E se as leis sancionadas pelo novo presidente forem declaradas inconstitucionais?

Por André Augusto Bezerra, no Justificando

A noite do 17 de abril de 2016 ficará marcada na memória de muitos brasileiros de modo semelhante ao 31 de março de 1964. Tal como na década de 1960, em pleno século 21, uma chefe de Estado que se encontra no poder sob a legitimidade democrática foi derrubada para que a presidência da república seja ocupada por um desconhecido das massas, mas detentor do apoio de representantes de setores da sociedade (tal como em 1964, alguns bem-intencionados) que o enxergam como mais capaz de exercer a liderança política no atual momento.

Há, por outro lado, diferenças. O golpe sofisticou-se. Não são mais vistos tanques e nem generais gritando pela ordem. O que se viu no 17 de abril foram parlamentares vociferando pela família (do parlamentar, claro), por Deus (pobre Deus e pobre Estado laico) ou até mesmo pelo torturador que se divertia dando choques na vagina de presas políticas durante a ditadura pós-1964.

A maior sofisticação de agora decorre do fato de se falar em aplicação da Constituição. Utiliza-se o instituto constitucional do impeachment para a retirada da presidente da república investida em tal função democraticamente, o que não se fez quando da derrubada de João Goulart.

Tal circunstância, porém, não é apta a elidir a antijuridicidade da derrubada da presidente Dilma. O emprego do impedimento é invocado, em geral, apenas em tese; pouco se fala da aplicação em concreto do instituto, consistente na caracterização de crime de reponsabilidade imprescindível para a respectiva aplicação, até porque, até então, nenhum agente público havia sido sequer investigado pela prática do não-crime de “pedalada fiscal” (fato imputado à presidente como fundamento para o pedido de impedimento).

Os discursos dos parlamentares da noite do 17 de abril deixaram isso claro. Em apenas dois das centenas de pronunciamentos de deputados, as “pedaladas fiscais” tiveram menção prioritária, evidenciando que pouco importava a prática ou não do requisito jurídico do crime de responsabilidade.

Para além da família, de Deus ou do torturador homenageados, o que tem realmente chamado a atenção é o caráter economicista das justificativas em favor da derrubada da mandatária eleita pelo povo. Trata-se de uma circunstância que ficou evidente, não apenas no 17 de abril, mas nos meses que o antecederam, quando a suposta inabilidade da presidente para retirar o país da crise econômica por que atravessa é tida como motivo prevalente para o impedimento.

Nesse ponto, o 17 de abril de 2016 une-se novamente ao 31 de março de 1964. Toda a sofisticação do discurso supostamente jurídico do século 21 não consegue disfarçar os verdadeiros desígnios de elites econômicas: se na derrubada de João Goulart havia um projeto de industrialização pela instalação de multinacionais que não admitiam direitos aos trabalhadores (do contrário não compensaria a entrada delas em um país do terceiro mundo como o Brasil); na derrubada de Dilma há um projeto de retirada dos direitos conquistados ao longo da redemocratização pós-1988 para permitir a expansão do capital em plena crise econômica mundial.

Claro está, portanto, que o obstáculo permanente – independente do ano, da década ou do século – para elites é a democracia (regime marcado pela instabilidade da luta pelos direitos, como tão bem notava Claude Lefort). A estabilidade buscada pelos agentes do sistema econômico requer, neste ponto, um verdadeiro Estado hobbesiano a conceder segurança acima de qualquer liberdade pública (inclusive a liberdade do voto).

Não por outro motivo, os principais setores do mercado estão apoiando o impeachment. Da mesma forma que, em 1964, apoiaram a chegada dos militares ao poder.

O Brasil de 2016, contudo, não é o mesmo de 1964. Tem-se, nos dias atuais, uma Constituição que, apesar de insuficiente, prevê uma série de direitos que garantem a mobilização social contra ações golpistas. Tem-se uma sociedade civil organizada, cujos alguns dos representantes, amparados pela liberdade de expressão constitucionalmente consagrada, já afirmaram não reconhecer no substituto da presidente derrubada uma autoridade legítima. Tem-se, como derradeira exemplificação, um Judiciário independente, cujos membros podem – e devem – decidir pela invalidade de atos dos demais poderes se democraticamente ilegítimos.

Quando se fala em Judiciário pensa-se, primeiramente, na cúpula do poder, o Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda que a corte esteja mantendo extrema cautela na tramitação do processo parlamentar de impeachment, adotando de forma rígida o princípio da tripartição de poderes como teorizado por Montesquieu centenas de anos atrás, nada impede que, após a deliberação do 17 de abril, modifique seu agir: afinal de contas, não se tem mais apenas atosinterna corporis do Parlamento; há uma deliberação do Legislativo que afeta a chefia do Executivo e muda o destino dos votos de milhões de brasileiros nas eleições presidenciais de 2014.

O STF não esgota a relevância da atividade jurisdicional. Quando se fala do Judiciário deve-se também falar dos juízes que formam a base do poder, detentores da possibilidade de declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade dos atos do Executivo e do Legislativo.

Nesse sentido, suponha-se que alguns juízes entendam que, em razão da inconstitucionalidade da retirada da presidente da república, os atos praticados por seu sucessor sejam nulos; por exemplo, que uma lei por ele sancionada tenha o vício de forma (isto é, sancionada por quem não deveria ocupar a presidência da república), de modo a não ser válida. Como, então, ficaria a estabilidade necessária para as próprias elites econômicas poderem expandir seus negócios? Como ficaria a situação do agente que pretende celebrar contratos, mas que não sabe se a lei aprovada sob o novo presidente será considerada válida?

Tais advertências revelam-se necessárias para lembrar que o impeachment, sem a caracterização do pressuposto jurídico do crime de responsabilidade, pode gerar graves consequências não apenas para o sistema político democrático. Pode também gerar consequências gravíssimas para o sistema econômico, mergulhando o país em um verdadeiro caos jurídico, o que prejudicará tanto os setores mais pobres da população (aqueles que historicamente “pagam o pato” nas grandes crises) quanto as próprias elites da economia (a não terem qualquer segurança jurídica em um país governado por quem terá sua legitimidade seriamente contestada).

O voto popular tem que ser levado a sério. Está mais do que na hora de os agentes econômicos aprenderem a expandir seus negócios respeitando a democracia.

André Augusto Salvador Bezerra é Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Mestre (PROLAM) e Doutorando (DIVERSITAS) pela Universidade de São Paulo.

Destaque: Paulo Skaf, presidente da Fiesp, e Michel Temer. Entidade empresarial estaria por trás do programa regressivo defendido pelo vice de Dilma.

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