Entenda como a tortura sonora machuca

“nos anos 70 uma legislação internacional foi protocolada contra o uso por parte dos britânicos na Irlanda do Norte de uma série de técnicas, incluindo aí privação do sono, permanência em pé, exposição à ruído e ruído branco contínuo”

Por Brian Anderson, em Motherboard* 

Na prisão de Mosul e em Camp Nama, vinha de aparelhos de som. Em Camp Cropper, em Bagdá, de alto-falantes afixados nas paredes. Em outros locais, como Camp Romeo, uma área para punições dentro de Guantánamo, de falantes cônicos especiais em frente à cela de um prisioneiro.

Música alta. O violento barulho de fundo da Guerra norte-americana ao terror. O próprio termo – “música alta” – surge 17 vezes no sumário executivo liberado recentemente de um “relatório de torturas” ainda secreto da CIA. Aqui no Brasil, no relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre os crimes da ditadura, há a seguinte passagem no capítulo sobre tortura:

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Por mais que não tenha sido segredo algum que os EUA e o Brasil tenham empregado música por um arquipélago inteiro de centros de detenção, prisões secretas e não secretas, a fim de desorientar e quebrantar o espírito de seus detentos, o que significa “alta”? E quão alto é o alto o bastante?

De acordo com uma nota de rodapé em um memorando de um programa de interrogatórios dos EUA de 2005, a CIA mantém “condições de detenção” em cada uma de suas unidades prisionais, onde os detidos são sujeitos a “ruído branco/sons altos (que não excedam 79 decibéis)” durante interrogatórios. O memorando de 2005 também menciona que a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional estabelece que “não há risco de danos permanentes à audição relacionados à exposição de ruídos em volume de até 82 decibéis em períodos de 24h/dia”.

Não existe no momento nenhuma lei internacional que defina o quão alto é alto demais em termos de tortura punitiva ou para fins de interrogatório. Suzanne Cusick, professora de música da Universidade de Nova York que pesquisa violência acústica em guerras contemporâneas, disse-me que nos anos 70 uma legislação internacional havia sido protocolada contra o uso por parte dos britânicos na Irlanda do Norte de uma série de técnicas, incluindo aí privação do sono, permanência em pé, exposição à ruído, e ruído branco contínuo, e que hoje, diversas organizações em prol dos direitos humanos esperam restabelecer regulamentações com base em pesquisas sobre guerrilha sônica.

É o que temos em mãos agora. O que não podemos esquecer, porém, é que “decibéis precisam ser correlatados ao período de tempo em que a pessoa é exposto ao som em determinado nível de decibéis”, de acordo com Cusick, que me falou sobre quando entrevistou um homem – que deseja seguir anônimo, mas que fez parte das 119 pessoas descritas no relatório do Senado como torturadas pela CIA e seus prestadores de serviços – que foi detido na prisão clandestina de COBALT, da CIA, também conhecida como “Fosso de Sal” [Salt Pit, no original], no Afeganistão.

Ele disse ter sido mantido lá, no escuro, por um mês, enquanto ruído branco reverberava quase que continuamente entre os corredores e celas de COBALT. “Ele me disse que parecia ser uma fita ou algo do gênero”, disse Cusick. O som era tocado por cerca de 45 minutos antes, seguido de um silêncio de sete segundos, tempo que os prisioneiros tentavam chamar uns aos outros. Então a música começava novamente.

Interrogatório? Punição? Você decide.

Tocar as mesmas músicas, geralmente heavy metal ou hip-hop altos, repetidamente, por dias a fim, é parte essencial de um procedimento operacional padrão descrito pelo Departamento de Exército como “futilidade”: “[O] coletor convence a fonte de que a resistência ao questionamento é fútil. Isto engendra um sentimento de desesperança por parte da fonte”.

O que importa aqui é quebrar alguém. Assim sendo, Cusick acredita que o uso de loops, música alta e som não foram componentes “triviais” do programa contraterrorista norte-americano, mas sim intrínsecos a ele.

“‘Música alta’ utilizada no contexto das unidades prisionais administradas pelos EUA não é só tortura psicológica”, ela afirmou. “Os sons são a manifestação audível de ondas se movendo pelo ar, e estas ondas necessariamente tem efeitos físicos”. Estes efeitos podem variar da sensação imediata de se ter apanhado, adicionou Cusick, ao desenvolvimento ou exacerbação de hipertensão e perda de audição muito depois da “surra sonora” ter findado.

De que tipos de sons estamos falando? A mixtape da CIA, ao menos até onde sabemos, é bastante eclética, de “Born in the USA” de Bruce Springsteen a “Diirty” de Christina Aguilera a “I Love You” de Barney, o Dinossauro, “Fuck Your God” do Deicide, “Enter Sandman” do Metallica, “Babylon” de David Gray, “We Are the Champions” do Queen, “Killing in the Name Of” do Rage Against the Machine e também músicas de Meat Loaf, Aerosmith, AC/DC, Marilyn Manson Drowning Pool, 2Pac, Dr. Dre, Eminem, Britney Spears, e Matchbox 20.

Nada de Rorschach, porém houve relatos de que os detentos tinham notável aversão à country.

QUANDO PARA, É COMO SE UM ESPANCAMENTO CESSASSE

É claro que os EUA tem promovido guerras com som, de uma forma ou de outra, há décadas. Cusick declarou que a base teórica da guerrilha sônica é um documento interno da CIA de 1963, o suposto relatório Kubark. Mesmo antes disso, em meados dos anos 50, ela adiciona, resistência à “música alta” e “barulho” faziam parte de um programa de treinamento das forças especiais dos EUA conhecido como Sobreviver-Evadir-Resistir-Escapar.

Depois, em 1988, o pessoal da segurança dos EUA valeu-se de gravações para tirar de seu esconderijo Manuel Noriega, o ditador panamenho derrubado que havia se enfurnado na embaixada do Vaticano, e também contra o Ramo Davidiano, antes de atear fogo ao seu complexo em Waco, Texas. Ou seja, 17 instâncias de “música alta” em um sumário executivo de um relatório de tortura vindouro não é exatamente novidade. A única diferença agora, de acordo com Cusick, é que os EUA finalmente admitiram “fazer o que todo mundo sabia que fazíamos”.

Mas então, quão alto é muito alto? Uma pergunta difícil de se responder. Por que como, de verdade, qualquer um poderia saber? Todos sentimos a dor de forma diferente.

“Presumo que o efeito em humanos de altos volumes deva ser igualmente difícil de mensurar e calibrar”, afirmou Cusick, por conta de todo um complexo de diferenças individuais.

Deve-se levar em conta também a duração da música alta e demais estímulos inclusos. Como aquilo afeta a experiência? Para fins de contexto, 79dB, supostamente o limite sônico da CIA para surras acústicas interrogativas e punitivas, é próximo do ruído gerado por uma máquina de lavar ou um aspirador de pó. Com base em suas conversas com o prisioneiro do Fosso de Sal mencionado anteriormente, Cusick crê que o som utilizado lá ficava no limiar dos 79dB, mas “tremendamente amplificado” nas mentes dos prisioneiros em virtude do isolamento e blecaute contínuo.

Naquele contexto, então, 79dB era, de fato, “alto demais”. Ou melhor, da perspectiva da CIA e seus prestadores de serviços, precisamente alto o bastante para quebrar um homem.

“Quando para”, disse o prisioneiro à Cusick, “é como se um espancamento cessasse”.

Tradução: Thiago “Índio” Silva

*Publicação de 11/12/2014.

Comments (1)

  1. Olá, obrigado por seu artigo, contribuiu para entender o que venho passando a alguns anos em minha vida.

    Por por gentileza que me responda se puder, aqui no brasil é permitido a alguma policia o uso deste tipo de tortura?

    Adianto Agradecimentos, obrigado

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