Por Victor Martins Pimenta, no Justificando
Na última quinta-feira (5), o Justificando publicou o primeiro de uma série de três artigos de minha autoria sobre a atual escalada punitiva no país. Argumentei, ali, que vivemos em grande parte do mundo um momento de recrudescimento punitivo e perda de solidariedade social, sendo o fenômeno brasileiro agravado por um governo que promove a agenda repressiva e a divisão da sociedade entre “mocinhos” e “bandidos”, legitimando contra os últimos toda sorte de horrores.
Tentei demonstrar, também, que essa agenda governamental não está dissociada das expectativas da sociedade, em grande medida aderente ao discurso punitivista, contribuindo para uma cena de guerra em bairros periféricos do país, que vitima sobretudo os mais vulneráveis tanto à violência quanto ao encarceramento, justamente os jovens, negros e pobres.
O objetivo do artigo que segue é analisar esse contexto, abrindo campo para a discussão sobre uma agenda progressista nas áreas da segurança pública e do sistema prisional.
Análise
Podemos olhar para a barbárie punitiva em nosso país e buscar compreendê-la por diversos caminhos. Em meu ponto de vista, sinto que precisamos convergir reflexões ao menos sobre duas dimensões sociais que geralmente são observadas de forma apartada, mas que me parecem intimamente conectadas. De um lado, devemos identificar e nomear as funções reais que o sistema penal assume na sociedade brasileira, dizendo claramente, como faz Vera Andrade, que o ‘papai noel sistema penal está nu’.
Quer dizer: deixar as ilusões de lado e encarar o sistema punitivo e suas agências pelo que são e não pelo que prometem ser. De outro lado, precisamos entender como a violência se banalizou entre nós, legitimando esse sistema penal que é seletivo, truculento e voltado à neutralização ou mesmo à eliminação do “outro” – o jovem negro e pobre que elegemos chamar de “bandido”. Tudo isso sob o nosso caloroso aplauso.
Começo pela segunda questão, pois é ela que me tira o sono ultimamente. Seja entre políticos, agentes públicos, juízes, promotores ou entre a população em geral, as demandas para lidar com a insegurança social estão mudando de tom, não se limitando mais a pedir políticas mais repressivas na segurança pública ou penas mais duras contra aqueles nos quais colamos a etiqueta de “criminosos” – aspectos que, bem ou mal, encontram-se dentro da arena da “disputa política” democrática. Fomos além: chegamos ao ponto de pedir o verdadeiro extermínio de quem nos incomoda, pouco importando sua trajetória de vida, o crime que (supostamente) cometeu, ou mesmo as consequências que a institucionalização de massacres, chacinas e assassinatos a sangre frio pode trazer para nós mesmos e para a sociedade em que queremos viver.
A tônica crescente é “bandido bom é bandido morto”, “queria ver uma chacina por semana”, “nenhum dos mortos [nas chacinas] é santo”. Vale lembrar que a última frase, dita pelo governador do Estado do Amazonas e apoiada por muitos, surgiu em momento em que grande parte dos presos mortos não havia sequer sido identificada. Pouca importa: a esse conjunto indeterminado de “eles”, os “bandidos”, queremos a morte.
Se esse sentimento existe e está se agravando, a pergunta que devemos urgentemente nos fazer é: de onde ele vem?
Responder a essa pergunta é fundamental, seja para um alerta sobre onde estamos indo (e a História nos mostra que esse destino pode ser bastante macabro), seja para construirmos estratégias para reverter o quadro – o que pode ser útil em variados campos de militância e vivência: a academia, a gestão pública, o sistema de justiça, as relações interpessoais e familiares, até mesmo as redes sociais.
As cenas bárbaras vistas nos massacres entre presos, em Amazonas e Roraima, nos lembram que o potencial de crueldade do ser humano é infinito. Somos capazes de matar, queimar, mutilar – de fazer isso, coletivamente, contra dezenas de pessoas. Assumindo que a maldade não é algo genético, que preponderaria entre os pobres e pretos que povoam os cárceres do país, temos que reconhecer que há condições específicas em que esse nosso lado humano mais sombrio pode aflorar. E temos que estar vigilantes para nos afastar desse caminho.
Na História já vimos que essas mesmas cenas de horror já foram protagonizadas por gente de perfil bastante distinto e que não se encaixa no estigma dos “bandidos” nos quais projetamos hoje a “desumanidade” (talvez para não nos reconhecermos em seus atos). O mesmo mal esteve presente nos funcionários arianos de Auschwitz ou nos jovens e bem educados militares argentinos que habitavam e circulavam às centenas alegremente no Casino de Officiales, onde, à vista de todos eles, presos políticos eram torturados e dali partiam para serem assassinados nos “voos da morte”, atirados ainda vivos no Rio del Plata.
Interessa aqui, portanto, a falta de alteridade e solidariedade que cresce entre nós, que vivemos do lado de cá das grades, legitimando uma escalada punitiva que, ao promover o ódio, só faz agravar a violência e ampliar as vítimas, entre mortos e encarcerados, nas trincheiras daqueles que elegemos como “inimigos”.
O que nos move para essa direção?
Afirmar que se trata de uma resposta à violência crescente que assola o Brasil não parece uma opção, ao menos capaz de explicar a totalidade do fenômeno. De fato, muitos de nós vivemos em territórios dos mais violentos do mundo – o que, vale lembrar, não se aplica aos mais ricos, provavelmente a maior parte dos leitores deste artigo. Também vale lembrar que, como já exaustivamente demonstrado em estatísticas e pesquisas na área de segurança pública, o perfil das vítimas da violência é o mesmo perfil das vítimas da política de encarceramento no atacado promovida pelo Estado brasileiro; o mesmo perfil daqueles que queremos ver mortos nas chacinas.
Também importa recordar que o aumento da violência não se relaciona necessariamente com uma escalada punitiva, e uma escalada punitiva não está relacionada necessariamente com o aumento da violência. Na verdade, o “medo” e as demandas por mais repressão e punição tem pouca ligação com o perigo real resultante da violência social. Indo além: mesmo a conexão entre o “medo do outro” e a demanda por puni-lo ou mata-lo só se estabelece positivamente em uma forma particular de sociabilidade, especialmente quando solidariedade e alteridade deixam de ser fatores relevantes na mediação das relações humanas.
Há também quem atribua à crise econômica esse mal ascendente, que aparece na iminente expulsão de milhões de imigrantes dos EUA, na xenofobia europeia que fecha as portas a refugiados flagelados pela guerra ou nas tão celebradas chacinas de pobres e pretos presos ou soltos no Brasil. Pode ser que algo dessa relação exista, seja pelo viés do estruturalismo penal mais ortodoxo, que atribui o aumento da repressão a momentos de crescimento do “exército industrial de reserva”, atualizado para as multidões de desempregados de hoje; seja pelo viés da psicologia social em um capitalismo individualista, no qual compensamos nossa angústia e frustração material com a radicalização da rejeição aos direitos dos outros, a ponto de negá-los a própria humanidade e o direito à vida.
Por outro lado, não é um dado irrefutável da natureza humana que a solidariedade se desfaz, necessariamente, em momentos de crise. Trajetórias de povos oprimidos, a exemplo dos judeus, tibetanos ou africanos escravizados nos mostra que os laços de alteridade podem se fortalecer nos momentos mais difíceis.
A assertiva em ponta-cabeça tampouco é uma certeza histórica: o próprio Brasil viveu, nas últimas duas décadas, um momento de acelerado crescimento do número de pessoas presas, ao mesmo tempo em que as condições sociais da população experimentaram lenta, mas constante, melhoria. Não parece haver uma correlação tão forte assim, portanto, entre prosperidade e solidariedade, ou entre pobreza e punitivismo.
De onde vem tudo isso, então? Refletir sobre a maldade humana é um enorme desafio, e pessoalmente não sinto que tenho repertório para tanto. Mas ela (a maldade) está aí, banalizando-se entre nós.
Hannah Arendt, buscando entender as origens de uma forma específica de totalitarismo, a que afligiu de forma inacreditavelmente cruel seu povo, o judeu, identificou a origem dessa maldade em três pilares centrais: o antissemitismo, o imperialismo e o racismo. Como bem ressalta Luciano Oliveira, ela não falava bem de “causalidades” ou de “explicações” para o fenômeno, mas de elementos que contribuíram para a cristalização de uma forma específica de governo.
Não sei se a leitura de Arendt é capaz de apreender de fato a experiência do nazismo e fascismo, mas posso dizer que ela certamente é insuficiente para a compreensão da realidade brasileira atual. Ainda assim, o olhar lançado pela autora me parece fundamental. Sem tentativas de teorização e abstração sobre os elementos que compõe ou que contribuem para a cristalização de nossa barbárie, capaz de fundamentar uma agenda política sólida e bem orientada na contenção da escalada punitiva, corremos o risco de construir nossa própria estrada rumo ao totalitarismo – hipótese que parece acadêmica aqui, mas que já impacta ano após ano na vida de centenas de milhares de jovens negros do país, mortos ou encarcerados por esse modelo de sociedade que promovemos.
Dos coliseus romanos, passando pelos campos de concentração nazistas e chegando até as nossas chacinas nas favelas ou cadeias que tantos aplaudem e querem ver mais, é difícil apreender qual a matriz de tanto mal. Mas algo que não pode ser ignorado, uma constante em todos os momentos nos quais a humanidade abraça a barbárie: os interesses de alguém e sua funcionalidade para a manutenção ou reprodução de estruturas sociais excludentes. A maldade humana e a falta de solidariedade com o próximo são funcionais às elites e talvez essa seja a mais recorrente tragédia na história dos sistemas penais.
Justo aí fica mais fácil enxergar que, tomado como abstração, nosso sistema penal não é bem-intencionado. Esse aparato complexo, composto por policiais militares e civis, promotores e juízes, gestores públicos e agentes penitenciários, todo esse sistema não está aí para proteger a sociedade, para promover a justiça ou para reduzir a violência – apesar da boa fé de muitos que atuam nas diversas instituições. Uma ingenuidade nessa percepção poderia nos fazer crer que bastariam “ajustes pontuais” e correções de rota para que ele – o sistema penal – assumisse legitimamente sua vocação natural e cumprisse assim suas missões anunciadas.
Bom lembrar, a esse respeito, que as raízes das instituições burocrático-penais brasileiras de hoje podem ser encontradas no processo de urbanização em uma sociedade escravagista, em uma transição do castigo privado para uma progressiva necessidade de gestão pública das punições contra os negros – escravos ou libertos –, na qual o Estado foi assumindo a função do feitor, na imagem de Leila Algrati. A abolição da escravidão (a liberdade do “outro”) só fez aumentar as demandas e aprofundar o processo de repressão.
Não são por “equívocos” que o sistema penal brasileiro concentra sua atuação contra os negros, que são a imensa maioria da população prisional. Pelo contrário, nossas agências punitivas nasceram com essa missão, já ostentando em suas origens as mesmas narrativas hoje utilizadas para “dourar a pílula” do racismo institucionalizado: a necessidade de manutenção da ordem, a proteção dos cidadãos de bem, a urgência de promover a justiça contra os delinquentes.
Tenho entendido que o sistema penal brasileiro cumpre, em verdade, as funções de (i) ampliar as ferramentas de controle social sob a promessa da promoção da segurança de todos, (ii) promover o medo generalizado e o controle sobre corpos e comportamentos, não pela certeza de punição pela justiça criminal, mas pela truculência de sistema penal sem mecanismos de contenção, que mata, pune e prende em ritmo acelerado e, enfim, (iii) assegurar a perpetuação de um capitalismo excludente, pela garantia (violenta) da “ordem” em um contexto de conflitos latentes decorrentes da extrema desigualdade que vige no país. Desenvolvo esse argumento em dissertação de mestrado defendida na UnB em setembro de 2016 e que será lançada como livro pela Editora Revan esse ano, não sendo possível reproduzi-lo integralmente nesse artigo.
O mal banalizado não é, portanto, tão-somente uma dimensão que se refere exclusivamente à subjetividade humana. Ele é um instrumento poderoso de manutenção das desigualdades e reforço de exclusões sociais, oferecendo uma nova roupagem que atualiza o racismo puro e simples, o revestindo de cores mais “tragáveis”. Ele é reforçado nas ruas, escolas, igrejas e bares, mas sobretudo nos meios de comunicação, como explica tão bem Zaffaroni.
Isso não quer dizer, contudo, que o aparato de segurança pública e justiça criminal não seja capaz, em absoluto, de produzir algo positivo para a sociedade. Mesmo com as limitações estruturais e institucionais postas, uma polícia pode ter base comunitária e contribuir efetivamente para a prevenção da violência. Juízes podem adotar práticas restaurativas e promover espaços mais arejados para a resolução de conflitos, em contraste com o processo penal tradicional.
Agentes penitenciários podem promover uma gestão prisional menos baseada na repressão e na aflição, focando na garantia de direitos e na oferta de ferramentas para a (re)construção de trajetórias das pessoas encarceradas, de modo a torná-las menos vulneráveis a novos processos de criminalização. Ademais, na ausência de outros caminhos, imensas legiões de vítimas desse país tão violento depositam legitimamente sua pretensão de justiça nas mãos sistema penal – e não chegaremos a lugar nenhum negando ou ignorando as pretensões legítimas das pessoas, o que nos exige muita disposição para escuta, diálogo e construção de vias alternativas e verdadeiramente emancipatórias.
Como busquei demonstrar no artigo anterior da série, o governo atual apresenta-se, em sentido contrário, como entusiasta do discurso repressivo, completamente descompromissado com a segurança social ou com a preservação de vidas. Basta ver o plano de segurança pública lançado recentemente pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes: nenhuma palavra, por exemplo, sobre desarmamento – medida apontada unanimemente por especialistas e por organizações da sociedade civil como ponto crucial para a redução de crimes violentos no país. O foco é a repressão, o aumento de pena, o reforço simbólico à divisão social entre “nós” (cidadãos de bem) e “eles” (bandidos), contribuindo para o esfacelamento da solidariedade e abrindo caminho a facadas para políticas antissociais do governo Temer.
Não quero, ainda mais diante das disputas políticas concretas sobre modelos de segurança pública, afastar a militância reformista. Como uma engrenagem fundamental em uma sociedade capitalista desigual e excludente como a brasileira, o sistema penal e o aparato burocrático-repressivo a ele associado não serão substituídos por algo diferente amanhã.
Ele persistirá, em sua essência, enquanto perdurarem as bases materiais e simbólicas que o justificam e legitimam. Assim, é enorme a importância de se denunciar as contradições gritantes desse sistema e de se buscar estratégias para incidir sobre suas práticas e institucionalidades viciadas. Precisamos, tanto quanto possível, afastar o Estado e suas políticas públicas do ódio e da maldade dirigida contra aqueles que queremos aniquilar, direcionando-a no sentido da promoção da vida, de todos e todas.
Assim, é importante entender o Estado e suas agências (inclusive as penais) como espaços de disputa, sendo possível minimizar as opressões, em uma agenda ao mesmo tempo taticamente reformista e utopicamente emancipatória. O próximo e último artigo da série se destina justamente a isso: apontar caminhos e elementos para uma agenda política progressista para os campos da segurança pública e da política penal e prisional.
*Victor Martins Pimenta, graduado em Direito pela USP e em Ciência Política pela UnB, é mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e foi Coordenador-Geral de Alternativas Penais do Ministério da Justiça (2014-2016).