Nos anos 1950, Adorno criou a “Escala F” (de fascismo). Ela ajuda a ajuda a explicar que, quando a situação é extrema e a inteligência pouca, as sociedades entram em ondas persecutórias como a atual
Por Salomão Ximenes* e Suze Piza – Outras Palavras
Continuam as bombas contra Deborah Fabri. Vêm de toda parte, de dentro e de fora, da lama e do asfalto. São verdadeiras bombas de efeito moral, assim como ironicamente são chamados os explosivos que na quarta-feira, 31 de agosto, a machucaram definitivamente, retirando-lhe um olho. São bombas de efeito moral e de conteúdo fascista.
Deborah lutava, com palavras e gestos. Compunha a massa de indignados ante à farsa parlamentar daquela tarde. Descia a avenida, em consolo e abraços reconfortantes, tão necessários a refazer das esperanças. Sofremos o choque de um brutal ataque armado, um protesto oficial e militar hierarquicamente organizado, explosões de toda ordem, em favor do silêncio. Como incrédulos e indignados ficamos ao presenciar a desmesura dos fardados, temos agora o reverberar dos ataques civis, o fulminante colar do discurso fascista contra a assistência humanitária oferecida pela UFABC à sua estudante, contra a liberdade e o básico dos direitos políticos: ir a uma manifestação, não a um cenário de guerra.
Denunciam o que mais nos orgulha e fortalece, a capacidade de solidariedade, a capacidade de pensar contra os poderosos da vez. De dentro e da lama vêm a denuncia de nossa inquietude. Professores, estudantes e cronistas morais gritam a neutralidade tão em voga nas campanhas da tradição, enquanto lamentam o olho intacto de Deborah. Cegos somos nós, afinal, o que a perda da visão ocular só confirmaria. De fora e do asfalto vem a sentença: Deborah é culpada da violência sofrida. Uma saraivada de bombas sobre sua cabeça já ferida.
A história se repete, infelizmente, ainda como tragédia.
A escala F criada por Adorno e parceiros nos anos 1950 é um estudo pioneiro sobre o potencial autoritário imanente a sociedades de democracia liberal. A pesquisa resultou em um conjunto de testes que possibilitavam a construção de uma escala (conhecida como Escala F, de “fascismo”) que tinha como objetivo mensurar as tendências autoritárias da personalidade individual, a personalidade autoritária. A escala ajuda a explicar porque tais sociedades entram periodicamente em ondas como as que vivemos hoje, em que se persegue as vítimas, culpabilizadas. Isso ocorre sempre quando a situação é extrema e a inteligência é pouca. Em maio desse ano, a notícia do estupro coletivo de uma jovem foi recebida por muitos brasileiros com a mesma reação que vemos entre alguns de nós: afinal, o que ela estava fazendo lá? Com que roupa ela estava? Se estivesse em casa, trabalhando, não teria sido presa, machucada, torturada, diriam os coturnos de outrora.
Por que fascismo? Um(a) fascista despreza o que é o humano, é hostil ao outro, e sua tirania desapiedada se volta contra quem considera inferior, a vítima. Não percebe que ao comparar depredação ao patrimônio com violência, comparar quebrar uma porta com cegar uma menina, indica não saber o que é violência, não perceber o quanto está fechado(a), obstruído(a) em sua percepção de alteridade. Na dificuldade extrema de perceber a alteridade chama a atenção para si mesmo. Só é possível entender o fascismo em um domínio ético, pois a Ética é a dimensão da existência humana em que um se relaciona com o outro, onde ambos têm o mesmo estatuto como seres vivos e dignos de ser. A prática fascista é o avesso da Ética.
O fascismo é um regime de conhecimento, tem sua própria estrutura discursiva, um habitus, como dizia Bourdieu. O autoritarismo virou regra epistêmica e está instaurado dentro das instituições universitárias e escolares ao ponto de um “projeto” como o chamado “Escola sem partido” não assustar parte significativa da população. Quando se defende colocar cartazes em sala de aula com os deveres do professor quanto a não tratar de sexualidade nem de política (duas dimensões fundantes da vida humana) se o discurso não estiver adequado à moral vigente, estamos propondo algo mais proibitivo em extensão do que foi a prática curricular no período regido pela ditadura militar no Brasil, sobretudo pela nossa capacidade de vigilância do discurso ser hoje infinitamente maior. A instituição escolar brasileira tem uma história trágica na construção do seu currículo: Educação Moral e Cívica a serviço da ditadura, Ética e cidadania subserviente ao neoliberalismo e agora nosso currículo enfrenta um autoritarismo disfarçado de democracia. Nossos jovens sofrem corporalmente com isso.
O ato de apoio e de solidariedade institucional da Universidade a Deborah Fabri muito nos ensina sobre essa pretensão de falsa neutralidade. Tem um significado denso, nada neutro. É um gesto político universal, não um apoio aos blocos políticos em movimento. É um grito de recusa ao arbítrio, à violência desmedida contra dezenas de milhares de professoras dedicadas, senhoras aposentadas, políticos profissionais ou não, jovens que descobrem a possibilidade da política, jornalistas usurpados em sua profissão, um bando de gente que não saiu de casa para ir à guerra, mas assim foi recebida pela instituição estatal de repressão.
Nós professores e professoras temos a obrigação de conversar, provocar e refletir, educar, nunca silenciar. Como professores e ensinando em tempos sombrios apostamos na solidariedade interpessoal e institucional, no encontro e no diálogo, como dizia Paulo Freire, na libertação: forçar o diálogo com aquele e sobre aqueles para os quais o discurso parece ser a maior ameaça, sobre aqueles que reivindicam o silêncio.
Ouvimos de um colega: não nos será permitido descansar enquanto um ato de solidariedade estatal causar mais espanto e indignação que um Estado violento. As bombas contra Deborah dão a medida de nosso trabalho.
*Professor da UFABC, membro da Rede Escola Pública e Universidade