“Que outras coisas fazes, além de fabricar ladrões para então puni-los?” (Thomas Morus)
Por Rodrigo de Medeiros Silva, Estado de Direito
Até quando?
No final de 2016, usando a linguagem das redes sociais, “viralizaram” posts de que os fatos negativos do ano não acabavam. Foram principalmente no campo político e social. Isto teve a ver com o avanço de valores condizentes mais com regimes que negam e violam direitos. Uma escalada que se refletiu em guerras, golpes e eleições de candidatos com plataformas fascistas. Mas, sem nenhum fundamento racional, sempre a virada de ano alimenta esperanças. Só que o cartão de visita de 2017 não foi promissor:
– Dia 02 e 03 de janeiro foram 60 mortos, em chacina no complexo de presídios em Manaus-AM;
– Dia 06 de janeiro foram 31 mortos na penitenciária agrícola de Monte Cristo, em Roraima.
Não foram acidentes
Diferente do que classificou o Presidente ilegítimo Michel Temer, estes acontecimentos não foram um “acidente pavoroso”. Da forma que o sistema penal e carcerário se organizam não poderiam gerar nada mais do que discriminação e violência. O que sistematicamente a sociedade e o Estado brasileiro fazem só produz mais violência. Esta é generalizada, mas é claro que recai de forma desproporcional nos segmentos historicamente marginalizados, inclusive, desmistificando a alegativa de que o racismo no Brasil não seria tão forte. Basta ver os dados Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM)/Datasus, do Ministério da Saúde. Estes mostraram que 77% jovens mortos em 2012 eram pretos e pardos. O Mapa da Violência mostrou que de 2002 a 2012 foram vitimados 73% a mais negros do que brancos, por homicídio. E dentro do tema central deste artigo, em 2012 havia 292.242 negros presos e 175.536 brancos, ou seja, 60,8% da população prisional era negra, conforme o próprio Governo Federal.
Ao contrário do que o senso comum propaga, que falta punição, que ninguém “pega cadeia”, que predomina impunidade, o Brasil fica em 3º ou 4º no ranking dos países que mais encarceram sua população. Ressalte-se que condenando seu próprio futuro, pois, em vez de gerar oportunidades, nega direitos a boa parte de sua população. As aparências, ritos e jargões do direito penal não conseguem esconder para o que realmente ele serve, conter os setores desfavorecidos, pela desigualdade estrutural de nossa sociedade. Metade das prisões efetuadas entre 2008 e 2012 foi por questões patrimoniais, 20 % por entorpecentes e menos de 12% foram crimes contra a pessoa, de acordo com o Mapa do Encarceramento- os jovens do Brasil[1]:
“A questão social como causa básica da grande quantidade de crimes contra a propriedade e a ordem pública para estar, portanto, claramente estabelecida”[2].
Fórmula errada
Apesar do tráfico de drogas ser um dos grandes fatores de encarceramento e violência, o Ministro da Justiça do Governo, Alexandre de Moraes, repete bravatas de combate às drogas. Uma fórmula que demonstra ser contraproducente desde a famigerada lei seca americana, da época do famoso mafioso Al Capone. A superlotação dos presídios, desnecessariamente, gera mão de obra para o crime organizado e, por conseguinte, justifica todo um lucro obtido pela indústria das armas e segurança privada. Para além disto, bom observar que 18,7% dos presos brasileiros poderiam estar cumprindo penas alternativas, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, e 38% da população carcerária são de presos provisórios, como traz o Mapa do Encarceramento já citado acima.
Então, o Brasil está apenas encarcerando sua juventude, pois 54, 8% da nossa população carcerária é de jovens, de acordo e com o Sistema Integrado de Informação Penitenciária – Infopen, e lhes negando dignidade. esta negação de direitos, de dignidade segue entendimentos, assertivas como as do Deputado Jair Bolsonaro sobre detento, que, segundo ele, “tem que entender de uma vez por todas que o direito que ele tem é não ter direito”:
“O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.[3]
Algo irracional o tratamento de seu próprio povo como inimigo. Mesmo que este o fosse, numa hipótese sem fundamento, a Convenção de Genebra, que trata dos prisioneiros de guerra, a eles confere direitos e dignidade, reconhecendo sua condição de ser humano. Esta legislação parece ser mais firme se comparada a que regula os meios de comunicação nacional, pois protege os prisioneiros de insultos e curiosidade pública, o que não fazem, em regra, os programas policiais (art. 13). A honra dos prisioneiros de guerra deve ser respeitada (art. 14), e seus alojamentos deverão ser semelhantes ao das tropas que os detêm, quer dizer, os não prisioneiros (art. 25). Este último aspecto vai de encontro ao que se reverbera muito sobre os presos nacionais, de que suas celas não devem ter o mínimo de dignidade. Sendo a questão da dignidade dos alojamentos tratadas com metáforas sem coerência com a realidade prisional, trabalhando com o desconhecimento de boa parcela da população. O Secretário de Justiça e Cidadania do Rio Grande do Norte, Wallber Virgolino, assim o fez, comentando sobre a atual crise do sistema prisional do país: “presídio não é hotel e preso não é hóspede”.
Inimigos do estado
Na verdade o Brasil nega aos seus detentos até o direito à vida, como pode se depreender das afirmações de suas próprias autoridades. Sobre a fatídica chacina de Manaus, o Governador do Estado Amazonas, José Melo, afirmou que entre os assassinados “não tinha nenhum santo”. O então Secretário Nacional de Juventude, Bruno Júlio, foi mais além sobre o mesmo episódio, dizendo que se “tinha que fazer uma chacina por semana.” O país mata sua juventude dentro e fora dos presídios e justifica negando a condição humana das vítimas. São inimigos, os hostis judicatus do Direito Romano (incompatível com a Constituição de 1988), quando se retira a condição de cidadão, outrora bugres, quilombolas, passando a ser favelados, ou mesmo novamente comunidades tradicionais se atrapalharem o dito “desenvolvimento”: “ […] na realidade, o direito penal sempre aceitou o conceito de inimigo e este é incompatível com o Estado de Direito”.[4]
O pronunciamento da jornalista Fabélia Oliveira, no programa “Sucesso no Campo”, da TV Record de Goiás sobre o samba enredo deste ano da Imperatriz Leopoldinense, segue esta linha de negação de direitos, de retirada da cidadania. Numa franca defesa do agronegócio predador, disse que os indígenas deveriam morrer “de malária, tétano e parto”.
Importante neste debate perceber a relação que existe entre as penas e as formas de produção, a dinâmica político-econômica de cada sociedade:
“É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista, que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura[…]Somente um desenvolvimento específico das forças produtivas permite a introdução ou a rejeição de penalidades correspondentes[…] Portanto, se uma economia escravista acha que o suprimento de escravos insuficiente e a demanda pressiona, não se despreza a penalidade da escravidão. No feudalismo, por outro lado, não apenas esta forma de punição cai em desuso, quanto nenhum outro método foi descoberto para o uso da força de trabalho do condenado[…] A casa de correção foi o ponto alto do mercantilismo e possibilitou o incremento de um novo modo de produção[5].”
Vozes conservadoras muitas vezes se levantam saudosas pelo retorno de dinâmicas como estas, em larga escala, sem bem observarem a organização e demanda econômica. Muitos pedem, inclusive, trabalhos degradantes, como parte da pena, o que também contraria o tratamento dado a um inimigo de guerra, se observada a Convenção de Genebra (art. 52). Contudo, o mercado/estado achou já um jeito contemporâneo de lucrar com o sistema prisional, a sua terceirização. É sabido de todos que campanhas eleitorais e carreiras políticas, muitas vezes, são financiadas por relações escusas de poder, que envolvem licitações e contratações públicas. Do ponto de vista de uma ética fundada no ser humano e não no lucro, caberia uma apuração sobre a propriedade das diversas empresas terceirizadas que prestam serviços aos entes federados. Válido lembrar que os presídios da chacina de Manaus eram terceirizados.
Ciclo vicioso sem fim
Válido também ressaltar que, em tempos de “Operação Lava Jato” e “10 medidas contra corrupção”, vê-se ainda na sociedade espetáculo o continuo uso do direto penal como instrumento de segregação social. Há quem se engane sobre seus efeitos, pelo perfil dos presos nesta Operação. Mas de fato o que se discute é flexibilização de direitos e garantias, a serem avaliadas por uma elite da burocracia estatal, que não se identifica com a maior da população.
Alguns vão dizer que a sociedade brasileira vive em guerra, justificando este tratamento com sua própria população. Mas não se percebe o ciclo vicioso de violência, que não se quebra. Continua-se a trilha de uma sociedade excludente. Na verdade, se intensifica. O Golpe em 2016 e as eleições municipais mostraram a valorização destas concepções que negam a maior parte da população direitos fundamentais, como já dito. O debate necessário não é sobre responsabilização e impunidade e sim, sobre inclusão social.
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*Rodrigo de Medeiros Silva é Articulista do Estado de Direito, formado em Direito pela Universidade de Fortaleza, especialista em Direito Civil e Processual civil, no Instituto de Desenvolvimento Cultural (Porto Alegre-RS).
Referências
[1] Disponível em: http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0010/1092/Mapa_do_Encarceramento_-_Os_jovens_do_brasil.pdf. Acesso em 10 de jan 2017.
[2] RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 16
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 11
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 25
[5]RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 19
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Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil