Brasil 2016: preparando a (nova) gestão de uma crise permanente

A caixa de Pandora foi aberta, os males estão à solta, e se engana, portanto, quem espera estabilidade. O tempo da política se acelerou. Sem ingenuidade, e com muita perspicácia, a reorganização das esquerdas precisará tirar proveito dessas eventuais janelas de oportunidade para ganhar posições relativas.

Por Edemilson Paraná, no blog da Boitempo

Ao menos desde a intensificação da escalada política que culminou no golpe parlamentar de 2016, muito parece indicar que as elites política e econômica deste país escolheram de vez uma via bastante perigosa: a da gestão à força, e sem muito espaço para novos ensaios de pacto social, de uma sociedade de crise permanente. Com essa postura, assumem o risco de incendiar o país.

Não se trata de exagero alarmista. A ofensiva para qual têm se armado desde então já ocorre e vem de muitas frentes que, em comum, guardam justamente tal atributo: a negação da conciliação e a repressão aberta a toda forma de resistência social à retirada de direitos.

Vem no campo econômico com o entreguismo aberto das riquezas nacionais e o mais draconiano austericídio de que se tem notícia, no campo social com o desmonte de direitos e garantias sociais básicas como a proteção ao trabalho, previdência social, saúde e educação públicas, e no campo jurídico-institucional com um estreitamento ainda mais intenso e direcionado dos já parcos espaços de disputa da democracia liberal-representativa, somados, por fim ao acirramento desvairado de toda sorte de mecanismos de repressão penal ao conflito político e social, algo ademais ativado pelo recente fortalecimento das distintas corporações no interior do sistema de justiça.

Na base desse processo, o tortuoso fim de ciclo econômico que, precipitado no fim de ciclo político que vivemos, empurra o empresariado nacional para formas mais agressivas de manutenção e/ou recuperação de suas taxas de retorno: a queda do salário real, direto e indireto, de um lado, e a segurança para a continuidade dos ganhos financeiro-rentistas em um contexto marcado pela inevitável intensificação do conflito distributivo. No setor agroexportador, a expansão ilegal da fronteira agrícola em regime intensivo e extensivo de uso, em um quadro de queda do preço das commodities, torna mais urgente e estratégica a gestão do conflito agrário, do acesso ao crédito estatal e de toda sorte de incentivos fiscal-tributários ao aprofundamento do processo de reprimarização de nossa economia. Tudo somado, a mensagem é bastante clara: “acabou o espaço para concessões, arroubos de soberania nacional ou aventuras democratizantes”.

O Estado deve interromper de vez o investimento estrutural, as políticas redistributivas e programas sociais, a macroeconomia da austeridade deve se aprofundar, a previdência social, saúde e educação públicas estão na berlinda, e as universidades, em especial, correm risco de total privatização no espaço de alguns anos.

As vítimas dessa diretiva, claro, todos conhecemos: as maiorias sociais e minorias políticas, os movimentos sociais, as esquerdas organizadas – partidarizadas ou não, e o dissenso em geral, proveniente também de artistas, intelectuais, e da contracultura em sentido ampliado.

O mais surpreendente, no entanto, não é observar o que nos é preparado pela parte superior da pirâmide, algo, ademais, evidente, em muitos de seus aspectos, já há algum tempo, mas, distintamente, o que vem ocorrendo na parte inferior da nossa topologia de classes. Chamados juntos, ainda que em intensidade distintas, a novamente arcar com o pesado custo desse velho-novo Brasil, os mais pobres e a classe-media apertam-se e apartam-se politicamente ainda mais.

Comecemos com as chamadas classes médias. Espremida entre as distintas formas de rentismo da alta riqueza e a perda de espaço e distinção social relativa face aos programas sociais, aumento do salário mínimo nos últimos anos (que encareceu os serviços, em geral, inclusive os domésticos) e aquilo que considera uma pesada carga tributária sem retribuição equivalente em serviços públicos de qualidade, essa classe média, sentindo-se mais ou menos ameaçada (seja ela mais “antiga”, ou mesmo produto da mobilidade social da última década), se volta de vez contra medidas redistributivas e democratizantes, especialmente as focalizadas nos mais pobres (algo verificável ironicamente também entre aqueles que, inclusive, até pouco contaram ou ainda contam com financiamentos estatais ao consumo e investimento de pequena escala).

Insegura face ao poder, temerosa em relação à incerteza de sua posição, e indisposta a enfrentar o custo de uma necessária recalibragem no alvo de sua revolta, torna-se presa fácil e útil do canto de sereia proveniente do andar de cima: a corrupção generalizada, a gastança do Estado, e toda sorte de antigos lugares comuns que historicamente vem arrebatando seus corações e mentes de tempos em tempos. Esse setor, sabemos, não costuma ser exatamente privatista. No entanto, diante do insistente (e falso) mantra, diariamente martelado em suas cabeças, sobre a irremediável quebra do Estado, começa a considerar essa, cada vez mais, como uma “não alternativa”: contanto que seja capaz de pagar o plano de saúde, a escola e a previdência privada, talvez não seja o pior dos mundos, é levada a pensar. O ponto aqui é que, a tomar pelas evidências que vem recolhendo a sua volta ultimamente, nada lhe garante de que será realmente capaz disso. Algo precisa ser feito, e rápido!, protesta.

Somado ao conservadorismo moral, que parece ressurgir com força renovada,  como reserva de segurança ontológica em tempos angustiantes, esse setor constitui o núcleo duro e base social mais ampla, voluntária ou involuntária, do cerco político acima radiografado. A virulência, muitas vezes covarde, com que expressa sua frustração e angústia deságua nas milícias de desocupação de escolas e em defesa do governo Temer dirigidas por movimentos como MBL, na articulação da iniciativa obscurantista da “escola sem partido” e em outras ações em que elitismo, machismo e racismo escancarados desfilam nos espaços de convívio social e político sem medo da luz do dia. Um misto de anticomunismo sem ameaça comunista, paixão pelo poder, personalidade autoritária e grave desconexão entre discurso público e prática individual a respeito de temas morais adiciona um tempero tragicômico à mistura.

E aqui ela se debate frontalmente com outra parcela da classe média, especialmente da juventude, que, em via oposta, opta por lutar contra a incerteza de sua posição em outra chave: na defesa de mais, e não menos, direitos para todos. As escolas e universidades, sindicatos combativos e grande parte dos movimentos sociais e políticos progressistas que conhecemos, a intelectualidade e os artistas engajados tornam-se o alvo prioritário dessa guerra interna aos e entre os setores médios.

No degrau abaixo, mais divisão. Mas aqui, é preciso concordar, a sensação, em partes correta, é de que o que vem acontecendo logo acima simplesmente não importa muito. Esse talvez compreensível “desinteresse”, no entanto, certamente piora a situação. É certo que este estrato é o mais e mais rapidamente afetado pelo desemprego, pelo corte aos já restritos programas sociais, junto da piora generalizada da situação econômica do país. No entanto, as péssimas condições de vida e trabalho, o não acesso real a qualquer tipo de direito constitucional, a violência e repressão cotidiana seguem sendo, com algumas exceções, até aqui, praticamente as mesmas. Para esse setor, a gestão violenta e permanente da catástrofe social não é algo propriamente novo; a mudança repentina, a insegurança radical, a possibilidade iminente do desemprego, da despossessão, ou pior, da prisão e morte é algo que o tempo todo esteve a espreita, quaisquer que fossem os ocupantes do Palácio do Planalto (com isso, evidentemente, não se quer dizer que a sua situação não possa piorar face a atual escalada regressiva, pelo contrário).

E aqui, a resistência, em meio a todo tipo de brutal adversidade, sempre se deu em potentes movimentos culturais e religiosos, associação de moradores, e toda uma rica miríade de espaços onde política é feita à margem do oficialismo, do moralismo udenista de classe média, e nas rizomáticas brechas do impossível.

A falta de presença da esquerda nesses espaços pede uma reflexão crítica, séria e consistente. A crescente, insistente e eficaz presença das igrejas petencostais e neopentecostais, que lidam com problemas objetivos, concretos e materiais dessas comunidades, é certamente um dos aspectos mais relevantes das tectônicas transformações sócio-políticas que vem ocorrendo no Brasil.

Há, no entanto, também aqui, uma tensão que começa a se tornar, aos poucos, mais aparente. A associação entre a direção de algumas dessas igrejas já inseridas no sistema político formal às milícias ou ao tráfico de drogas, e sua recente mobilização para o combate ao dissenso cultural, político e religioso (como às religiões de matriz africana) perturba e afronta muitas dessas referidas formas tradicionais de resistência comunitária.

Mantido o arrocho regressivo atualmente em curso, uma piora ainda maior da situação econômica não é um prognóstico muito difícil de ser antecipado. Diversamente, no caso de uma recuperação conjuntural e superficial, a opção por este modelo de gestão macroeconômica não fará muito mais do que nos manter em uma modorrenta estagnação, com baixíssimo crescimento, e manutenção de altíssima desigualdade. A situação da economia internacional, geralmente pouco mobilizada nas análises de conjuntura locais, igualmente não apresenta nenhum refresco, pelo contrário.

No bojo deste ocaso, e na ausência momentânea de uma esquerda organizada capaz de se consubstanciar em projeto de país e alternativa política viável, sustentada e composta como tal pelas maiorias sociais, a inevitável revolta social tende a se expressar, em distintos níveis dessa topologia acima cartografada, de forma fragmentada e desorganizada, ainda que de forma intensa e talvez radicalizada – e não sem produzir resultados surpreendentes e indesejáveis para aqueles gestores de nossa sociedade de crise permanente.

O visível crescimento da complexidade e diversidade intelectual, cultural e sexual pela qual o país vem passando nos últimos anos igualmente não permitirá que as coisas sejam muito fáceis para os intentos mais regressivos: os movimentos negro, de juventude, de mulheres e LGBT podem nos trazer belas surpresas, sobretudo se foram capazes de ampliar suas lutas para além dos circuitos imediatamente identitários, unindo-se a dinâmicas mais amplas de luta e resistência social – exigência ademais, que serve para todos os demais setores da esquerda organizada. Quanto mais formos capazes de alianças amplas, e em bases renovadas, menor será nosso calvário coletivo.

As sombrias forças de “segurança” a serviço do poder devem intensificar, como já vêm fazendo há algum tempo, a vigilância e repressão em todos os níveis, sustentada ademais pelo aparato penalista (este mesmo também sujeito a disputas internas cada vez mais rarefeitas). Mas, mesmo diante da nítida escalada rumo ao Estado de exceção, algo como uma ditadura militar de facto, à moda antiga, parece agora improvável, pendendo mais o Brasil, talvez, para uma espécie de “mexicanização” acelerada do conflito social – o que não deixa de ser grave.

Resta observar, por fim, as brechas que eventualmente podem se abrir produto das disputas intra-elites, nos distintos níveis decisórios. Apesar do alinhamento momentâneo que parece tê-las suspendido, é sabido que tais contradições estão longe de terem sido resolvidas e, cedo ou tarde, a conta deve chegar, materializando-se em agudas disputas internas. A caixa de Pandora foi aberta, os males estão à solta, e se engana, portanto, quem espera estabilidade. O tempo da política se acelerou. Sem ingenuidade, e com muita perspicácia, a reorganização das esquerdas precisará tirar proveito dessas eventuais janelas de oportunidade para ganhar posições relativas.

A situação é adversa, um longo e doloroso período de reconstrução será necessário. Derrotas ocorrerão, erros serão cometidos; precisaremos aprender a avançar juntos em cada um deles. Mas nada está, de fato, ganho. A história segue em aberto. Um atroz sistema de gestão de uma sociedade em crise permanente foi ativado, e uma longa noite se aproxima. Mas, como nos lembra o dizer popular, a hora mais escura é a que precede o nascer do sol. Ele sempre nasce.

***

Edemilson Paraná é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), autor do livro A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional (Insular, 2016). Dele, leia também no Blog da Boitempo os artigos “Da direta à esquerda: a crise diante da falta de um projeto de país“, “O Brasil no pêndulo das elites: entre liberalismo submisso e desenvolvimentismo autoritário“, “Disputar o povão: neopentecostalismo e luta de classes“, “As raízes da escalada conservadora atual” e “Lula, o cerberus da política brasileira“.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

quinze − três =