Na última semana, assunto veio à tona depois que um casal de caingangues que vendia produtos em Caxias foi agredido pela Guarda Municipal
Por Cristiane Barcelos, no Pioneiro
Os índios caingangues que vestiram cocares e empunharam lanças e flechas na Avenida Júlio de Castilhos, na segunda-feira, e repetiram o gesto no dia seguinte, durante reunião na prefeitura de Caxias do Sul, não desafiaram as autoridades apenas porque estavam descontentes com a fiscalização contra a venda de produtos irregulares nas calçadas ou abalados pela agressão a um casal indígena. O ato representou sim uma tentativa de reafirmar a própria cultura numa região onde indígenas são quase invisíveis. Serviu também para reforçar que a união do grupo, que vive numa aldeia em Farroupilha e busca boa parte do sustento no comércio ambulante, é vital para a própria sobrevivência.
Essa força pode ser constatada numa atitude aparentemente simples: enquanto a prefeitura convidara apenas um representante para participar do encontro que debateria a participação dos indígenas no comércio irregular de rua, os caingangues fizeram pressão para garantir que vários representantes da tribo estivessem frente a frente com secretários do prefeito Daniel Guerra. Os caingangues aceitaram o pedido de desculpas da secretaria municipal do Urbanismo, Mirangela Rossi, pela ação que prendeu dois índios que vendiam produtos na rua no sábado passado, operação fortemente questionada nas redes sociais e por antropólogos. Mesmo com o pedido de desculpas, eles não arredaram o pé do gabinete até ouvirem a promessa do governo municipal de que poderiam manter a atividade, ao menos até uma segunda ordem. Caso se sintam prejudicados outra vez, garantem: farão tudo outra vez.
Ressaltar a diferença
Para a antropóloga Beatriz Kanaan, ao carregar as armas típicas e vestir adereços, os indígenas tentam provar que preservam uma identidade.
— No momento em que dialogam com a comunidade branca, vamos dizer assim, estão equipados com o que resta da identidade deles. Em um mundo globalizado, parece que todos ficam iguais, mas eles tentam mostrar que não — analisa.
Na visão de Beatriz, a atitude também pode ser vista como uma inversão de papéis: se no passado ocupavam a terra quando os colonizadores chegaram, agora precisam se autoafirmar para encontrar o seu lugar. Para ela, as armas produzidas por eles também têm um valor simbólico:
— Parece que eles foram para a luta, mas simbolicamente. Eles estão falando na linguagem deles. Ah, e lembro que se fala de reação, não de ação.
Como no dia a dia se vestem com roupas tradicionais, são os traços físicos e a língua que os identificam quando estão pela Avenida Júlio de Castilhos comercializando chapéus, lenços e um pouco de artesanato. As lanças de madeira e com mais de um metro de comprimento ficam em casa — só foram levadas para a rua na segunda-feira, para uma possível defesa caso o episódio de sábado se repetisse, e na terça, no encontro na prefeitura, como símbolo da resistência. Na quinta-feira, por exemplo, parte dos índios pintou o corpo para receber a reportagem do Pioneiro e cantar músicas de boas-vindas.
A cacique Silvana Kréntánh Antônio assegura que a intenção não foi combater, mas se defender.
— Tudo aquilo que a gente já passou, desde o começo da nossa existência… E continua a discriminação. Há tempos atrás teve muito massacre e ainda acontece muito preconceito. Aquilo (o que ocorreu no sábado) foi chocante. Queremos mostrar que somos indígenas e que temos a nossa cultura. Cada vez que descumprirem algo vamos estar assim, pintados e de cocar — desabafa.
Aldeia deve ganhar mais casas
A maior parte dos indígenas da aldeia caingangue de Farroupilha vive em um terreno de cerca de 7 mil metros quadrados no bairro Nova Vicenza, em Farroupilha. Cerca de 55 pessoas vivem em 15 residências de madeira doadas pelo Estado e município — outras 29 moram em duas casas grandes em um terreno na Linha São Roque, mas pertencem à tribo e são liderados pela mesma cacique.
No espaço maior, no Nova Vicenza, algumas casas já apresentam sinais de apodrecimento. O lugar também conta com igreja evangélica, banheiros coletivos, água e luz.
Segundo os indígenas, um acordo firmado com a prefeitura de Farroupilha no ano passado prevê a construção de mais três casas por ano até 2020, último ano do mandato do prefeito Claiton Barbosa (PDT). Via assessoria de imprensa, a prefeitura informa que o assunto será retomado neste ano com a nova titular da Secretaria de Desenvolvimento Social e Habitação. A prefeitura não deu prazos para a construção das moradias.
Os indígenas não confirmam se a ideia é desmanchar residências antigas quando as novas forem construídas.
População flutuante
Em abril de 2015, a aldeia em Farroupilha abrigava 98 pessoas, 14 a mais do que a contagem atual. Segundo a cacique, Silvana Kréntánh Antônio, esse número varia porque há casos de índios que chegam em Farroupilha mas preferem voltar às cidades de origem, como Cacique Doble, Charrua, Tenente Portela e Planalto. Entre os motivos para ir embora estão as dificuldades, como a busca das matérias-primas para a fabricação de artesanato. Na mata próxima, por exemplo, já há pouca taquara e raramente encontram cipó. A solução é buscar material em propriedades privadas, quando os donos permitem a entrada dos indígenas para fazer a coleta. As linhas coloridas usadas em algumas peças são compradas.
Além de artesanato, eles comercializam produtos industrializados, centro da polêmica dos últimos dias — a prefeitura de Caxias havia dito que só poderiam vender itens produzidos por eles. Após a reunião de terça, os índios foram autorizados a manter a atividade até que um novo acordo seja feito — um documento assinado pelo Ministério Público Federal regula onde a atividade pode ocorrer, mas não especifica o que pode ser vendido.
Integrantes da tribo também oferecem produtos em Farroupilha, mas recorrem a Caxias porque o movimento na cidade é maior — e consequentemente, os lucros.
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Foto: Diogo Sallaberry / Agencia RBS