Operação Montesquieu: um pequeno resumo do que foi esse 2016

No Justificando

Uma fotografia se tornou símbolo do poder no Brasil de 2016. Dida Sampaio, repórter do Estadão, capturou o exato momento em que um oficial de justiça chegava à residência oficial do presidente do Senado para notificar o seu afastamento, determinado horas antes pelo ministro Marco Aurélio Mello.

O funcionário, que parece ainda estar caminhando em direção à entrada da casa, exibe um terno sóbrio, cor de grafite, e tenta alinhar os papéis postos sobre o envelope que salvaguardou a decisão monocrática da mais alta Corte do país. Um pouco mais ao fundo, e à esquerda, é possível ver Renan Calheiros, o alvo da notificação, através de uma porta entreaberta que, graças à luz interna, o destaca de todos os personagens flagrados pelo clique. Ele revela cada detalhe do senador: a calça amarrotada, a camisa social por fora da calça, a expressão de urgência e a mão que determina que outra, a do segurança, feche imediatamente o acesso à residência.

Quando bateu à porta, o oficial de justiça foi informado por uma assessora que o presidente Calheiros não se encontrava. Mas não foi só Dida Sampaio que o viu. Pelos vidros da residência, o próprio oficial pôde verificar que estava sendo ludibriado e insistiu. A assessoria não cedeu e o dispensou para que retornasse no dia seguinte.

Quatro horas depois do combinado, o chefe de gabinete de Renan finalmente recebeu o oficial de justiça, mas não a notificação. No seu lugar, entregou uma carta que informava a recusa do senador em acatar a decisão de Marco Aurélio, respaldada por uma deliberação da mesa diretora do Senado Federal. Jorge Viana, vice-presidente petista, endossou, frustrando as expectativas da nova oposição, que já o projetava travando a pauta econômica do governo que avançava a passos largos no Congresso.

Marco Aurélio Mello concedeu a liminar baseado no entendimento, já majoritariamente votado no plenário do STF mas ainda não consolidado graças ao pedido de vistas do ministro Dias Toffoli, de que réus em ação penal não podem estar na linha sucessória da presidência da república. Renan Calheiros responde a doze inquéritos e teve admitida agora, no início de dezembro, a denúncia de desvio de recursos públicos para o pagamento da pensão de uma filha.

A notícia caiu como uma bomba em Brasília. Pela primeira vez uma decisão do Supremo Tribunal Federal era frontalmente desafiada por outro poder da república. Mas ela também não pode ser considerada exatamente uma surpresa. Não agora.

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Charles-Louis de Secondat tinha 56 anos quando publicou sua segunda obra-prima. A primeira, Cartas persas, é um belo livro de ficção que lhe rendeu posição de destaque na literatura francesa. Mas foi O espírito das leis, de 1747, que o eternizou na ciência política e na história. Embora Secondat, o barão de La Brède e de Montesquieu, não tenha inventado a divisão dos poderes, o que já existe desde a Antiguidade, não restam dúvidas de que o seu princípio, o de que ela interessa mais pelo funcionamento das instituições na prática do que pela concepção ideal de cada uma delas, inspirou todo o Ocidente.

No “O espírito das leis”, diz Montesquieu que “não há liberdade quando o Poder Legislativo é reunido ao Executivo”, assim como “também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo”. Tudo estaria perdido, prossegue, “se um mesmo homem exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; e de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares”.

Interessava a ele, assim como aos demais filósofos iluministas do século XVIII, minar a dinâmica de sustentação dos regimes absolutistas monárquicos que, à época, já apresentavam sinais de desgaste. Longe de ser um revolucionário, Montesquieu era entusiasta de monarquias moderadas em que o poder rei fosse contrabalanceado, como no sistema de checks and balances, em vigor – com nuances – na Inglaterra desde a Revolução Gloriosa. A independência dos Estados Unidos em 1776 e a Revolução Francesa de 1789 trataram de marcar a guinada.

A despeito das resistências, lideradas sobretudo pela Áustria, o sepultamento do absolutismo já parecia irreversível em meados do século XIX. Tanto que, em vez de confrontado, o pensamento iluminista acabou parcialmente incorporado por alguns monarcas em busca de legitimação no chamado “despotismo esclarecido”. E a Constituição tornou-se símbolo dessa passagem. Não mais o rei, como quis Hobbes n’O Leviatã, mas a Constituição deve proteger uma sociedade de si mesma. Não mais a autoridade concedida por Deus, como defendeu Bossuet, mas a constituída horizontalmente por representantes do povo.

Dividir atribuições com outros órgãos, no entanto, nunca deixou de ser um problema para a autoridade central. No Brasil recém-independente de Portugal, a primeira Assembleia Constituinte foi dissolvida por D. Pedro e a carta outorgada em 1824 estabeleceu uma dinâmica pitoresca que submetia os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, ao que se denominou Poder Moderador. Duas décadas depois, o sucessor D. Pedro II instituiu o sistema parlamentarista, que prevê protagonismo do Legislativo. Mas quem nomeava o primeiro-ministro era o próprio Imperador.

E não foi só com manobras regimentais que o liberalismo político sofreu duros revezes na Modernidade. O principal deles, aliás, era bem explícito. Além da plataforma ultranacionalista, o nazi-fascismo apresentava o principal movimento de rejeição à herança iluminista que já se viu no mundo. Daí a importância do líder, o führer, no caso da Alemanha, em mediar interesses por vezes antagônicos de uma sociedade esfacelada pela guerra e flagrantemente desiludida com as suas próprias instituições, entusiasticamente dissolvidas em nome da ordem.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa se reergueu. As instituições também. E o fantasma do totalitarismo estimulou a formação de sistemas milimetricamente planejados para que nenhum poder, assim como nenhum indivíduo ou grupamento político, se impusesse sobre os demais. Esse pressuposto favoreceu uma dinâmica de coalizões que se tornou a regra nas democracias representativas no Ocidente e acabou por empurrar a política em direção ao centro, criando, paradoxalmente, novas formas de hegemonia.

Foi o que aconteceu na Itália. Embora o Partido Comunista tenha composto uma das duas maiores bancadas do Parlamento por quarenta anos, a Democracia Cristã conseguiu que orbitassem ao seu redor partidos antiesquerdistas menores que, por fim, lhe deram sustentação. Mas não sem um preço, evidentemente. Sem o menor pudor, o Estado acabou repartido entre diferentes facções, retroalimentadas por um sistema que normatizou a propina como condição primeira para celebração de qualquer contrato entre empresas privadas e o governo.

A queda do Muro de Berlim mudou o panorama. Finda a Guerra Fria, uma verdadeira debandada de eleitores esvaziou a Democracia Cristã em favor de siglas que passaram a adotar discursos populistas xenófobos no cenário de desaceleração econômica. Para se manter no poder, o partido apelou ainda mais para a máquina pública, que forrava não apenas o bolso de políticos e empresários, mas também – e sobretudo – de campanhas eleitorais.

Em 13 de fevereiro de 1992, o empresário Luca Magni fez um telefonema que mudou a história do país. À polícia de Milão, Magni disse estar sendo extorquido pelo administrador de um hospital público. Apesar de irrisório, o valor de 7 milhões de liras – algo como 3 mil euros hoje –, interceptado pelos agentes no ato do pagamento, descortinou um esquema já conhecido pelos procuradores, mas ainda inacessível graças à indestrutível rede de proteção que blindou por décadas os envolvidos.

A Operação Mãos Limpas investigou mais de 5 mil pessoas em dois anos. Dentre elas, estavam centenas de parlamentares, dezenas de ministros de Estado e nada menos que quatro ex-primeiros-ministros. Num país em que a percepção de corrupção era a mais alta possível, o desmonte significou uma espécie de redenção e o Poder Judiciário se tornou uma sumidade. Ainda no início de 1992 começaram a aparecer as primeiras pichações em Milão: “Grazie, Di Pietro”, “Di Pietro, prenda todos eles”, “Di Pietro é melhor que Pelé”. Di Pietro, o principal procurador, era aplaudido por onde passava e enaltecido pelo jeito simples de falar e até mesmo pela escolha de gravatas. Os julgamentos eram transmitidos ao vivo pela televisão.

Depois do massacre da opinião pública, uma febre de suicídios tomou conta dos investigados. E aos poucos milionários ou políticos do grande escalão já não eram mais os únicos alvos da operação. Com os partidos de centro esfarelando e a Democracia Cristã já completamente dissolvida, o empresário Silvio Berlusconi fundou um partido novo, o Forza Italia, e foi eleito primeiro-ministro em abril de 1994.

Berlusconi era um entusiasta da operação e se vendeu como uma alternativa ao sistema político, orgulhoso da própria fortuna, tratada por ele e por seus aliados como uma espécie de garantia de incorruptibilidade. Assim que tomou posse, no entanto, o premiê foi colocado sob investigação.

Mas o inimigo dos magistrados dessa vez era bem mais poderoso do que os anteriores. Berlusconi era o dono da primeira rede nacional privada na Itália e apostou forte numa campanha difamatória contra os procuradores. Di Pietro foi formalmente acusado de abusar do cargo, de receber favores de empresários e de enriquecimento ilícito. Já no final de 1994, abandonou a magistratura e tentou embarcar, anos depois, numa fracassada carreira eleitoral. A classe política sabia que era o momento e contra-atacou desenvolvendo mecanismos legais de proteção ainda mais eficazes do que os anteriores. Os prazos de prescrição para crimes de corrupção, por exemplo, caíram mais do que pela metade. Silvio Berlusconi deixou o cargo pela última vez só em 2011.

Não é preciso refazer toda a trajetória da crise política no Brasil para compará-lo à Itália que gestou Berlusconi. Mas algumas semelhanças são grandes demais para serem simplesmente ignoradas. Em primeiro lugar, apesar da aposta da oposição em colar no Partido dos Trabalhadores a marca da corrupção, o que tem revelado a Operação Lava-Jato até aqui é justamente o caráter sistêmico de um esquema que beneficiou de aliados a adversários durante governos de centro-direita ou esquerda. Em todas as últimas campanhas presidenciais, as empreiteiras agora investigadas inundaram os cofres dos partidos com doações legais e ilegais posteriormente devolvidas em forma de contratos diretos ou medidas provisórias. Não se trata de um delírio (ex) governista. É a realidade, nua e crua, da corrupção no Brasil.

Em segundo lugar, a desilusão política gerou índices alarmantes de desconfiança nas instituições. Durante o turbulento ano de 2015, 82% dos brasileiros diziam não confiar no Congresso Nacional – mais ainda do que os que não confiavam na presidência – e 91% nos partidos políticos. De lá para cá, o apoio à democracia despencou 22 pontos percentuais e atingiu a marca de 32%.

Terceiro, e nessa mesma esteira, a crise política fez do Brasil terreno fértil para um sem-número de demagogos profissionais em busca de adesão. Para vencer as eleições em São Paulo, João Doria Jr. prometeu cortar secretarias que nem existem. Gestor, e não político, como fez questão de frisar ao longo de toda campanha, venceu no 1º turno mesmo sem o apoio da velha guarda tucana, que o rejeitou em solidariedade ao companheiro histórico preterido nas prévias, Andrea Matarazzo. Noutra ponta, Jair Bolsonaro cresce rapidamente em intenções de voto, que mais do que dobraram desde as eleições de 2014, abrigando parte das pulsões antissistema que nos Estados Unidos deram a vitória a um milionário de discurso semelhante.

A crise política também serviu para comprometer irreversivelmente a imagem do Judiciário como um poder cuidador, que, livre de interferências políticas, resguardaria a Constituição em meio ao caos. Durante todo o processo de impeachment, a oposição fez valer a máxima de que tudo transcorreria dentro das regras do jogo graças à proteção exercida pelo Supremo.

Protagonista, o poder Judiciário chamou a atenção para si. Sabendo disso e com receio de revezes no impeachment, o governo interino sancionou aumento de até 41,4% para o poder em julho mesmo em meio a um dos mais brutais ajustes fiscais já conhecidos. Enquanto o Senado discutia a deposição definitiva de Dilma, Lewandowski, que presidia o órgão durante o julgamento, ligava para parlamentares a fim de convencê-los a votar pelo reajuste dos salários de ministros do Supremo, que já têm os mais altos vencimentos entre os funcionários públicos do país.

O gatilho para o impeachment, aliás, veio de uma decisão do STF. Com a prisão do senador do Delcídio do Amaral, determinada pelo ministro Teori Zavascki, Brasília sabia que o Planalto não tinha mais condições de proteger ninguém. O desembarque era uma questão de tempo. Uma semana depois, Eduardo Cunha colocou na mesa o pedido assinado por Janaina Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr. como resposta à posição do PT em favor da admissibilidade do processo do então presidente da Câmara no Conselho de Ética.

Sete meses depois da posse de Michel Temer como presidente interino, quando a denúncia de crime de responsabilidade contra a presidenta Dilma foi admitida pelo Senado Federal, não restam dúvidas de que as pedaladas fiscais foram apenas o pretexto que a nova e a velha oposição precisavam para a solução de uma série de problemas. O primeiro deles era a cadeia. Por isso o “conjunto da obra” precisou ser exaustivamente enfatizado para justificar a deposição da maior chefe de Estado do país graças a crimes que até então não haviam deposto chefe algum e que certamente nunca mais iriam depor.

O problema é que o impeachment não entregou, até aqui, rigorosamente nada do que prometeu. A economia não deu sinal algum de recuperação. A corrupção, então, não apenas não acabou como levou para os primeiros escalões do governo alguns de seus maiores símbolos. Romero Jucá, que deixou bem claras, em gravações, quais as intenções da classe política com a “solução Temer”, foi citado cento e cinco vezes só na primeira delação da Odebrecht. Ainda faltam setenta e seis.

Mas tem mais. Mesmo entre muitos dos contrários à destituição de Dilma, vigorou a tese de que o impeachment traria o mínimo de estabilidade institucional para o país. Não foram poucos, incluindo parlamentares, que alegaram a falta de governabilidade como fator decisivo para o fim do ciclo petista no poder. E o que se viu foi justamente o contrário.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa fez uma dura leitura do processo. Chamou de “encenação” tudo o que correu após o rompimento da base aliada. E a utilização do impeachment – estatuto excepcionalíssimo previsto para atentados de um presidente contra a Constituição – para finalidades torpes como as francamente admitidas minou, de uma só vez, qualquer equilíbrio institucional ainda restante e a propalada ideia de que no Brasil o poder Executivo tinha os demais sob suas asas.

Na passagem mais significativa da reflexão, diz Barbosa: “No momento em que você mina esse pilar central, todo o resto passa a sofrer desse desequilíbrio estrutural. Todas as teorias dos últimos 30 anos, de hipertrofia da Presidência, de seu poder quase imperial, foram por água abaixo. A facilidade com que se destituiu um presidente desmentiu todas essas teses. No momento em que o Congresso entra em conluio com o vice para derrubar um presidente da República, com toda uma estrutura de poder que se une não para exercer controles constitucionais mas sim para reunir em suas mãos a totalidade do poder, nasce o que eu chamo de desequilíbrio estrutural. Essa desestabilização empoderou essa gente numa Presidência sem legitimidade unida a um Congresso com motivações espúrias. E esse grupo se sente legitimado a praticar as maiores barbáries institucionais contra o país”.

A fala de Barbosa dividiu petistas. Houve aqueles que comemoraram, graças à sua autoridade simbólica. Mas também houve aqueles que lembraram cenas nebulosas de sua passagem pelo STF. Numa discussão com Barroso durante o julgamento dos embargos infringentes na Ação Penal 470, a do Mensalão, o então presidente da corte e do Conselho Nacional de Justiça assumiu ter agravado penas para evitar a prescrição dos crimes ou, ainda, o direito dos condenados ao regime semiaberto de prisão. Acabou se tornando alvo de ataques de toda espécie da militância governista na época, inclusive racistas. Ainda hoje Barbosa é chamado de “capitão-do-mato” por uma parcela considerável da esquerda.

De qualquer forma, a sua leitura do processo de impeachment não poderia ser mais precisa. E, acrescente-se, num país em que a ditadura é a regra e as eleições a exceção, de uma hora para outra um projeto rejeitado por 14 anos nas urnas recebeu carta branca para que, enfim, alguém pagasse o pato. Porque o da Avenida Paulista já foi embora faz tempo.

E não demorou para que o legislativo se articulasse em favor dos próprios interesses. Desde o impeachment, ventilou-se com força nos corredores do Congresso Nacional a ideia de que o caixa 2 – um crime relativamente leve mas com os dias contados nessa condição – poderia ser anistiado. Era a única salvação para muitos parlamentares até aqui coadjuvantes nas delações.

Mas já era tarde. O Ministério Público, já protagonista – também graças ao incentivo da oposição parlamentar ao PT – em apresentações de Power Point e entrevistas coletivas com teor de espetáculo, abriu fogo de vez contra o Congresso. Procuradores acusaram abertamente deputados de desfigurarem, na calada da noite posterior à imensa tragédia nacional com o voo da equipe da Chapecoense, o pacote de medidas contra a corrupção, elas próprias resultado de muita indignação contra as instituições e de pouca afinidade com princípios constitucionais como o direito à defesa e a presunção de inocência.

No programa Roda Viva, da TV Cultura, a procuradora Theméa Danelon chegou a dizer, questionada sobre os métodos não muito democráticos de detecção de corrupção na administração pública – como, por exemplo, os “testes de integridade” que submeteriam servidores públicos a situações forjadas de suborno –, que a Operação Lava-Jato representa o “ponto fora da curva”, o “alinhamento dos planetas”.

Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato, tem percorrido o país concedendo palestras em igrejas sobre o tema da corrupção. Em todas elas, pede que os fiéis curtam sua página no Facebook. No dia seguinte à votação das 10 Medidas pelo Congresso, os procuradores chamaram a imprensa para uma ameaça coletiva de renúncia.

Há quem considere, aliás, que o próprio Ministério Público vazou a delação de Claudio Melo Filho, primeiro executivo da Odebrecht a falar, para retaliar a base aliada do novo governo, antiga oposição que agora promete combater os vazamentos outrora celebrados com entusiasmo junto à militância antipetista. Gilmar Mendes, o ministro do STF que passa boa parte do tempo nos noticiários ironizando declarações de desafetos, já sinalizou que o vazamento pode comprometer a homologação do depoimento. Quando vieram a público as conversas entre Dilma e o ex-presidente Lula, no auge da crise política, Mendes disse não ver irregularidade alguma nas interceptações – ainda que tenham sido autorizadas por um juiz de 1ª instância e algumas delas realizadas após o prazo determinado – e pediu que tão somente o seu conteúdo fosse observado.

Uma analogia costuma ser muito usada por juristas para explicar o significado de uma Constituição. Ela diz que a carta é como o mastro em que Ulisses foi amarrado para não sucumbir ao irresistível canto das sereias numa ilha do Mediterrâneo. Hoje, o canto das sereias vem de parte do próprio Judiciário. Mas há pouca gente disposta a resistir como Ulisses. Depois de anos aplaudindo e incentivando abusos, o jornalismo também tem se tornado alvo de alguns deles. Já são pelo menos dois casos recentes de determinação judicial de quebra de sigilo de fonte. Tornadas corriqueiras, as arbitrariedades já não chocam mais ninguém.

O fato é que a fragilidade do discurso anticorrupção que sustentou a militância antipetista, escancarada sobretudo após o impeachment, consolidou uma confusão generalizada entre atribuições e a sensação de que tudo é permitido, inclusive, e principalmente, a política fora da política. Desde 2013 – ano do maior rebento anti-institucional já visto no país –, alguns dos favoritos à presidência da república no Brasil são juízes tratados como heróis de uma nação desamparada pelos seus representantes eleitos.

O próprio juiz Sérgio Moro não faz a menor questão de se resguardar, em meio à maior operação de combate à corrupção da história do país, para desfilar ao lado de lideranças que dela são alvo. Que não prove nada sobre a tão alegada ligação do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba com políticos tucanos, as fotos divulgadas com Aécio Neves numa cerimônia que deu a Michel Temer o prêmio de “brasileiro do ano” só alimentam a sensação de desconfiança. Estampado em camisetas e avatares de redes sociais, Moro segue dando entrevistas e palestras país afora, militando em favor de alterações na lei. Uma delas, que acabou incluída no texto-base das 10 Medidas Contra a Corrupção, admite a coleta de provas ilegais em casos de “boa fé”. Moro chegou a parar um show do Capital Inicial para um minuto de palmas antes de “Que País é Esse?”. Nas últimas semanas, tem ironizado advogados ex-presidente Lula.

Sergio Moro foi repreendido por Teori Zavascki graças à liberação das conversas gravadas entre a presidenta e Lula, ato em flagrante retaliação à nomeação do ex-presidente como ministro da Casa Civil, anunciada horas antes pelo Planalto. O ministro então ordenou que todo o processo envolvendo Lula, mesmo sem foro privilegiado, fosse remetido ao Supremo. Acabou virando boneco inflado com bóton do PT na Paulista e tendo o endereço do filho exposto por militantes da direita na internet.

Muito se apostou no protagonismo do centrão após a ascensão de Temer ao poder. A previsão tinha fundamento, afinal é também graças a ele que Dilma caiu e só com ele Temer pode ficar. Em certa medida, o triunfo do centrão também seria o triunfo da política. O da política ruim, diga-se. A dos acordões. Mas a verdade é que o castelo de cartas que se tornou o conjunto de instituições brasileiras não vai resistir por muito tempo sem uma guinada que radicalize a democracia e as aproxime de uma sociedade hoje completamente subrepresentada pelo poder instituído. Donald Trump é apenas o exemplo mais extremo de uma tendência global, para onde o Brasil caminha a passos largos. E não existe outro nome para ela senão a barbárie.

Ainda que sem precedentes, a decisão de Renan Calheiros esteve amparada na percepção – correta – de que, neste momento, quase tudo é possível aqui. Renan apostou alto e venceu a queda de braço com o Supremo, que se rendeu e devolveu Renan ao cargo dessa vez em nome dela, a estabilidade institucional.

O Planalto, que, desconfiou o próprio Calheiros, encorajou movimentos sociais a fritarem-no para aliviar Temer, poupado nos últimos protestos contra a corrupção, agora do Congresso e não mais do governo, agiu rápido para remendar os danos que a perda de um aliado tão importante poderia causar diante da dependência do Legislativo. Todos os poderes comemoraram a decisão do Supremo. Renan adiou momentaneamente então a votação do projeto de abuso de autoridade, que tem como alvo o Judiciário e vinha sendo duramente criticado por magistrados. De volta à cadeira de onde nunca caiu, antecipou em algumas horas a votação em 2º turno da PEC 55, aprovada por somente 24% da população.

Em 12 minutos o Congresso mais contestado de todos os tempos traçou o destino de um país inteiro por duas décadas.

Quando a harmonia parecia ter voltado a reinar entre os três poderes, Renan Calheiros voltou a falar sobre a lei do abuso de autoridade. A pedido do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), o ministro do Supremo Luiz Fux mandou o pacote anticorrupção de volta à estaca zero na Câmara dos Deputados. Justificou a decisão dizendo que a proposta original foi alterada. Gilmar Mendes reagiu com força, sugerindo que o colega entregasse de vez as chaves do Congresso à Lava-Jato. Quando a nomeação de Lula foi anulada por um juiz de 1ª instância, um assumido militante pró-impeachment, Gilmar Mendes referendou a decisão.

A presidente do órgão, Carmen Lúcia, já avisou que só submete a liminar de Fux ao plenário no ano que vem.

Seja como for, o fato é que o que era uma crise política tornou-se, na verdade, uma crise institucional sem precedentes. E o grande desafio dos poderes em 2017 é recuperar o mínimo de uma credibilidade diluída por anos de conflitos permeados por abusos de todos os lados.

Durante a abertura do 10º Encontro Nacional do Poder Judiciário, no dia seguinte à sessão que manteve Renan Calheiros na presidência do Senado, Carmem Lúcia disse esperar que a sociedade não deixe de acreditar nas instituições. Importante o apelo. Se ela já não tivesse deixado.

Nota da redação: 2016 tá tão louco que nosso designer colocou o Voltaire no lugar do Montesquieu.

 

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