Tlaxcala é hoje um pequeno estado do México. Mas o que fizeram os tlaxcaltecas no passado? A resposta é simples e fatal: eles se aliaram aos espanhóis para derrotar os astecas, seus inimigos. Não chegaram a comemorar a pretensa vitória, entretanto: seus aliados ‘cuidaram’ deles em seguida. Moral: uma comunidade oprimida não pode acreditar em outro opressor para ajudá-la na sua luta.
Essa fábula, aliada à noção de que a língua é arma fundamental tanto para a conquista, como para a resistência, serviram como base para a criação da rede Traxcala de tradutores.
Sua página inicial não tem pretensões de ser bonita e, olhando-a melhor, em algumas partes parece uma babel de caracteres: são diferentes notícias com chamadas em idiomas diversos. No alto de cada uma, a indicação do original e das traduções disponíveis. Todas estão ali para serem lidas e compartilhadas; todas têm em comum informações consideradas essenciais para a construção da contra-hegemonia.
A rede já tem 11 anos, mas seu Manifesto de lançamento continua atual, assim como o compromisso de seus integrantes. Hoje, a Traxcala é composta por 120 tradutores e ilustradores, de cerca de 30 países diferentes. Esse número já variou ao longo do tempo, na medida em que o trabalho voluntário nem sempre pode ser mantido de forma contínua, mas há sempre gente nova chegando para abraçar a proposta.
O link para a organização está AQUI. Abaixo, o Manifesto lançado em 21 de fevereiro de 2006 explicita muito bem a proposta. (Combate Racismo Ambiental)
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Manifesto da Tlaxcala
Tlaxcala, rede internacional de tradutores para a diversidade lingüística, nasceu em dezembro de 2005, criada por um pequeno grupo de ciberativistas que se conheciam através da internet e descobriram que compartilhavam interesses e problemas comuns. A rede cresceu com rapidez e conta hoje com numerosos membros que traduzem em quinze línguas. O presente Manifesto expressa a sua filosofia comum.
Todas as línguas do mundo devem contribuir, e assim o fazem, para a fraternidade do gênero humano. Diferente do que muitos pensam, uma língua não é apenas uma estrutura gramatical, não são apenas palavras encadeadas conforme um determinado código sintático. Ela é também, e sobretudo, uma criação de significado a partir dos nossos sentidos. Com eles observamos, interpretamos e expressamos o mundo a partir de um lugar particular, determinado geográfica e politicamente. Por isso, nenhuma língua é neutra. Todas levam em seus genes a marca da cultura à qual pertencem. O latim, a primeira língua imperial, alcançou seu apogeu sobre os restos das línguas que destruiu, na medida em que as legiões romanas estendiam seu domínio territorial pelo sul da Europa e o norte da África. Não parece portanto estranho que na aurora do Renascimento tenha sido a língua espanhola, filha genética do latim, quem promovesse uma nova devastação, desta feita entre os povos conquistados do continente americano.
Império e língua imperial vão sempre juntas e são, por definição, predadores. Rechaçam a alteridade. Toda língua imperial se constitui em sujeito da História, narra esta do seu ponto de vista e aniquila (ou trata de aniquilar) as línguas que considera inferiores. A História oficial de um império nunca é inocente. Ela move-se pelo afã de justificar hoje os seus atos de ontem e para projetar no amanhã sua própria versão, a sua própria visão de mundo.
Ninguém conhece o sofrimento dos povos conquistados pelo Império Romano, já que não restaram provas escritas daquela derrota que significou o desaparecimento das suas culturas. As línguas vencidas na América pelo Império Espanhol, ao contrário, deixaram testemunho. Até os anos 40 do século XVI, muito pouco depois da conquista do México, Frei Bernardino de Sahagún reuniu o que hoje se conhece como o Código Florentino, uma mescla de relatos náhuas (o náhuatl é a língua dos antigos aztecas) e ilustrações pictóricas que descrevem a sociedade e a cultura pré-hispânicas. Um segundo testemunho, que contradiz o primeiro, é o de Lienzo de Tlaxcala, transcrito no século XVI pelo mestiço Diego Muñoz de Camargo, que baseou sua narração nos afrescos pictóricos dos seus antepassados ― os nobres tlaxcaltecas ― que descreveram em imagens a chegada de Fernando Cortez e a queda de Tenochtitlán. Naquele tempo, Tlaxcala era uma cidade-Estado rival do império azteca de Tenochtitlán e por isso ajudou Cortez a destruir o império rival sem perceber que assinava a sua própria sentença de morte, uma vez que o novo Império Espanhol que nasceu daquela derrota significou a submissão de todos os povos pré-colombianos ― quer fossem aliados ou inimigos da coroa espanhola ― e a perda quase absoluta da sua cultura e das suas línguas nativas.
Em nossos dias, o poder imperial concentra-s nos EUA, cuja língua oficial é o inglês. Fiel às características condutoras de todo império, a língua inglesa impõe agora a sua lei. Países ou territórios inteiros perderam, ou estão perdendo, suas línguas originais sob a influência do inglês. Filipinas ou Porto Rico são apenas um exemplo, entre outros. Na África sub-saariana, segundo a UNESCO, o falso prestígio concedido ao inglês, ao francês, ao português ou a muitas línguas vernáculas, destrói uma língua materna local a cada duas semanas.
Nada obsta que exista uma língua franca que facilite o conhecimento mútuo nestes tempos globalizados. O problema está na transmissão da ideologia de superioridade que a caracteriza, a qual, consciente ou inconscientemente, demonstra seu desprezo pelas línguas “subalternas,” isto é, por todas as demais. O complexo de superioridade que sempre acompanha uma língua imperial é tão substancial na sua essência que pode hoje ser observado inclusive entre os ativistas anglófanos envolvidos na luta por um mundo melhor: os seus meios de comunicação são uma prova tangível de que os escritos que publicam, traduzidos de línguas “subalternas”, constituem apenas uma pequena percentagem do seu conteúdo. Até mesmo as traduções do inglês para outras línguas são incomodamente superiores àquelas em sentido inverso. Todos nós somos culpados por termos aceito até agora tal desigualdade.
Tlaxcala, a rede internacional de tradutores pela diversidade lingüística, nasce como uma homenagem pós-moderna à desventurada cidade-Estado de mesmo nome que cometeu o gravíssimo erro de confiar numa língua imperial ― o espanhol ― para lutar contra outra de menor calibre ― o náhuatl ― e comprovou demasiado tarde que não se deve confiar em línguas imperiais ― em nenhuma delas ―, pois utilizam as “subalternas” como palanque para seus próprios objetivos. Os tradutores globais de Tlaxcala pretendem corrigir o destino perdido dos antigos tlaxcaltecas.
Os tradutores de Tlaxcala crêem na alteridade, na bondade de abordar outros pontos de vista e, por isto, se comprometem a des-imperializar a língua inglesa, publicando em todas as línguas possíveis (inclusive o inglês), as vozes dos escritores, pensadores, desenhistas de charges e ativistas que redigem hoje seus textos originais em línguas nas quais a influência avassaladora do império não lhes permite fazerem-se ouvir. Do mesmo modo, os tradutores de Tlaxcala facilitarão para os que desconhecem o inglês a tomada de conhecimento das idéias de escritores anglófanos situados à margem ou publicados em pequenos meios de comunicação, difíceis de encontrar.
A língua inglesa, com sua qualidade de aparato institucional do conhecimento, é hoje uma estrutura global de poder mediante a qual representa o mundo à sua imagem e semelhança, sem pedir permissão às demais línguas e culturas. Os tradutores de Tlaxcala estão convencidos de que é possível derrotar os senhores do discurso e ambicionam abalar essa estrutura para que o mundo consiga ser multipolar e multilinguista, possuidor de uma diversidade semelhante à da própria vida.
Os princípios que Tlaxcala utiliza para selecionar textos são que estes reflitam os valores essenciais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com vistas ao respeito efetivo dos direitos e da dignidade da pessoa. Os tradutores de Tlaxcala são anti-militaristas, anti-imperialistas e opõem-se à globalização corporativa neoliberal. Aspiram à paz e à igualdade entre todas as línguas e culturas. Não crêem na guerra de civilizações e nem na atual cruzada imperial contra o terrorismo. Opõem-se ao racismo e ao estabelecimento de muros ou barreiras ― sejam de caráter físico ou lingüístico ― que impeçam a livre circulação de cidadãos e idéias no planeta. Buscam promover o florescimento do Outro, reconhecer-lhe seu direito, respeitá-lo, conseguir que ele deixe de ser objeto da história para constituir-se em sujeito em um nível de equidade. Este esforço é voluntário e gratuito. Todas as traduções efetuadas por Tlaxcala têm a marca de copyleft, ou seja: são de livre reprodução, respeitados certos direitos.
Tradutores e intérpretes de todas as línguas, conectem-se e unam-se! Webmasters e blogueiros de todas as cores do arco-íris que partilham de nossas preocupações, contatem-nos!
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A data de 21 de fevereiro não foi escolhida por acaso para a publicação deste Manifesto: durante as décadas de cinqüenta, sessenta e setenta o 21 de fevereiro era o dia da Jornada Mundial Anticolonialista e Antiimperialista.”
“O homem que da sua pátria não exige mais do que um palmo de terra para sua sepultura, merece ser ouvido e não apenas ser ouvido, mas levado a sério”.
Covarde e impunemente, por ordens do futuro ditador Somoza, em 21 de fevereiro de 1934 foi assassinado na Nicarágua o General dos Homens Livres Augusto César Sandino, justo um dia depois da assinatura dos Acordos de Paz em virtude dos quais Sandino se aposentaria e iria viver de forma pacífica numa cooperativa camponesa no norte do país.
Paradigma e inspiração do patriotismo nicaragüense, Sandino simboliza o espírito da dignidade nacional, da luta antiimperialista e antiditatorial, com a resistência tenaz à ocupação e intervenção dos Estados Unidos, empreendida por seu Exército Defensor da Soberania Nacional formado por camponeses e operários que combateram com ferramentas de trabalho, fuzis enferrujados e bombas fabricadas com latas cheias de pedras e pedaços de ferro, derrubando os aviões inimigos quase a pedradas e, sobretudo, preservando um sentimento moral elevado e um patriotismo sem limites diante de um exército entreguista e invasor, cem vezes mais poderoso. Representante dos humildes e dos explorados da Nicarágua e da América Latina, Sandino demonstrou heroicamente que os camponeses conseguem organizar uma resistência triunfante pela autonomia nacional.
Em um outro 21 de fevereiro, este em 1944, Paris amanheceu com seus muros cobertos de cartazes vermelhos que anunciavam a execução de 23 “terroristas” no monte Valeriano, todos eles membros da Resistência dos Trabalhadores Imigrantes e Franco-atiradores, primeira organização de Resistência ao nazismo em território francês. O líder do grupo, Missak Manouchian, de 36 anos, era um sobrevivente do genocídio armênio, um imigrante. Aos colaboradores franceses que assistiram ao julgamento sumaríssimo diante do tribunal nazista e que o chamaram de “meteco”, Manouchian respondeu: “Vocês herdaram a cidadania francesa, mas eu a merecí.”
A 21 de Fevereiro de 1952, dezenas de milhares de estudantes, intelectuais e trabalhadores reuniram-se em Daca, na altura capital do Paquistão Oriental e actualmente do Bangladeche, protestando contra a imposição aos bengalis da língua urdu como a única língua do Paquistão. Assim que os estudantes iniciaram a manifestação, a polícia abriu fogo e matou quatro nesse dia e pelo menos mais sete nos dois dias seguintes.
O movimento converteu-se então numa insurreição popular que desembocou na independência do Bangladeche em 1971, depois de uma das mais sangrentas limpezas étnicas do século XX, apoiada pela administração Nixon. Desde então, o povo do Bangladeche comemora a 21 de Fevereiro o Ekushey (Ekush: 21 em bengali, Ekushey, vigésimo primeiro), como dia dos Mártires, tentando manter viva a rica herança da língua bengali. Em 2000, a UNESCO declarou o dia 21 de Fevereiro como Dia Internacional da Língua Materna, em homenagem a este movimento.
“O tempo dos mártires chegou e, se eu sou um deles, será por causa da fraternidade, a única que pode salvar este país.” Estas foram as últimas palavras de Malcolm X antes de ser assassinado numa reunião no Harlem, no dia 21 de fevereiro de 1965, pelas mãos de três membros da Nação do Islã, que Malcolm havia abandonado em 1963 para criar a Organização da Unidade Afroestadunidense. Em abril de 1966 seus assassinos foram condenados à prisão perpétua, mas os que planejaram aquele crime ― os Senhores do Império ― ficaram impunes, como na maioria dos casos.
Malcolm X, aliás, El-Haji El-Shabbaz, cujo nome original era Malcolm Little, tinha 39 anos. Havia regressado de uma peregrinação a Meca, onde descobriu a universalidade irmanando-se com peregrinos vindos do mundo inteiro. Um dos motivos da sua ruptura com a Nação do Islã foi que esta organização havia mantido contatos com o Ku Klux Klan viasando a criação de um Estado negro independente no sul dos Estados Unidos, do mesmo modo que o fundador do sionismo, Theodor Herzl, havia pedido o apoio dos piores anti-semitas para o seu projeto de um Estado judeu. Para Malcolm, cujo pai havia sido vítima do Ku Klux Klan, tal colaboração era inconcebível.
Neste dia de reminiscências, colocamos o Tlaxcala sob o patrocínio daqueles lutadores das causas dos seus povos, Sandino, Missak Manouchian e Malcolm X.
Espaço Cibernético, 21 de fevereiro de 2006, Dia Internacional da Língua Materna.