As nossas cidades

Cândido Grzybowski* – Portal Ibase

Domingo de eleições municipais, dia da cidadania local definir como quer ter sua cidade gerida. Afinal, vivemos em territórios determinados, nosso endereço neste generoso planeta. Aí levamos a vida. Estar de bem com nossa cidade é estar de bem com a vida, pois ela configura nosso cotidiano. Porém, muita coisa se decide fora, muito longe das cidades em que vivemos. Isto limita possibilidades e opções locais, ainda mais que não faz parte de nossa institucionalidade o princípio radicalmente democrático da subsidiaridade, quando poderes acima do local só decidem o que não podemos decidir aqui, entre nós, que compartimos o mesmo território da cidade. Num país com tradição de poder centralizador resta pouco para a cidadania localizada decidir sobre seu cotidiano.

As eleições locais ocorrem numa confusa e crítica conjuntura política nacional e até mundial. A própria política como espaço público, comum, de disputa democrática, está sofrendo um profundo esgarçamento, no Brasil e no mundo. Está no ar um descrédito nas possibilidades de resolver nossos problemas e definir rumos pela política. Além disto, o golpe do impedimento contra Dilma nada resolveu, mas atingiu profundamente o humor político nacional, contaminando tudo. Voltar ao local, mais perto da cidadania, é condição de reconstrução da política. No entanto, as eleições locais atuais ocorrem em meio a uma grande confusão, com as mesmas regras partidárias e eleitorais, sem possibilidades reais de expressar as verdadeiras correntes de opinião no seio da sociedade.

Eleições são uma agenda fundamental no rito democrático. No entanto, seu mero acontecer não dá substância à democracia. Mas ainda não inventamos algo melhor. Portanto, cabe a nós, cidadania, explorar as potencialidades dos processos eleitorais. Este, porém, será um longo processo. O que precisamos é de uma nova grande onda democratizadora, capaz de renovar a nossa democracia e lhe dar poder transformador. Partir do local, onde eleições acabam se combinando virtuosamente com democracia direta, de rua, e com espaços de participação cidadã sistemática, é um caminho fundamental. Mas as eleições atuais nada tem de renovação.

Aí voltamos às nossas cidades. Como não ficar à espera de mudanças que podem demorar a surgir? Como participar desde aqui e agora se no ar predomina o descrédito? Ou alguém acredita que as atuais eleições apontam para algo novo? O aumento de abstenções, votos nulos e de protesto são um sinal. Mas, sobretudo, não tivemos debate e nem uma disputa de projetos de cidade entre candidatas e candidatos. O processo eleitoral foi algo tragicômico, com mensagens ridículas no horário eleitoral de rádio e televisão e com excepcional violência, inclusive com mortes de candidatos.

Temos grandes desafios pela frente. Claro, o processo eleitoral municipal ainda não acabou. Muitas grandes cidades terão segundo turno. Mas o quadro que se desenha não dá sinais de novo. Parece que repercute no local o grande acordão nacional que levou ao golpe do impedimento de Dilma. Mas o que isto indica de mudança real na política? Ao menos em termos de uma profunda renovação, nada! Temos mais sinais do velho do que de algo novo.

A vida real continua. Penso que certas agendas aparecem com força ao nível local e têm potencial de animar a cidadania e perturbar prefeitos e prefeitas, vereadoras e vereadores. Lutas por educação, saúde, segurança e mobilidade urbana já estão aí e podem configurar uma verdadeira disputa pela cidade, independentemente dos vitoriosos nas eleições. E isto num contexto  de redução drástica dos recursos públicos disponíveis para os municípios. A agenda dominante é de ajuste para poder pagar os especuladores financeiros e nada de atender demandas cidadãs. O centralismo brasileiro se manifesta em sua perversidade plena na partilha dos recursos públicos, com migalhas sendo destinadas aos governos de nossas cidades.

Assim, o momento é de resistir apesar de tudo. Nas trincheiras cidadãs que somos obrigados a abrir sem mais esperar, uma possibilidade é buscar um imaginário mobilizador, construir sonhos de cidades cidadãs. Definitivamente, não estamos condenados a cidades espetáculo ou negócio, como o nosso Rio de Janeiro. Ainda é tempo para resgatar a nossa cidade como um grande comum, um espaço democrático de convivência e de compartilhamento, que cabe a nós, acima de tudo, cuidar. Podemos, sim, superar a herança maldita entre asfalto e favela, entre centro e periferia, entre zona sul, norte e oeste. Mas isto depende mais de nós, cidadania carioca, do que de prefeitos e vereadores. Podemos viver em paz, sim, sem militarização de partes da cidade e sem violência racial. A questão é nos engajarmos em um debate profundo sobre o que somos e para onde vamos, para além de eleições, do prefeito e da Câmara de Vereadores. Temos um enorme patrimônio coletivo único, como o samba, o funk, o rap e a mpb, o gingado e a beleza, as praias e montanhas.  Temos grandes problemas e barreiras que nos separam também. Enfrentar isto tudo e dar a volta por cima depende de nós. Fazendo isto, podemos contribuir decididamente para renovar de baixo para cima a democracia em seu potencial transformador. Que o momento eleitoral não nos iluda, a tarefa da cidadania é gigantesca e as eleições somente revelaram o tamanho do desafio. Nada, absolutamente nada, está sendo decidido agora.

*Sociólogo, diretor do Ibase

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