Jamais imaginei que viveria para ver outro golpe

“É difícil encontrar forças para permanecer resistindo, quando o espaço de resistência ao autoritarismo encolhe cada vez mais. É como se nos faltasse o ar, expulso dos pulmões por um desleal soco no estômago.”

Por Salah H. Khaled Jr., no Justificando

Não posso dizer que já tenha me recobrado do fatídico 17 de abril de 2016. As lembranças deste dia ainda me acompanharão por muito tempo. Não exagero. Algumas pessoas são particularmente sensíveis diante de certos temas, uma vez que tocam de forma muito profunda sua própria história. Eu já era historiador antes do Direito. Gastei boa parte da primeira década deste milênio na linha de frente da educação básica pública. Lecionei História, Sociologia e Filosofia para o ensino médio. Visitei e revistei centenas de vezes com adolescentes nossa história autoritária. Sinceramente pensei que tínhamos deixado para trás os vícios da nossa relativamente recente trajetória republicana. Não contemplava seriamente a possibilidade de que nossa triste propensão para sucumbir diante da tentação autoritária fosse novamente confirmada. Passei a apostar – ainda que com algum nível de reserva – que o projeto constitucional efetivamente tinha chances concretas de consolidação.

Reconheço que talvez eu tenha sido ingênuo por acreditar que o Brasil tinha conseguido uma carta de alforria de sua própria história. Confirmamos nossa triste vocação para a exceção tornada regra. O Estado Democrático de Direito desmoronou como um castelo de cartas diante de uma leve brisa. O que parecia relativamente sólido não era mais do que uma miragem. A legalidade escorreu pelas bordas de um conclave golpista como areia entre as mãos de uma criança. E nós acompanhamos isso em tempo real.

O drama não é só meu. Incontáveis amigos experimentaram o sabor amargo da efusão golpista. Reunimos legiões de pessoas comprometidas com a democracia para resistir ao golpe que se anunciava. Escrevemos conjuntamente uma contranarrativa de resistência democrática ao discurso golpista da grande mídia. Provavelmente jamais conhecerei a grande maioria desses amigos e amigas subitamente unidos por um propósito comum: a defesa da democracia. Separados por um país de dimensões continentais, nos tornamos irmãos e irmãs nos últimos meses.

Foi um esforço incomparável e do qual jamais me esquecerei. É difícil acreditar que tenha sido em vão. Que o único legado que restará dele é o estreitamento de laços entre aqueles que amam a democracia e apreciam a pluralidade que ela permite. Reconheço que não é pouca coisa, mas é escasso consolo diante de um espetáculo verdadeiramente deprimente de violação da legalidade democrática, da Constituição e do Estado Democrático de Direito.

As feridas demorarão a cicatrizar. Não porque este é o mandato específico de Dilma Rousseff (que como já pontuei em outras oportunidades, faz um péssimo governo), mas pelo que representa um impeachment tão ilegalmente consolidado para a jovem República brasileira. Uma democracia estável e respeitosa das regras do jogo – pela qual tantas pessoas morreram nas décadas de chumbo da ditadura civil-militar – acaba de ser lançada novamente aos ventos para renascer como sonho aparentemente inalcançável diante do pesadelo que representa a reiteração de nossa tradição autoritária.

Dirão que exagero na dramaticidade, mas penso que não. A democracia foi literalmente tomada de assalto. Golpeada implacavelmente por forças movidas por um ódio político inédito na história recente e que somente encontra paralelo em 1964 e nos anos posteriores ao golpe. Vamos tratar o tema com seriedade. Sejamos realistas. Podemos deixar de lado os subterfúgios e os estratagemas. Eles não merecem nossa atenção. O que ocorreu no domingo tem pouca ou nenhuma relação com um suposto crime de responsabilidade cometido pela presidente Dilma. Com os refletores apontados para eles e diante dos olhos estarrecidos da nação, tivemos a oportunidade de contemplar a pequenez de nossos parlamentares com precisão microscópica. A tese de crime de responsabilidade – em torno da qual se sustenta o pedido de impeachment – foi minimamente enfrentada. Na imensa maioria das vezes, não foi sequer referida pelos deputados, mesmo que indiretamente. Praticamente todos eles fizeram questão de aproveitar seus quinze minutos de fama para proferir discursos inflamados que invocavam Deus, família e outros lugares comuns de um moralismo anacrônico, equivocado e que não tem a menor relação com o objeto do processo. Os mais ousados não mostraram o menor constrangimento: disseram abertamente que o que os motivava era banir Dilma, o PT e até mesmo Lula.

Não há como escapar de uma conclusão: o impeachment é filho bastardo do oportunismo de ocasião com um fanático ódio político por convicção. A maquiagem jurídica não se sustenta diante do confronto com a realidade. Isso já bastaria para conformar uma violência inominável contra a dignidade da nossa jovem República. Mas ainda houve algo mais. Bolsonaro fez questão de homenagear um torturador e dizer que perdemos novamente, como em 64. Palavras não dão conta do que representa um parlamentar sustentar o que Bolsonaro sustentou, em pleno Congresso Nacional e diante de milhões de brasileiros que acompanhavam a transmissão. É como se todas as vítimas e familiares de vítimas da ditadura civil-militar fossem novamente violentadas. É como se Dilma fosse novamente torturada por Ustra. E publicamente.

A democracia não pode conviver com um parlamentar como Bolsonaro. São incompatíveis. Que ele possa dizer isso e permanecer impune é algo impensável. Mas em uma coisa ele está certo. Se de fato perdemos, perdemos como em 1964: nenhuma outra designação que não “golpe” retrata a inominável iniciativa de usurpação política de um mandato conquistado com mais de 54 milhões de votos.

Não é necessária especulação para determinar com razoável margem de segurança que a questão jamais envolveu qualquer controle sobre a legalidade dos atos da presidente democraticamente eleita. Os personagens em questão simplesmente aproveitaram a janela aberta e embarcaram no trem, cujos assentos confortáveis estavam reservados. Nele encontraram muitos amigos, que já estavam devidamente acomodados: setores significativos do empresariado nacional e da grande imprensa, que também contribuíram de forma significativa para a gestação da empreitada de usurpação do poder.

É assustador que ainda possa haver qualquer polêmica sobre a existência de um golpe, considerando como foi executada a façanha antidemocrática. Poderiam ter tido pelo menos a dignidade de estudar a questão e ao menos motivar as decisões com base na – desacertada – leitura de que as pedaladas fiscais conformam crime de responsabilidade. Mas não houve sequer essa preocupação. Senhores de seus castelos e detentores de mandatos que em grande medida decorrem de conhecidas distorções de nosso sistema eleitoral, violaram de forma implacável a Constituição.  Simplesmente votaram como se ela não existisse.

Que espécie de esperança pode existir na resistência democrática quando as convicções morais de parlamentares [?] valem mais do que a Constituição e as regras do jogo? O que fazer quando a forma de nada vale e o próprio – questionável – pedido de fundamentação jurídica é deixado de lado para que a decisão não seja mais do que o preenchimento de espaços vazios pela subjetividade de nossos “representantes”?  Como resistir juridicamente ao avanço de um projeto de usurpação política quando o próprio Legislativo produz uma exceção de tamanha envergadura? Estamos novamente diante de um rombo tão grande no espaço democrático que a própria democracia deve mais uma vez ser compreendida como empreendimento falho e inacabado em terra brasilis?

É difícil encontrar forças para permanecer resistindo, quando o espaço de resistência ao autoritarismo encolhe cada vez mais. É como se nos faltasse o ar, expulso dos pulmões por um desleal soco no estômago. E sem oxigênio não se sobrevive. Mas como disse Darcy Ribeiro,

“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Digo o mesmo. Perco, mas mantenho minha dignidade e alinhamento com as forças que lutaram e ainda lutam pela democracia. Cuspo metaforicamente nos disseminadores de ódio travestidos de representantes populares. Jamais trocaria de lugar com eles. Não embarco neste trem. Nem com passagem de primeira classe, nem como clandestino.

Foi pensando assim que me retirei. Simplesmente desliguei aquele triste espetáculo. Quando percebi que a derrota era inevitável naquele dia, resolvi dar um basta em tanta hipocrisia e sai para dar uma volta com Bolt, o meu simpático cachorro e assistente de pesquisa voluntário. Mal sabia eu que o destino me reservava uma grata surpresa, na forma de um inesperado encontro.

Logo me deparei com dois jovens rapazes que caminhavam alegremente de mãos dadas pela rua. Uma menina que mal saiu da adolescência os acompanhava. Ela disparou:

– Mas depois de uma ditadura militar, ainda votam nesses merdas?

Confesso que sorri. Ainda há esperança. Talvez a minha geração tenha fracassado, como outra geração fracassou em 1964. Mas ainda resta o Senado. E o STF. Nós acusamos o golpe, mas ainda não fomos derrotados. A democracia está nas cordas, mas ainda não beijou a lona em definitivo. Brigaremos até o final, nem que seja para resguardar a dignidade que a resistência receberá postumamente da história e que já está consolidada narrativamente na imprensa internacional, que retrata o episódio com as devidas cores golpistas, de forma quase unânime.

Não conhecerão trégua. Jamais.

Um grande abraço!


Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

16 + 3 =