente há crime de responsabilidade por parte da presidente Dilma que seja realmente configurado. São denúncias que não se sustentam. A mídia atua claramente de maneira muito despudorada, abertamente em favor do impeachment. Houve uma demonstração de força agora, com a manifestação de sexta-feira 18 de março, contra o golpe. Há um sentimento também entre os que são favoráveis ao impeachment de que essa corrupção é sistêmica e deveria ser combatida de maneira geral.

– O vice-presidente Michel Temer está fazendo conversações com o PSDB para um eventual futuro governo do PMDB, caso a presidenta Dilma seja impedida.  

– E, nessas conversas, querem aplicar no Brasil uma agenda profundamente neoliberal, que aponta para a flexibilização dos investimentos na região do pré-sal, para a abertura de sua exploração aos capitais estrangeiros, flexibilizando a compra das terras, por exemplo, também flexibilizando a lei geral das estatais, apontando para um processo de privatização, mantendo a presença do estado, mas agora como sócio minoritário, junto com os grandes capitais privados.

Olhando essa agenda do PMDB com o PSDB a gente vê que existem grandes interesses de grandes grupos.

– Quais seriam esses grandes interesses?

– Há setores da alta burguesia brasileira que ganhariam muito com uma abertura maior para os investimentos estrangeiros. A Odebrecht foi um grande grupo privado que teve uma relação muito estreita com o governo Lula. Só que a Odebrecht, fonte de muitas dessas ações de corrupção, é uma empresa eminentemente doméstica, ela não é conectada ao capital estrangeiro. É uma grande empresa, de caráter monopolista, mas não traz na sua estrutura relações com o capital estrangeiro, diferentemente de outros grupos como o Itaú e a Camargo Corrêa, que estão mais conectados com o capital estrangeiro.

Pareceria que a disputa que ocorre no Congresso se dá também no interior desses grandes grupos privados. Alguns mais conectados aos capitais externos, portanto mais interessados em uma maior abertura econômica, seja das estatais, seja de terras do Brasil, etc.

Porque, hoje em dia, você sabe que a terra não é só a questão da agricultura e do plantio, mas também da biodiversidade, que hoje está virando ativo, e que interessa aos grandes fundos de investimento internacionais.

Então, há uma tentativa de assalto, uma nova onda de investimentos estrangeiros que buscam quebrar as restrições presentes na estrutura legal brasileira, seja no petróleo, nas estatais, e propriamente com relação à posse da terra.

Estão dobrando as pernas do governo: Impeachment visando maior entrada dos investimentos estrangeiros

– Então, não seria um conflito entre o PT, o PSDB e o PMDB, mas sim um conflito com as altas burocracias?

Sim, é um conflito de maior envergadura, de maior proporção e escala, e que tem a ver, de fato, com os grandes interesses das grandes corporações. Por isso, o processo é complexo. E a prisão de Marcelo Odebrecht não pode ser explicada se não for por aí. Não existe um mundo econômico com sua lógica própria por um lado e, por outro, a lógica política que está emporcalhada e corrupta. Essa visão está muito longe da realidade.

Essas conexões com esses grupos são históricas, não começaram no governo Lula. A Odebrecht já tinha relação com a Petrobrás, desde a época da ditadura, quando o ditador Geisel começou a desenvolver o setor de petroquímica. A mesma coisa com as privatizações do FHC, do PSDB. As privatizações mantiveram grandes grupos domésticos no controle destes setores importantes em mineração e siderurgia.

Com o governo Lula, essa relação com o capital nacional voltado à produção de commodities se reforçou. Resta saber se foi uma estratégia deliberada ou algo que tem que ver com a própria história do capitalismo recente do Brasil. Há também a atual demanda chinesa por serviços e produtos do agronegócio, aço e tudo o mais, o que vinculou ainda mais esses grupos exatamente para fornecer esses produtos dentro de um aquecimento do mercado internacional muito forte. Os grupos mais ligados com o capital estrangeiro como, por exemplo, o Itaú, o Unibanco e a Camargo Corrêa, também foram fortemente beneficiados no governo Lula.

– Então a forma como o PT dialogou com esses grandes grupos de capital, principalmente de capital estrangeiro, gerou conflitos?

– Por um lado podemos ver uma política do PT visando proteger os interesses mais domésticos, por exemplo, em relação à regulação do petróleo, ao novo marco regulatório do regime de partilha na região do pré-sal e o privilégio da Petrobrás como operadora única no campo do pré-sal, ou pelo menos operando em 30% dos campos do pré-sal. Por outro, também é fato que o governo está cedendo.

Na semana passada o governo cedeu com relação à Lei Geral das Estatais. A proposta de flexibilização da atuação da Petrobrás já foi aprovada no Senado com apoio do governo. Ou seja, estão dobrando as pernas do governo Dilma. Você vê o PT se curvando a essas proposições que são francamente favoráveis a essa nova onda de investimentos estrangeiros.

O Lula é peça chave: “Preso sou vítima, morto sou mártir e livre sou presidente”

– Investimentos estrangeiros pesados no Brasil querem liberdade para atuar e o PT representaria ainda algum limite para isso, essa é a questão?

Exatamente. O Brasil sem dúvida nenhuma é uma fronteira importantíssima para a expansão dos interesses das transnacionais e dos grandes investimentos, e possui as duas economias fundamentais, a verde e a marrom. O Brasil desponta na economia do petróleo, poluente, mas também no campo da nova economia, que é a economia verde, a economia de clima.

Essa importância econômica do Brasil leva a uma acirrada disputa por esse mercado. E, ao que tudo indica, o PT não seria viável para os novos planos de investimento, que caminham para uma flexibilização plena. Portanto, há grandes interesses e investidores que não querem o PT.

E aí o Lula é peça chave porque ele é a única liderança no país hoje. A Marina Silva está tentando se habilitar, ela corre por fora. Entretanto, o Lula, mesmo com a ameaça de ser preso, aparece com 18% de intenções de voto.

O Lula soltou uma frase recentemente: “preso sou vítima, morto sou mártir e livre sou presidente”. De fato, essas forças de oposição sabem que o PT tem grandes chances de permanecer no governo, porque ainda não há quem faça frente ao Lula, se ele se candidatar em 2018.

Impeachment ou golpe frio? Uma disputa pelas economias fundamentais, a verde e a marrom

– Mas, se já estão dobrando as pernas do governo, por que querem um impeachment?

– Por mais que o PT tenha se dobrado, e muito, aos interesses desse grande capital, ele não é visto com confiança para esse novo momento de investimento em que o Brasil se apresenta, como uma nova fronteira de investimentos pesados, seja por conta do pré-sal, seja por conta da biodiversidade. É isso o que está em disputa.

E o PT é visto como um partido que não garantiria plenamente a segurança desses capitais externos, seja pela Lei Geral do Petróleo, seja por ligações muito próximas com os movimentos no campo, dificultado a abertura para o investimento no campo, embora o PT tenha, por exemplo, liberado os transgênicos. É um governo que trabalha com a ideia de criar reservas nacionais, que buscava que a Petrobrás comprasse equipamentos de empresas nacionais e criou algumas restrições.

– Daí surge o impeachment, ou você o chamaria de golpe?

– O impeachment é uma figura jurídica prevista na constituição, porém o problema é que, no caso da Dilma, não há evidência ou prova de crime de responsabilidade, mesmo após dois anos de intenso bombardeio contra o governo. Só que destituir uma governante democraticamente constituída é golpe.

*João Roberto Lopes Pinto possui doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2004), com doutorado sanduíche pela Universidade de Nanterre (Paris X). Atualmente é professor de políticas públicas no Departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e de teoria política do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Estando também como coordenador do Instituto Mais Democracia. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Ciência Política.

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