A premissa do sistema tributário é cobrar impostos dos trabalhadores. Entrevista especial com Evilásio Salvador

Patricia Fachin e Ricardo Machado – IHU On-Line

Além da tributação indireta sobre o consumo e a produção de bens e serviços, a tributação direta via Imposto de Renda também pode ser considerada “mais um elemento de concentração de riqueza na sociedade”, diz Evilásio Salvador à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.

Recentemente, Evilásio Salvador coordenou um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, que se propôs a analisar os dados do Imposto de Renda de 2007 a 2013, divulgados pela Receita Federal. Entre as conclusões do estudo, o professor pontua que os declarantes do Imposto de Renda com rendimentos acima de 40 salários mínimos “têm, se verificarmos os ativos e os bens, 42% do total de bens informados à Receita”, enquanto os hiper-ricos, aqueles que recebem acima de 160 salários mínimos, possuem “21,70% do patrimônio informado na declaração de Imposto de Renda”.

Na avaliação de Salvador, o Sistema Tributário “não é simplesmente injusto porque tem uma tributação forte indireta, ele também é injusto porque não tributa renda e patrimônio de maneira adequada, e mesmo quando tem a tributação sobre a renda, esta é, basicamente, restrita e limitada ao trabalhador assalariado e aos servidores públicos”.

Evilásio Salvador é graduado em Economia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, mestre e doutor em Política Social pela Universidade de Brasília – UnB, onde leciona atualmente.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como foi feito o estudo que mede a desigualdade e a injustiça tributária no país, utilizando dados das declarações do Imposto de Renda – IR entre 2007 e 2013?

Evilásio Salvador – O Brasil tem um sistema tributário bastante injusto: grande parte da arrecadação dos tributos advém de uma tributação indireta sobre o consumo e a produção de bens e serviços, e atinge os mais pobres na sociedade, principalmente os trabalhadores de maneira generalizada.

O estudo que realizamos tinha o objetivo de verificar se, ao menos, a tributação direta, ou seja, aquela constituída por imposto sobre renda e patrimônio, aliviava essa situação, isto é, se conseguia, de fato, ter um perfil mais distributivo, com mais justiça, pelo menos nesse aspecto. O estudo acabou revelando que nem a tributação direta no Brasil tem o perfil de fazer justiça tributária e fiscal, porque ela é, simplesmente, mais um elemento de concentração de riqueza.

O estudo foi realizado a partir de uma base pública de dados da Receita Federal, que foi disponibilizada neste ano, chamada “Grandes Números do Imposto de Renda”. A Receita Federal até 1995/1996 costumava publicar dados consolidados da declaração do Imposto de Renda de Pessoa Física. A partir de 1996/1997 a Receita parou de publicar esses dados e passou a publicá-los de maneira muito restritiva, sem grandes informações, de modo genérico. A publicação desses dados, em nenhum momento, fere qualquer sigilo fiscal ou tributário porque são dados macro, e não nos permite ter informações individuais de nenhum contribuinte da Receita Federal.

Depois da grande repercussão do livro de Thomas Piketty, que foi traduzido para o português como O Capital no século XXI (2014), tornou-se mais evidente essa falta de transparência das informações brasileiras. O próprio Piketty disse, em entrevistas e no próprio livro, que não conseguiu fazer essa pesquisa sobre o Brasil porque não obteve os dados sobre Imposto de Renda. Acredito que a partir disso houve certo incômodo por parte da Secretaria da Receita Federal e ela passou, novamente, a liberar uma base de dados chamada “Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas”. Essa base de dados permite o acesso a dados agregados de renda e patrimônio dos declarantes do Imposto de Renda no Brasil, no período de 2008 a 2014, tendo como base os anos do calendário de 2007 a 2013.

Então, o estudo que realizamos analisou o perfil do Imposto de Renda desses declarantes, considerando os quesitos de sexo, rendimento e salário mínimo em unidades da federação, buscando o efeito concentrador de renda e riqueza. A partir dessas informações sobre rendimentos e bens e direitos, que é o equivalente a informações sobre patrimônio, analisamos o conjunto das declarações que foram disponibilizadas em planilhas de dados, ou seja, tivemos acesso a uma série de dados, como rendimentos tributáveis, rendimentos tributáveis exclusivos, rendimentos isentos, deduções com doença, saúde e educação, imposto devido, imposto pago, dívida, ônus, patrimônio etc.

IHU On-Line – Como o senhor chegou à informação de que 700 mil pessoas — 0,36% da população — têm patrimônio igual a 45% do PIB?

Evilásio Salvador – Chegamos a esse número a partir da faixa de rendimento total, que dividimos em várias faixas: até meio salário mínimo, de meio a um salário mínimo, de um a dois, de dois a três, de três a cinco, de cinco a 10, de 10 a 20, de 20 a 40, de 40 a 80, de 80 a 160 e depois acima de 160 salários mínimos. Isso revela que a concentração de renda está acima da faixa de 40 salários mínimos. Quando analisamos os ativos declarados por essas pessoas, que são os bens, obtemos um indicador de patrimônio delas, e quando observamos esses dados, vemos que são 700 mil pessoas que estão nessa faixa; quando analisamos o total de ativos informados à Receita Federal, observamos algo como cinco trilhões oitocentos e vinte e cinco bilhões e quatrocentos e quarenta e sete mil. Quando olhamos onde está grande parte dessa concentração, vemos que está nessa faixa acima de 40 salários mínimos. Se dividirmos esse valor pelo PIB estimado de 2013, chegamos à informação de que é quase metade do Produto Interno Bruto.

Os declarantes que estão nessa faixa acima de 40 salários mínimos têm, se verificarmos os ativos e os bens, 42% do total de bens informados à Receita. Além disso, se quisermos, podemos analisar a situação dos hiper-ricos, aqueles que estão acima de 160 salários mínimos: esses têm 21,70% do patrimônio informado na declaração de Imposto de Renda.

Na sociedade brasileira temos o hábito de dizer que existem “os 5% mais ricos”, mas a concentração é maior. Se analisarmos a base de dados, veremos que a faixa do 1% mais rico da sociedade brasileira é mais concentradora quando analisamos detalhadamente quem é esse 1% mais rico. E mais, esses ativos, bens e direitos e o rendimento dessas pessoas são muito pouco tributados ou não são tributados. Por exemplo, nessa faixa dos hiper-ricos, que estão acima de 160 salários mínimos, há cerca de 50 mil pessoas que não pagam nada de Imposto de Renda, porque os seus rendimentos são advindos de lucros e dividendos que são distribuídos pelas empresas. Como lucros e dividendos são isentos do Imposto de Renda, elas simplesmente não pagam Imposto de Renda.

IHU On-Line – Nesse grupo entram acionistas?

Evilásio Salvador – Sim, são basicamente os acionistas, os sócios-capitalistas, literalmente os donos de empresas. Considerando que há um deslocamento da economia para a esfera financeira, grande parte dessas pessoas está vinculada ao mercado financeiro. É importante lembrar que nesses dados não estamos considerando a sonegação fiscal; analisamos apenas os dados declarados. E por que essas pessoas declaram e não pagam Imposto de Renda? Porque a legislação permite, desde 1995, que estejam isentos do pagamento de rendas auferidas com lucros e dividendos, assim como a remessa de lucros e dividendos para o exterior, que também não paga IR.

IHU On-Line – Quais são as principais conclusões da sua pesquisa?

Evilásio Salvador – Que essas isenções no Imposto de Renda favorecem, claramente, os mais ricos na sociedade brasileira. A renda e o patrimônio no Brasil têm uma brutal concentração regional e de gênero, quando o combate às desigualdades de renda e de riqueza deveria ser a principal agenda do Brasil.

O Sistema Tributário não é simplesmente injusto porque tem uma tributação forte indireta, ele também é injusto porque não tributa renda e patrimônio de maneira adequada, e mesmo quando tem a tributação sobre a renda, esta é, basicamente, restrita e limitada ao trabalhador assalariado e aos servidores públicos. Isso ocorre porque nem todos os rendimentos tributáveis de pessoas físicas são levados, obrigatoriamente, à tabela progressiva do Imposto de Renda, ou estão sujeitos ao ajuste anual na declaração de Imposto de Renda. Então, a estrutura tributária está na contramão do que é dito na Constituição, segundo a qual não deveria se permitir a discriminação em razão da ocupação profissional ou da profissão exercida pelos contribuintes, ao submeter à tabela progressiva do Imposto de Renda os rendimentos advindos do capital e de outras rendas da economia ou quando algumas são submetidas, por exemplo, a rendimentos de aplicações financeiras.

Por isso acredito que esse estudo é muito importante no momento atual do país, em que se propõe, exatamente, um ajuste fiscal sobre os mais pobres, os trabalhadores assalariados, a população em geral e sobre as políticas sociais, com um profundo corte de gastos, como o que está sendo proposto pela PEC 55, com um ajuste brutal sobre a Previdência Social, que atingirá mais de 75% da população economicamente ativa. Por outro lado, parecemos inertes ou fazemos cara de paisagem para uma elite que não paga Imposto de Renda, não tem seus patrimônios tributados e sequer é incomodada pelo Estado, mas é concentradora de renda e de riqueza: 61 mil pessoas compõem a classe dos hiper-ricos, e 65% da renda deles tem origem em elementos isentos ou não tributáveis. Isso revela uma enorme injustiça fiscal que vem se agravando nos últimos anos, ao contrário de uma perspectiva que se tinha de uma melhoria na distribuição de renda. Essa melhoria se mostra limitada, porque quando estávamos discutindo essa melhoria de renda no país, estávamos olhando apenas os dados do mercado de trabalho.

IHU On-Line – Quais são os estados em que há maior concentração de renda e em quais há maior desigualdade?

Evilásio Salvador – O estudo não busca tratar exatamente disso, mas consegue perceber em quais unidades da federação estão os maiores rendimentos do país. Das 27 unidades da federação, são cinco as que concentram a renda e a riqueza. De 5,8 trilhões de bens, dois terços estão concentrados em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. Esse é mais um agravante das desigualdades regionais do país.

Esses dados demonstram que a ideia de indicar caminhos e orçamento público via um plano plurianual, como prevê a Constituição, para reduzir as desigualdades regionais, não está acontecendo. Percebemos que renda e riqueza estão concentradas em poucos estados. O paradoxo disso é que o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul estão passando por problemas fiscais e propondo, mais uma vez, um ajuste fiscal sobre os trabalhadores.

IHU On-Line – Qual é o perfil da desigualdade e da injustiça tributária no país?

Evilásio Salvador – O sistema tributário comete um conjunto de desigualdades e injustiças, e a premissa desse sistema tributário, desde o governo FHC, é de cobrar imposto e tributo dos mais pobres e dos trabalhadores assalariados. Essa injustiça é cometida de duas formas: uma é porque os tributos são fortemente concentrados na tributação sobre consumo, então, quando os mais pobres vão consumir em relação a sua renda, o peso da carga tributária torna-se injusto; segundo, existem outros elementos para discutir sobre outras formas de desigualdade na sociedade brasileira. Se olharmos isso do ponto de vista de gênero e de raça, veremos que a situação é mais agravante, porque as mulheres e as populações negras se encontram na faixa mais baixa de renda. Isso indica que o fisco tributa muito mais, em relação aos demais contribuintes, as populações femininas e negras.

Uma terceira injustiça é que aqueles tributos que tradicionalmente deveriam servir para fazer justiça fiscal e tributária, não exercem esse papel ou têm uma função limitada. Aí me refiro ao Imposto de Renda, que se limita a cobrar a renda de trabalhadores assalariados e servidores públicos, enquanto aqueles que vivem da riqueza, do seu patrimônio ou são donos dos meios de produção, não são tributados ou são pouco tributados. Um quarto fator é que o sistema tributário não acompanhou o deslocamento da economia: a economia se deslocou desde os anos 90 para o sistema do capitalismo financeiro. Esses ativos financeiros não são tributados ou são pouco tributados, e há uma classe de financistas que não produzem um parafuso, mas que acabam se beneficiando dessas operações com baixa tributação, sobretudo quando comparada à tributação da renda do trabalhador assalariado.

De outro lado, a tributação sobre patrimônio é irrisória, ou seja, chega a ser motivo de piada em comparativos internacionais. Os patrimônios tributados equivalem a menos de 4% da arrecadação total de tributos – estamos falando de tributação de carros, IPVA, que incide sobre o patrimônio da classe trabalhadora, porque jatinhos e helicópteros não são tributados. A tributação sobre heranças também é baixíssima em comparação com a tributação internacional, e o imposto sobre grandes fortunas está mofando na Constituição Brasileira desde 1988, sem regulamentação. Por fim, o sistema tributário tem elementos de injustiça quando não contribui para atenuar as desigualdades regionais.

IHU On-Line – Por que o imposto sobre grandes fortunas deveria ser adotado e o que poderíamos caracterizar como grandes fortunas?

Evilásio Salvador – Eu não defendo só a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas. Uma primeira medida que poderíamos adotar para começar a construir um sistema tributário mais justo seria elevar todos os rendimentos, e aí me refiro, sobretudo, a elevar todos os rendimentos para a tabela do Imposto de Renda, a qual deveria ter mais alíquotas. Eu me refiro a fazer uma tributação sobre a renda do capital, o que permitiria aliviar a renda tributada dos trabalhadores. Se corrigíssemos a tabela do Imposto de Renda pela inflação, poderíamos isentar uma parcela grande da população trabalhadora que não deveria estar pagando Imposto de Renda e, com isso, poderíamos onerar os mais ricos. Outra medida associada a isso é a tributação sobre patrimônios: poderíamos tributar o patrimônio no sentido dos ativos físicos, de propriedades, assim como ativos financeiros, como automóveis, jatinhos etc.

Em relação à tributação das grandes fortunas, ainda há uma discussão a ser feita: seria possível estipular um conjunto de ativos de bens que o contribuinte tem para estabelecer o nível de recolhimento de impostos que teria de ser feito. Alguns estudos estabelecem uma renda acima de cinco milhões de reais por ano. Eu sou muito simpático às proposições que o economista Amir Khair propõe: ele fez várias simulações sobre esse tipo de arrecadação. Essas medidas fariam com que o Brasil demonstrasse que está enfrentando as desigualdades sob todos os aspectos, começando por aqueles que têm maior renda e maior patrimônio.

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