“Sanitarização” da Cultura Indígena: Mais um conflito silencioso…, por Jairo Lima

Em Crônicas Indigenistas/Xapuri

Entre as muitas leituras que fiz nessas férias, deparei-me com algumas reflexões interessantes que me induziram a escrever mais uma vez sobre o que chamei em texto anterior de “conflito silencioso” entre as práticas universais de saúde e as chamadas práticas tradicionais dos povos indígenas que atentaram para a questão, e, em particular, um me chamou atenção, por designar uma prática que vem ganhando força em algumas aldeias, e que seus autores chamaram de “sanitarização indígena”.

Essa situação se dá quando, na defesa de uma suposta “cultura da prevenção”, se questionam, desestimulam ou se condenam certas práticas da cultura tradicional indígena, devido ao fato de, segundo os manuais de saúde e/ou cidadania, serem consideradas impróprias ou insalubres.

Por exemplo, o costume de alguns dos povos em preparar sua caiçuma utilizando-se no processo a “mastigação” de determinados tubérculos é algo que, sob essa lógica, deve ser condenado e deixado de lado. Também, certas brincadeiras, como sujar-se com lama ou que envolvam contato com a terra, são consideradas impróprias por exporem seus praticantes à situação de risco de contraírem doenças diversas.

Ou seja, a paranoia asséptica dos centros urbanos vai sendo transportada, de maneira equivocada, para dentro dos limites de terras indígenas onde, certamente, em muitas aldeias, uns dos poucos focos de doenças seriam os próprios nawa que atuam ou visitam as comunidades.

Fiz alguns contatos, li outros materiais e, após conversas com alguns txai, confirmei a informação de que agentes de saúde indígena e professores são impelidos a repassarem insistentemente às comunidades os padrões “corretos” de higiene e saneamento que, segundo foram orientados, é o que deve ser seguido por todos. E assim, em nome de uma “boa causa”, cria-se mais um vácuo dentro das práticas tradicionais, executadas com sucesso há séculos pela comunidade.

Já citei anteriormente sobre a necessidade de haver diálogo constante entre os conhecimentos tradicionais e universais, de maneira que, respeitando a singularidade de cada povo, seja possível construir políticas de ação em saúde (nesse caso, a preventiva) que, além de atingirem seu objetivo principal, também reconheçam e valorizem o conhecimento tradicional que, diga-se de passagem, é fruto de uma tradição oral complexa e de centenas de anos de prática e experimento.

E lá vem a vozinha na minha mente que sempre me contradiz: – Certo, mas antes os povos indígenas não tinham contato com tantas doenças. Hoje em dia, a coisa mudou e eles precisam se cuidar.

Claro, cara pálida! Mas é preciso haver mais abertura e, acima de tudo, entendimento, pois, desestimular esta ou aquela prática tradicional somente por “nojinho”, sem conhecer seu verdadeiro significado e sua importância para a dinâmica e manutenção de determinada sociedade, é fechar os olhos para a diversidade e o pluriculturalismo. Cegueira consciente que mais atrapalha do que contribui para a manutenção e sobrevivência de um povo.

Então, antes de se condenar uma prática é preciso fazer estudos que procurem atestar tal impedimento e, também, que mostrem o melhor caminho para se adequar os costumes culturais às práticas que se quer introduzir. É preciso entender que tão importante quanto à manutenção biológica da vida, a manutenção cultural de um indivíduo é quem o faz identificar-se com determinado grupo, dando-lhe características singulares.

Isso me lembra das palavras, ouvidas há muitos anos atrás e registradas no meu valioso diário de campo, da viagem realizada em 2002 aos Yawanawá. Trata-se de uma preleção que presenciei quando, na oportunidade, o cacique Biraci Brasil Yawanawá exortava a comunidade da aldeia Nova Esperança a evitar ir pra cidade e ficar por lá, envolvendo-se com os costumes locais.

Disse ele: o índio vai pra cidade e passa a querer ser e viver como o branco. Aí quer aprender os costumes dos brancos, achando que assim vai viver bem; depois que for igualzinho ao branco, porque aprendeu as coisas que ele sabe. Só que, este índio não vai virar branco, não vai ser aceito pela sociedade do branco. E o que ele vai ser então?

Pois, nem sabe mais ser índio, porque rejeitou a sua cultura, nem virou branco, mesmo tendo aprendido a viver na cultura deles. Então, sabe o que este índio vai ser? Eu sei e digo pra vocês.

Esse índio não vai ser NADA. Não vai ser NINGUÉM. Vai se transformar num ser vivo que só tem a vida, pois, o que faz ele diferente dos brancos é sua cultura, é o que ele aprendeu com seus pais e avós, é o que ele aprendeu com o pajé e os mais velhos, é o que ele pratica na sua cultura.

Poderia terminar exatamente aqui a crônica, após este excerto. Pois ele nos diz muito, sem precisar se alongar demais em linhas desnecessárias. Garanto a vocês que ainda hoje, ao ler essas palavras, uma profunda emoção me toma a mente.

Mas, a fim de dar mais corpo ao texto e à reflexão sobre o assunto da chamada “sanitarização” ou, como prefiro designar, a “paranoia asséptica do homem urbano”, acredito ser necessário seguirmos mais adiante em nossa conversa.

É indiscutível que os tempos mudaram. Os indígenas, em maior ou menor grau, tem contato com a sociedade envolvente, com suas benesses e mazelas e, por isso, é necessário adequar-se a esses “novos tempos”. No entanto, essa adequação deve estar em harmonia com os princípios socioculturais da comunidade e não em conflito com ela.

Tem que se evitar o caminho mais fácil da universalização ou padronização de conceitos e práticas, sob pena de se descambar para o perigoso terreno da “verdade suprema”, impregnada de preconceitos e estigmas sociais.

É preciso entender que, assim como os costumes e culturas são diferentes entre os Estados que compõem nossa Pindorama, também são diferentes e, em alguns casos, muito diferentes entre um povo indígena e outro. E mais ainda entre um povo indígena e os nawa (não-índio). Assim, não se deve universalizar, e sim, diferenciar a atuação e as políticas desenvolvidas nas comunidades.

O que pode parecer estranho para a maioria da sociedade pode ser perfeitamente normal para um determinado grupo. Por exemplo, quando vemos as crianças indígenas em tenra idade manusear facas e esviscerar animais, pode, em nossa limitada visão padronizada da “colmeia” que fazemos parte, parecer desleixo ou descaso com a proteção infantil.

No entanto, quando olhamos a mesma situação através do prisma sociocultural indígena, tal atividade não só é perfeitamente normal quanto faz parte do processo de aprendizagem desta criança.

Não dá para achar que a lama é algo prejudicial em todas as aldeias de todas as terras indígenas do Acre. Não é possível que se fomente, entre os indígenas, o preconceito e a intolerância para com a própria cultura.

A escola da comunidade e seus polos de saúde não podem se transformar em centros de intolerância para a própria cultura onde estão inseridos.

Ao contrário, devem ser referência não só para o seu fortalecimento, mas, também para a adequação dos costumes e dinâmicas da mesma. Esses centros devem atentar para as minudências e singularidades de cada povo, promovendo realmente a pluridiversidade.

Também é necessário que haja uma retomada da pesquisa e publicação de materiais didáticos e paradidáticos específicos para as comunidades indígenas. Do contrário, continuar-se-á a ter somente os materiais padrões e universais.

Atuei durante dez anos de meu indigenismo em ações de educação escolar no Acre e, ao me deparar com relatos de que algumas escolas em indígenas estavam reproduzindo totalmente a lenga-lenga das escolas da cidade, enxertando nas jovens mentes de estudantes indígenas conceitos e padrões monoculturais do nawa, fiquei bastante apreensivo.

É preciso desconstruir conceitos pré-estabelecidos para, em seguida, reconstruí-los sob nova perspectiva. É preciso entender que a universalização e padronização de ideias, posturas, e ideologias nem sempre se mostram prudentes quando são postas diante de uma cultura que, em seu cerne, está a íntima interação entre o ser humano e a natureza e, em âmbito coletivo de uma comunidade, na interação harmoniosa entre seus indivíduos e a dinâmica de relação entre estes, seu meio ambiente e sua cultura.

Atacar, desprestigiar ou denegrir qualquer aspecto cultural, seja de indígenas, de quilombolas, do que for, sem entender suas singularidades, além de crime, é contribuir, mesmo que inconscientemente, com a corrente nefasta do racismo e do preconceito.

Sempre digo àqueles que me procuram para saber mais sobre a cultura indígena que, no Brasil temos vários brasis. E dentro destes vários brasis temos outros tantos. Afinal, somos um país de dimensões continentais.

Assim, não temos só uma “cultura indígena”, temos várias, um verdadeiro mosaico, rico e complexo para se entender sem desnudarmo-nos de conceitos sociais e culturais estabelecidos por nossa sociedade padronizada.

E no que concerne aos serviços prestados pelas escolas e pelo serviço de saúde em aldeias, é preciso haver mais qualificação, mais interação e mais materiais de referência para os profissionais, sejam estes indígenas ou não.

Bato novamente na tecla: também é preciso diálogo, um bom punhado de prudência e bom senso. Esta receita faria muito bem não só para as comunidades indígenas como, também, para a qualidade dos serviços ofertados a elas.

Sempre fui uma pessoa avessa a conceitos universais por acreditar que tudo é relativo e depende da perspectiva pela qual olhamos o fato. Por isso, sempre tive dificuldades em aceitar conceitos, pois, para mim, nada mais é que uma palavra abstrata que tenta de todas as maneiras enquadrar em uma cinta de aço diferentes percepções de realidade.

Aprendi com indigenistas como a Dedê Maia que, para atuar junto aos povos indígenas, é preciso educar a língua, fortalecer a capacidade de ouvir e de memorizar, além de estar atento ao modo de portar-se socialmente em uma comunidade.

Aprendi também que é possível usar a cultura tradicional como base para qualquer tipo de aprendizado ou adequação de costumes sem, necessariamente, deturpá-la ou diminuí-la perante o que se quer fomentar.

Não devemos deixar que conceitos se cristalizem em nosso ser e se manifestem em nossa vida profissional, pois, fatalmente, seremos impelidos ao preconceito e, como bem disse Einstein: é mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito.

Muito se contestam, em nossa sociedade, as políticas públicas que não levam em conta os contrastes e singularidades de cada Estado ou de cada nicho social que existem nas cidades. E, em minha opinião, este desacordo é mais grave quando se tenta reproduzir estas políticas junto às comunidades indígenas, sem antes passá-la, pelo filtro necessário e garantido na lei.

Volto a lembrar das palavras do Biraci Brasil, e me vem à mente que, a grosso modo, somos impelidos a viver como abelhas em uma colmeia: todos iguais a serviço do bem comum, que não está muito claro ou não nos parece o mais correto.

Nós, que atuamos direta ou indiretamente junto a estes povos, precisamos estar atentos a esses movimentos de universalização de conceitos. Todos que tem contato com estas comunidades devem contribuir com esta reflexão.

Não podemos aceitar essa “sanitarização” sem alertarmos as comunidades e garantir que o assunto seja devidamente discutido e que, nesta discussão, sejam apresentadas provas contundentes que justifiquem a necessidade de adequação cultural ou mudança de hábitos sociais das comunidades.

É preciso garantir sim a prevenção e o atendimento à saúde da comunidade, mas, que este atendimento, além de boa qualidade, esteja intimamente ligado à comunidade que se destina.

Finalizo, citando as palavras de Clarisse Lispector que tão bem nos mostra o desafio que é viver em sociedade (a nossa): viver em sociedade é um desafio porque às vezes ficamos presos a determinadas normas que nos obrigam a seguir regras limitadoras do nosso ser ou do nosso não-ser…

Quero dizer com isso que nós temos, no mínimo, duas personalidades: a objetiva que todos ao nosso redor conhece, e a subjetiva… Em alguns momentos, essa se mostra tão misteriosa que perguntamos – Quem somos? Não saberemos dizer ao certo!!!

Pois é, cara Clarice, se nós não sabemos dizer ao certo quem somos, que condições temos de dizer quem os indígenas devem ser, certo?

Jairo Lima, “devidamente inserido na festa Katukina, 2004”

* Mabush – mingau de milho verde.

Jovens Yawanawa – Foto: Governo do Acre.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ana Beatriz Lisboa.

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