Iniciam-se os trabalhos para o Diagnóstico das violações de direitos dos atingidos em Sobradinho, na Bahia

Entre os dias 10 e 12, pesquisadores do IPEA estiveram em Juazeiro, na Bahia, para começar os trabalhos do que irá desenhar a realidade deixada por uma barragem no Brasil, pesquisa inédita em todo o mundo

Mab Vale do São Francisco

E foi justamente na semana da Jornada Nacional de Luta dos Atingidos por Barragens que se iniciaram os trabalhos para o que deverá resultar no maior e mais completo diagnóstico de divida social à atingidos por barragens no mundo até agora: a implantação da Metodologia para o Diagnóstico Social, Econômico e Cultural dos Atingidos por Barragens, elaborado e aplicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em parceria com o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens).

“A realização dessa pesquisa será muito importante para comprovar o que o MAB vem denunciando ao longo de seus 24 anos, da ausência do Estado na construção de barragens, e a omissão do Estado beirando a conivência com as violações de direitos humanos no processo de construção de barragens”, aponta Marta Rodrigues, da Coordenação Regional do Movimento dos Atingidos por Barragens no Vale do São Francisco.

O que é

A Metodologia para o Diagnóstico Social, Econômico e Cultural dos Atingidos é uma iniciativa inédita no país e no mundo. Uma reivindicação histórica do movimento, a pesquisa servirá para quantificar e qualificar a dívida social do Estado com as populações atingidas ao longo da história de construção das barragens no Brasil. A primeira implantação da Metodologia será realizada com os atingidos pela Barragem de Sobradinho, na Bahia, que criou o segundo maior lago artificial de toda a América Latina na década de 70, atrás apenas da Logo Titicaca, no Peru.

Serão realizadas entrevistas com famílias atingidas direta e indiretamente, personalidades das comunidades que acompanharam a construção e a pesquisa em documentos da época. Posteriormente o diagnóstico vai identificar a realidade das comunidades atingidas atualmente e as necessidades que passam as famílias, como falta de moradia adequada, dificuldades de acesso à saúde e educação, saneamento básico e outras demandas. Com o relatório final, será possível elaborar e propor uma política para a região.

Início do trabalho

Entre os dias 10 e 12 deste mês, pesquisadores do Ipea visitaram a cidade de Juazeiro, na Bahia, para iniciar o trabalho. Duas pesquisas serão realizadas concomitantes durantes os quase dois anos de projeto: a quantitativa, que exige aplicação de questionários em campo; e a qualitativa, que provêm de estudos em documentos das mais diversas fontes. A visita teve como objetivo visualizar o território e iniciar a elaboração do chamado ‘desenho amostral’ da pesquisa, uma espécie de mapa que delimita as comunidades onde a pesquisa será aplicada.

Ana Paula Moreira, coordenadora da pesquisa, explica que esses dias de trabalho em Juazeiro foram o ‘ponto zero’. “Apesar de termos feitos conversas anteriores a este momento, como a realização do pré-teste, algumas questões vão aparecendo apenas com o trabalho de campo. Por isso precisamos ter novas conversas, para tentar entender qual nosso papel nesse momento do campo, quais os obstáculos, as dificuldades”, explica a pesquisadora. Os principais desafios da equipe de pesquisa serão a grande extensão do território, com oito municípios (Barra, Casa Nova, Itaguaçu da Bahia, Pilão Arcado, Remanso, Sento Sé, Sobradinho e Xique Xique) às margens do Rio São Francisco, e a dificuldade em encontrar documentos relacionados com a construção da barragens, já que estes não foram garimpados.

Moisés Borges, bolsista do Ipea para o Diagnóstico, destaca um importante indicativo que já está sendo apontado pela pesquisa, ainda no início de seus trabalhos, a falta de acesso à serviços básicos pelos atingidos. Ao buscar informações para montar o desenho amostral, é difícil encontrar os atingidos pela Barragem de Sobradinho, já que eles não têm luz, água ou outros serviços.”Eles não estão em cadastros públicos, o correio não chega nas comunidades, eles têm que dar outro endereço. Eles não existem nos seus municípios, não são reconhecidos sequer como cidadãos de direito, não têm endereço e acesso à políticas sociais”, lamenta.

Dentro de quatro meses, já se espera ir a campo para a aplicação dos questionários e entrevistas. Para isso, inicia-se nas próximas semanas a divulgação da aplicação da pesquisa nos municípios atingidos e a sensibilização das comunidades que serão pesquisadas.

De acordo com a coordenadora Ana Paula, essa etapa é importante para que as pessoas que trabalham na pesquisa cheguem ao campo com mais tranquilidade e sejam bem recebidas. Além disso, a pesquisadora reforça os cuidados que devem ser tomados com essa população, que já teve direitos violados por muitas entidades e empresas ao longo destes quase 40 anos.

“Devemos ter o cuidado de informar a todo momento o que estamos fazendo pois estas pessoas já foram atingidas por outros processo. Elas devem estar seguras e confiantes”, espera. Além de Moisés, já está contratado outro bolsista-pesquisador e novas cinco contratações serão finalizadas nos próximos dias. Cada pesquisador será responsável por uma equipe de campo. No total, serão mais de 30 pessoas trabalhando no Diagnóstico.

Participação da sociedade civil

Já uma primeira ação do grupo de pesquisa foi realizada no dia 11, sexta-feira, quando a Metodologia foi apresentada ao Colegiado Territorial do Sertão do São Francisco, ligado à Secretaria da Fazenda do Governo da Bahia. Conhecido como Território, é um espaço de política territorial que discute o desenvolvimento e propostas para que o Governo da Bahia pense suas as ações na região com base nas demandas e realidade local. A identificação local dos atingidos e os problemas vividos pela população são importantes contribuições do Colegiado para a pesquisa.

“O Território é um parceiro para nós por conhecerem bem o território, o chão onde pisam. São também referências políticas importantes e ajudam a aproximar a pesquisa da realidade concreta da região”, afirma o bolsista Moisés.

Para o coordenador do Colegiado e membro do Instituto Mata Branca, Edmilson dos Santos Nascimento, a pesquisa deve resolver uma dificuldade frequente do Território, de identificar de forma concreta números e problemas da população para que possam ser pensadas propostas de desenvolvimento para a região. “O resultado da pesquisa vai nos dar um direcionamento, nos dar base para pensar a nossa região num formato que a gente possa ter recursos direcionados para compensar uma ação que gerou problemas, para compensar as pessoas que moram e vivem dessa região”, reforça.

Problemas de hoje que começaram ‘ontem’Edmilson aponta uma série de problemas advêm da Barragem, enfrentados atualmente pelas diversas organizações que compõe o Colegiado como questões ambientais, problemas para o trabalho de pesca e principalmente questões fundiárias. “Na época se discutiu a implantação da barragem e as pessoas foram deslocadas, mas a problemática da terra só aumentou nesse processo”, relata.

Conforme conta Elson de Oliveira, membro da SASOP, organização de assessoria a organizações populares que atua na região, a questão fundiária afeta não só as famílias que deslocadas que até hoje não receberam indenização como também toda a comunidade no entorno do lago. Ele explica que fazendeiros e empresas produtoras de fruta na região chegam ao ponto de impedir o acesso ao rio e à água, até mesmo para atracar seus barcos. “São terras de governabilidade da Chesf, que estão sendo dominadas e a empresa não faz nenhum tipo de ação para coibir isso”, denuncia.

Ângelo Neri é Agente Territorial da Secretaria de Planejamento do Governo da Bahia e membro do Território. Ele afirma que o resultado da pesquisa pode ajudar a elaborar o Plano de Desenvolvimento da região, base para políticas públicas. “O Plano é usado para construir o PPA da Bahia, que por sua vez é usado para fazer políticas públicas para a região. Tenho boas expectativas com a pesquisa”, diz.

O coordenador do Colegiado, Edimilson, reforça que o grupo espera participar e contribuir  com a pesquisa para que as entidades que têm atuação de forma direta com as famílias atingidas possam ser ouvidas para unir informações e enriquecer a pesquisa.

Reconhecimento das violações e direitos

No ano de 2010, foi publicado pela Presidência da Republica o decreto 7.342, reconhecendo o conceito de atingidos por barragens e instituindo o cadastro socioeconômico para a população. Ainda assim, o MAB denuncia que o público continua sem ter os seus direitos reconhecidos, inclusive de participar e ter acesso à políticas públicas. Assim, a militante Marta comemora a realização do Diagnóstico.

“São dois anos de espera pela execução da metodologia e o início dos trabalhos é uma grande vitória pois sabemos que tem uma ala conservadora no Estado brasileiro que não quer que pesquisas como essa sejam realizadas. Esse é mais um passo do reconhecimento dos atingidos por barragens no Brasil”, anima-se.

O bolsista Moisés afirma que está animado com a importância social da pesquisa, que diz vir de encontro com a missão do IPEA: a avaliação e proposição de políticas públicas. “Qualquer pesquisador que ingressar na pesquisa deve ter essa mesma motivação, porque é uma população de fato esquecida pelo Estado, pelas políticas públicas”, convida.

Após o término da pesquisa e a divulgação de seu resultado, se espera que os problemas sociais dessa população ganhem visibilidade na região e em todo o país.

“É um momento em que o Estado está dizendo: ‘tenho uma dívida com essas pessoas, elas perderam suas casas, tiveram suas vidas destruídas’. Tem a reparação de questões financeiras mas também de todo o patrimônio imaterial que foi perdido com a Barragem. O trabalho ganha uma perspectiva ainda maior”, comemora Ana Paula.

Imagem: Reprodução do MAB

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