Não adianta flambar titica com especiarias. Seguirá sendo titica, por Leonardo Sakamoto

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A representação brasileira no Parlamento do Mercosul aprovou o projeto do senador Álvaro Dias (PV-PR) para substituir o termo “agrotóxicos” por “produtos fitossanitários” na legislação que trata do tema. O PL 680/2015 precisa passar ainda por comissões no Congresso Nacional para ser aprovado.

A proposta tem por objetivo padronizar a nomenclatura com as normas do Mercosul. Mas, em sua justificativa, o senador do Partido Verde afirma que, “no Brasil, que deveria cada dia mais valorizar a produção rural brasileira, o uso termo agrotóxico é utilizado de maneira ardilosa para denegrir (sic) a qualidade da produção rural brasileira. O simples uso da palavra agrotóxico moldurando os produtos fitossanitários, já representa uma campanha de marketing negativa para a produção rural brasileira”.

Alguns vão dizer “é só um nome, o que importa”? O problema é que a escolha das palavras para designar algo não é um processo aleatório. Ela é resultado da visão de mundo de uma sociedade ou, com frequência, de um grupo que tenha mais força para impor ou alterar um significado ao longo do tempo. Sim, o significado de algo também pode ser um processo de escolha política.

A língua é um troço vivo. Vai mudando conforme o tempo e influências, como a cultura e a tecnologia. Portanto, vejo com alegria termos “deletado” do convívio cotidiano o ato de chamar alguém de “tigrão”, o que era comum na época em que minha mãe soltava gritinhos histéricos para Roberto e Erasmo na porta do teatro Record.

Mas há certas palavras, que são substituídas para tornar a vida de alguns grupos de pessoas mais fácil, que fazem falta pela sua objetividade e simplicidade. Por exemplo, “demissão” e todas as variações do verbo “demitir”.

Muitas empresas não dizem que demitiram milhares de empregados durante a crise. Falam que “descontinuaram os contratos” ou “interromperam o relacionamento”. Parecem querer, dessa forma, se livrar do ônus negativo da ação.

Mas, em verdade, seguirá sendo um “pé na bunda”, uma “degola”, um “chute no traseiro” e tantos outros sinônimos populares criados para explicar uma demissão.

Aliás, as empresas não falam mais em “empregados”. Agora são “colaboradores”. A explicação mais simples surgiu de outro colega de RH de uma grande empresa: “isso foi para botar no mesmo pacote o pessoal que é contratado como CLT e quem é terceirizado ou integrado mas, na prática, também é empregado nosso”. Enfim, todos colaboram com o lucro do patrão, portanto faz sentido.

Mas algumas coisas deveriam continuar sendo chamadas pelo que realmente são.

O Brasil, um dos líderes em uso de agrotóxicos e pesticidas, continua sendo mais rápido para aprovar produtos químicos que trazem lucro a poucos e lento para tirá-los de circulação – quando fica provado que causam danos a muitos. Ou para controlar a sua presença no meio ambiente e seus impactos nas populações locais.

A justificativa surrada de que temos a maior área agricultável do mundo, com clima que contribui com pragas e doenças e, por isso, a montanha de veneno, não se justifica por si. Por essa lógica estranha, que ignora a aplicação de leis e regras, seríamos um dos países com maior número de escravos contemporâneos, dado o tamanho da agricultura e da economia. O que está longe de ser verdade.

Muitos agrotóxicos proibidos nos Estados Unidos, na União Europeia correm soltos – literalmente. Da mesma forma que o lobby que defende os produtos. E o problema não são apenas os proibidos. Talvez um pepino maior sejam os permitidos usados sem o devido cuidado e em quantidade maior que o meio pode suportar.

Então, aproveitando o ensejo de mudança criado pela lei citada no início deste texto, gostaria de propor outras alterações em como algumas coisas são chamadas para ajudar a melhorar a nossa imagem dentro e fora:

O que era “agrotóxico”, passa a ser “produto fitossanitário”.

O que era “trabalho escravo”, passa a ser “trabalho sob remuneração alimentar”.

O que era “desmatamento ilegal”, passa a ser “retirada não comunicada de cobertura vegetal”.

O que era “latifúndio improdutivo”, passa a ser “investimento à espera de rentabilização”.

O que era “trabalho infantil”, passa a ser “educação laboral formativa de caráter”.

O que era “genocídio indígena”, passa a ser “processo de aculturação”.

E não só. Por que não oficializar por lei que “desentendimento de casal” é uma porrada no rosto da namorada, “corretivo”, um espancamento, às vezes até a morte, de uma criança pelos adultos responsáveis, e “forçar a barra” refere-se às tantas tentativas de estupro parental ou marital que acontecem no seio da família brasileira?

Acolchoando as palavras, talvez elas doam menos em alguém.

A questão é: não adianta flambar, por exemplo, titica com azeite trufado e polvilhar com sal retirado do deserto de Gobi e especiarias do Rajastão. No final, vai continua sendo titica.

 Foto: Fernando Frazão

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