Uma justiça “bela, recatada e do lar” não impede a desconstrução do modelo democrático

Por Marcelo Semer, em Justificando

O punho desce com força.

O chamativo slogan para as ações da repressão foi um dos pilares da legitimidade do regime nazista. O endurecimento penal na Alemanha de Hitler não foi apenas um instrumento da transformação da democracia constitucional para o totalitarismo. Foi, sobretudo, uma eficaz propaganda.

Crise econômica, fragmentação política, frustração com a democracia e reclamos por ordem.

Ressalvadas as proporções históricas, o ambiente propício para o autoritarismo está ganhando cada vez mais horizontes por aqui.

O maior obstáculo está prestes a ser retirado da frente.

O modelo democrático, pelo qual nos reinventamos no pós-ditadura, está sob a iminência de ser desconstruído. A ruptura institucional que dá vazão ao impeachment pelo conjunto de uma obra, avaliada muito antes de seu final, é o sinal para a abertura integral das comportas.

Cidadania, laicidade, pluralismo, direitos sociais.

Cada qual a seu turno, os pilares do Estado Democrático de Direito serão entregues à própria sorte.

O populismo penal já tem alargado suficientemente seus passos sob o signo do medo da violência e do combate à corrupção.

De uma Constituição cidadã, vem brotando uma legislação guardiã – em nada compatível com o caráter antropocêntrico e limitativo de um direito penal desenhado para a democracia. A persistente seletividade não nos permite esquecer o forte vínculo entre racismo e controle social – mas a ampliação do espaço punitivo certamente será combustível para a multiplicação das desigualdades.

Sob o álibi do combate à impunidade, novas medidas são emblemas de campanha para a supressão de direitos individuais em nome do “interesse público”. O poder geral de cautela é o novo escudo daqueles que deveriam ter cautela geral com seu poder.

Mas não é só.

O debate político fruto da pluralidade de ideias já começa a ser interditado. Pipocam leis que proíbem professores de suscitá-lo em sala de aula, recomendações do Ministério Público que o criminalizam nas Universidades, decisões judiciais que delimitam o campo de ação das entidades estudantis. Soma-se a isso um conjunto reiterado de violências, pelas quais políticos, celebridades e até anônimos com as roupas erradas nos lugares certos, sofrem na pele o macarthismo social.

A ânsia de calar o outro ou de impedir o discurso que incomoda é cada vez mais recorrente, característica típica de práticas fascistas.

A invocação de temas religiosos como freios a políticas de integração, especialmente de gênero e contra a homofobia, escancara o desprezo da elite sexual com os valores da igualdade.

Mas tudo isso ainda é pouco, perto do destino que aguarda os direitos sociais, com a ponte conservadora-empresarial anunciada aos quatro cantos.

O novo nome da supressão de direitos é negociação – por meio da qual, no contexto de um desemprego crescente, empregados serão convocados para engavetar direitos até então considerados constitucionais e indisponíveis apenas para a manutenção de seus postos de trabalho.

Como tudo o que é pétreo desmancha no ar, mais hora menos hora, a atualização da Constituição para tempos de menor rigidez e direção, vai nos legar a Carta Flex, com uma espécie de laissez passer nos direitos fundamentais.

Não se enganem, todavia, os que acreditam que a intervenção judicial será capaz de deter o movimento.

A história está repleta de exemplos de como uma justiça bela, recatada e do lar convive harmoniosamente com a inflexão autoritária. Basta lembrar que o Supremo Tribunal Federal insistentemente valorizava a confissão obtida na delegacia de polícia como prova para condenação criminal, mesmo quando a tortura era reconhecidamente uma prática de Estado. A habilidade com que os operadores do direito têm para lidar com violências submersas em ritos e formalidades é inesgotável.

E verdade seja dita, o novo Estado autoritário dificilmente será composto de órgãos policiais que se sobreponham formalmente à jurisdição; mas, ao revés, de juízes e promotores que desempenham crescentemente funções policiais.

A história vai julgar aqueles que por ideologia ou oportunismo alimentaram o ódio, os que foram omissos com as violências institucionais, ou os que por vaidade ou imprudência não se aperceberam dos perigos que nos rondam. O Judiciário provavelmente não.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

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