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O povo, o lobo e o complexo de cordeiro, por Antonio Claret Fernandes

A quadra de Gesteira está de pintura nova. Piso azul. Listas brancas delimitando espaços. Rede removível de Vôlei, branca com bordas azuis. Se os moradores não praticam esse esporte não importa, as cores combinam e pronto.  A armação de ferro dos gols e suas respectivas telas são brancas. Faixa larga, um vermelho desbotado, separa o chão da meia parede, verde, que a circula. Em cima da meia parede, sobe tela grossa bem amarada a canos de ferro resistentes, coloridos de azul. Segurança tão forte em comunidade tão pacata parece ter sido arquitetada fora dali. Oito barras de ferro enormes, quatro de cada lado, suportam o telhado e todo o peso de suas ferragens. A escola, sonhada grande, em terreno adquirido, está espremida entre a quadra e a rua, um cubículo de nada, em área municipal.

As pessoas, militantes ou não, vão chegando para reunião do MAB, a última de 2016, dia 17 de dezembro, nessa localidade, com caráter de balanço e perspectivas para o ano que vem. No meio da roda, a bandeira do Movimento. Perto dela, a bandeira do Brasil, que se faz mais assídua após ter sido surrupiada pela Direita, nas ruas. No entorno, cartilhas sobre saúde, arpilleras, crime da Samarco. Três galhos recheados de flores rosa-choque dão especial colorido ao ambiente. Sete calendários de 2017 formam uma roda. Sua foto de rosto, com a palavra ‘justiça’ em destaque, de cor branca, fica bem sobre as ruínas avermelhadas de Bento em meio à multidão. Memória viva de um ano de lama e luta.

Rodeando as simbologias no chão, aparece um círculo de cadeiras plásticas, brancas. Nelas estão as pessoas. Às vezes isso fica esquecido, mas pessoas é o mais importante em tudo. Por isso o trabalho precede o capital. Elas vêm de Bento, de Mariana, de Águas Claras, de Barra Longa, de Rio Doce, de Paula Cândido e de Gesteira.

A estética artificial da estrutura física da quadra desafia o Movimento por sua impressão visual, ainda que verniz em caruncho, e contrasta, fortemente, com a simplicidade local. Uma espécie de estupro coletivo patrocinado pela força do capital. Um cão chega manquitolando. De pelo preto com fiapos brancos, pela idade, não sabe do que se passa, mas sente tudo diferente.  Gesteira não é mais a mesma desde a noite de 5 de novembro de 2015. Meio desconfiado, aproxima-se, dá uma volta, pisa a bandeira, e é atraído pela mesa de café, do lado, cheia de roscas, pão, queijo, tudo doação. Se há algo que continua igual ali é o coração generoso de seus moradores. O cão arrisca último olhar suplicante sobre uma criança, que come pão lambendo a manteiga, esperando qualquer coisa, mas sem êxito. Então sai.

Perto da quadra, do lado de fora, existe, agora, até um quiosque, com esteios de madeira e telhas de barro, e um banco, onde uma criança se senta. Por perto, três mulheres fazem mutirão de limpeza, varrendo tudo, talvez por ser sábado.

Na Grama verde do entorno da quadra, existem árvores esparsas em cujas copas pássaros, os mais diversos, ensaiam músicas. Mas o Canário da terra, teimoso, escolhe o fio elétrico mais fino para nele equilibrar-se e cantar estralado, chamando a atenção. Vez por outra maritacas fazem voos rasantes, e pousam, e voam de novo, na maior algazarra. Parecem raivosas por tantos crimes. Nos poucos bancos, virados para a rua, há umas poucas pessoas sentadas, contando caso, a maioria idosa. Alguém passa empinando moto, mas some logo.

Além do coração acolhedor de Gesteira, que continua o mesmo, apesar do crime, existe a indignação. Ela cresce cada vez mais.  Poderá ser força popular no dia em que o complexo de cordeiro, enraizado no Brasil, for superado. O desabafo, sem fim, toma a pauta da reunião. A situação da água incomoda muito. Um operário da empresa pede chá e, depois que sabe ter sido feito com água servida na Comunidade, manda jogar fora e fazer outro com água mineral. Muita gente sente dor de barriga. O poço, localizado perto do rejeito, pode estar contaminado. Uma senhora diz não ter mais saúde e, acometida de pneumonia, aguarda exame, sem previsão, no valor de trezentos reais. Há quem tenha perdido dez quilos. O psicológico dos moradores continua muito abalado. Isso se agrava por faltar garantias reais do direito e, sobretudo, pelo desrespeito.

A empresa tem pressa no seu interesse. O Cadastro, por exemplo. Quer tudo para ontem. O atingido vive agoniado. Imenso, ele tem mais de cento e cinquenta páginas e vinte três categorias diferentes de perguntas. Uma entrevista dura três horas.  A pessoa começa até bem, crendo que aquilo vai ajudá-la, mas, pelo final, responde de qualquer jeito pelo cansaço. Cheio de pegadinhas, esse instrumento, montado pela empresa, funciona como ferramenta de negação do direito ao atingido.  Por isso o Gesta, grupo da UFMG, parceiro do MAB, vem propondo novo cadastro, com outra lógica.

Por ocasião do rompimento de Fundão, o sofrimento é muito grande, mas a expectativa do reassentamento, com a possibilidade de quem perde o lote, a casa, o meio de vida ir para uma terra nova traz uma ponta de esperança. Mais recentemente, o terreno chega a ser escolhido, no voto. Uma área boa. Mas primeiro aparece uma disputa pela área. Depois a alegação de que o proprietário não quer vendê-la. O povo sabe que isso são estórias. Num caso assim, o terreno pode ser desapropriado. E percebe a balança fora do fiel, com dois pesos e duas medidas. O Governo Pimentel desapropria área para construção do S4 em Bento, mas não age para disponibilizar área de reassentamento em Gesteira. Por enquanto, as empresas, autoras do crime, continuam no comando.

Essa proximidade entre empresas, autoridades políticas, nas diferentes esferas, e os mais enricados está cada vez mais sentida. É um novo peso sobre os atingidos mais vulneráveis, ainda que se use o nome deles para fazer isso. Boa parte dos executivos e legislativos municipais – com raras e honrosas exceções – une-se às empresas, na mesma lógica da União e do Estado. No caminho de Gesteira, a preferência das empresas pelos enricados é visível. A primeira ponte a ser reconstruída no Gualaxo do Norte dá acesso a uma grande fazenda produtora de leite. A precedência é da mercadoria em detrimento do direito de ir e vir do povo. Máquinas enormes descansam nos terreiros das fazendas, numa relação harmoniosa de negócios e de intimidade. Nas casas grandes se veem muitas intervenções, entre as quais muros, currais, plantio de grama, plantio de cana e muita pintura nova.

Barra Longa não é diferente. A história mostra que, mais cedo ou mais tarde, os ricos se entendem, pois têm em comum as tramoias, legais ou não, para transformar pessoa, trabalho, tragédias e crimes em negócios rentáveis. Um hotel imenso, que não leva uma gota de rejeito e que ganha dinheiro com o aumento do movimento na cidade, agora está sendo todo reformado. E um grupo da elite local, articulado com a gestão municipal, tende a funcionar como testa de ferro da empresa ou ser oportunista, cavando dinheiro nas suas mais diferentes formas. A crítica deles ao MAB não é pelo que o Movimento tem de limitação, mas, claramente, pelo seu potencial de acumulação de força popular, em especial a partir dos mais vulneráveis.

Esse aparelhamento de enricados e gestores públicos às empresas, oportunistas ou subservientes, traz pequenas vantagens passageiras aos bajuladores lacaios, mas, ao final, garante benefícios às próprias empresas, pois, além da visibilidade, passa para a sociedade a ideia de que estão resolvendo os problemas e, o pior, isso ajuda a controlar e inibir a rebeldia dos atingidos vulneráveis e sem direitos, invisíveis e intimidados.

Tudo isso explica, em parte, porque sobra indignação e falta, por enquanto, força popular.  A senhora que perde o lote, com quiabo, mandioca, milho, feijão, banana, abóbora, até o momento está sem nada. A mulher que planta quiabo e mandioca no quintal da antiga creche teve tudo destruído pela empresa e reclama mais a falta de respeito do que o prejuízo.

Nesses dias, conversando com um amigo, ele lembra Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo, escritor, poeta e filólogo alemão, e o que ele chama de complexo de cordeiro. É que o cordeiro fala mal do lobo e, por vezes, espera que ele seja bom, compreensivo, convertido, sem perceber que comer cordeiros é do instinto, da natureza do lobo. Cabe ao cordeiro ser esperto o suficiente para escapar dos dentes afiados do seu predador. Igualmente, é da natureza do capital apropriar-se do bem natural e das pessoas, alimentando-se do suor e do sangue da classe trabalhadora e do povo. Por isso, o sonho de sair da gaiola capitalista, transitando para outro sistema. Esse caminho exige acumular forças e enfrentar os lobos. Nem é preciso matá-los. Sem exploração, esses animais morrem de fome.

Foto: Felipe Floresti

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