Renata Nóbrega* – Justificando
Tive jenipapo[1] de nascença. Voinha me contou. Após o parto, o médico logo tranquilizou a família: “É o sinal da mistura de raças! Mas não se preocupem, a mancha desaparece nos primeiros anos de vida da menina”.
Os anos se passaram e, de fato, não cheguei a vê-lo, mas não há um só dia em que não o sinta. Ele arde. Remete a uma ancestralidade plural, feminina e de luta: reforça a necessidade de alianças, ao mesmo tempo em que interroga quem são os elos que forjam a sororidade[2] combativa em que acreditamos.
Assim, como é de seu costume, sem pedir licença, o jenipapo se apresenta e me interpela. Numa de suas mais recentes indagações, lançou-me um desafio: “Quem somos as ameríndias?”
Sim, aquele era um elo em silêncio. As mulheres ameríndias, escravizadas, adoecidas e assassinadas seguem em luta pelo ser em detrimento do ter, pelo lugar onde se é e não pela cerca que delimita o que se tem. De algum modo, eu sabia disso, mas era preciso ouvi-las e dar voz à sua luta, que também é minha, que também arde em meu jenipapo.
Em livros e artigos encontrei estas mulheres em acontecimentos históricos dos cara-pálida, reveladas pela voz dos cara-pálida, mas nunca falando por si. Empenhada em desvendar o enigma do jenipapo, mantive as buscas dentre as publicações acadêmicas brasileiras, mas mesmo quando encontrei escritos de integrantes de alguma das etnias, esse alguém era homem, de modo que isso não resolvia a questão. Li histórias de luta, violência e poder, mas as ameríndias fora de mim continuavam silenciosas e sem elas eu não tinha como identificar e dar voz às minhas próprias ameríndias.
Quando parecia que eu deveria me contentar com a fala masculina sobre elas e pensar sobre os direitos que os cara-pálida dizem que elas e seus povos possuem, a exemplo da Convenção n. 169 da OIT, encontrei Enir e Damiana.
Enir Terena, cacica desde dezembro de 2008, faleceu há pouco mais de um mês. Disse em várias entrevistas e documentários[3] que sonhava em 1992 com a devolução das terras ao seu povo, o povo Terena no Mato Grosso do Sul, mas se deparou com a realidade que a fez repensar a estratégia de luta. Encontrou nas comunidades de Campo Grande homens, mulheres e crianças Terena vivendo em total miséria e abandono. Tinham deixado suas aldeias para tentar melhores condições de vida, mas não conseguiam se inserir formalmente no mercado de trabalho. A força de trabalho feminina, quando aproveitada, era utilizada para serviços domésticos e sem as garantias do vínculo formal.
Foi diante de tal realidade que Enir, após mobilizar a comunidade Terena que vivia nos subúrbios de Campo Grande, mediante a realização de várias Assembleias, coordenou com outras lideranças Terena a ocupação de um espaço urbano que hoje é reconhecido como a primeira aldeia urbana do Brasil: Aldeia Marçal de Souza. Na madrugada de 09 de junho de 1995, fizeram o que Enir chamou de “retomada de território”, ocupando um lote que desde 1973 fora doado à FUNAI e até então permanecia com uma cerca, uma placa e nada mais.
Naquele primeiro dia foram 20 famílias e no terceiro já somavam 75. Sobre estacas de madeira forraram lonas pretas e passaram a plantar, construir, puxar fios e canos. Alimentavam-se comunitariamente, montando uma área central para as refeições, ao lado de um pé de ingá. Enir fazia questão de dizer o quanto os pés de ingá eram representativos da sua cultura Terena e como foram importantes as assembleias e reuniões ocorridas ali naquele pé de ingá. Abasteciam Enir Terena para que, no confronto com as autoridades, quando acusados de terem invadido o local, dando voz à sua força, ela dissesse: “Não, a gente não invade. O índio não invade nada de ninguém, porque essa terra é um pedacinho das terras que pertenceram e que foram dos nossos antepassados, então nós estamos ocupando o que é nosso de direito”. Nascida aos 08 de março de 1955, ela não só abasteceu parte das ameríndias que tenho em mim, como reabasteceu de significado a data branca e alienígena eleita para dia internacional da mulher.
No caso da cacica Damiana Guarani Kaiowá, do alto de seu 1,40m de altura, ela é uma grande ameríndia viva e significante de todas as datas e de todas as lutas. Na sua fala conta mais de 70 anos, mas não sabe precisar a data de nascimento. O que sabe e o que importa é que a Tekohá é de seu povo. Tekohá na língua de Damiana é “a Terra onde se é”. Os últimos 25 anos de sua vida são na tentativa de reocupar “a Terra onde se é”, mas que no momento integra o patrimônio jurídico de alguém que “tem”. O pai de Damiana foi assassinado quando ela tinha 11 anos e, após isso, sua comunidade, a Apyka’i, foi expulsa da Tekohá, que atualmente está incrustada em uma fazenda arrendada a uma usina a 7km de Dourados – MS.
No último dia 05 de julho, seu povo sofreu mais um revés na luta pela Tekohá Apyka’i: após quatro anos ininterruptos na “Terra onde se é”, com suas casas e barracos de pé, plantando feijão e mandioca, tiveram que cumprir ordem judicial que determinava a desocupação. Voltaram às margens da rodovia, pois “a Terra onde se é” seria devolvida a quem “tem”. De acordo com Damiana, esta é a sexta vez que são retirados de lá, mas ao longo desses anos, mesmo a morte de muitas pessoas da comunidade, não silencia e nem intimida Damiana, que no documentário “Apyka’i – Os Mortos tem voz”[4] verbaliza a parte ameríndia que me faltava: “Tekohá, eu nunca não vou estar aqui!”
Eduardo Galeano, em dezembro de 1992, escreveu a crônica “Quinhentos anos de solidão”[5], falando sobre um “mundo transformado em mercado” que celebrava 500 anos desde 1492, data em que nasceu a “realidade que hoje vivemos em escala universal: uma ordem natural inimiga da natureza, e uma sociedade humana que chama humanidade 20% da humanidade”. Galeano segue com sua escrita envolvente, tornando ainda mais vivas as atrocidades do ter em lugar do ser. Ao final começa a interrogar o leitor, assim como o jenipapo fez comigo, se de fato a fortaleza dos fortes, dos proprietários, dos dominantes é firme e forte. Em seguida, denuncia as fraquezas de falsos elos que se forjam por mera subjugação: “O poder, filho da violação, está cheio de violência, está cheio de medo. Musculoso corpo assustado com a sua própria sombra, corpo sem alma, sociedade desalmada. Corpo cego de si, perdido de si: proprietário de tudo, já não é dono de si. Já não pode se permitir outra paixão além da paixão do consumo. Sacrificou o direito à vida, sua própria vida, nos altares do direito de propriedade e já começou a se consumir”.
E é nos versos breves de um canto cigano que ele encontra a resposta, percebe que a fortaleza mais forte é a de quem não se contagia com “a civilização que confunde ser e ter”:
Tenho as mãos vazias
de tanto dar sem ter
mas as mãos são minhas.
Voinha me disse que aos 02 anos o jenipapo já não era mais visível em minha pele, mas ele ainda está aqui. Nos elos que o reforçam e o significam estão Enir Terena e Damiana Guarani Kaiowá. Elas não parecem confundir ser e ter. Obrigada por existirem.
*Membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia) e juíza do trabalho no TRT da 6ª Região.REFERÊNCIAS
[1] expressão popular para designar “mancha mongólica”.
[2] Sobre “O que é sororidade e porque precisamos falar sobre” em http://justificando.com/2016/06/02/o-que-e-sororidade-e-por-que-precisamos-falar-sobre/
[3] “Ákomo Ngurikeaku – a resistência do povo Terena na aldeia urbana Marçal de Souza” em https://www.youtube.com/watch?v=c7L9eeK-HR4
[4] https://www.youtube.com/watch?v=a3IkH2auYl8
[5] em “Ser como Eles”. Rio de Janeiro: Revan, 1993.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.