O volume 4 nº5 da Aracê – Direitos Humanos em Revista nos oferece dois dossiês. O primeiro tem por título “Dados e Atualidades da Pesquisa em Prisão no Brasil” e, além de uma apresentação escrita por Rafael Godoi, Fábio Mallart, traz oito artigos, assinados por Victor Martins Pimenta, Natália Bouças do Lago, Carolina Bessa Ferreira de Oliveira, Tiago Joffily, Airton Gomes Braga, Marcio Zamboni, Sara Vieira Antunes, Francisco Elionardo de Melo Nascimento e Monique Torres Ferreira. O segundo trata de “Violação de Direitos dos Povos Indígenas”, envolvendo diferentes visões da temática, conforme apresentação que transcrevemos abaixo.
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Apresentação do Dossiê
Por Danilo Paiva Ramos, Cauê Tanan e Spensy Pimentel1
É com grande satisfação que o Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas (FVDPI) apresenta o seguinte dossiê, a convite do Comitê Editorial da revista Aracê. Desde 2014, o Fórum se constitui como uma rede interdisciplinar e interinstitucional que atua buscando articular iniciativas de pesquisadores e ativistas do meio acadêmico e da sociedade civil brasileira em geral, a fim de combater, denunciar, monitorar e superar as graves situações de violação de direitos que acometem povos indígenas no país.
A realização de pesquisas, diagnósticos e propostas visa a servir de apoio a entidades do movimento indígena que se contrapõem à violência política de bancadas conservadoras (ruralista e evangélica) e de grupos aninhados no poder público e na iniciativa privada a serviço de grandes obras e projetos de “desenvolvimento” executados à custa de territórios indígenas. Para efetivar seus interesses, esses grupos conservadores vêm agindo de modo a violar os direitos constitucionais indígenas e os direitos humanos valendo-se, muitas vezes, de ações que culminam na morte, discriminação, expulsão territorial de diversos grupos indígenas e, assim, representam grande obstáculo na efetivação dos direitos dessas populações.
Em diversas situações, nos últimos anos, estudiosos reputados já apontaram que o atual período é o de mais duro ataque aos direitos indígenas desde os anos finais da ditadura militar no país. Entre as mais alarmantes agressões estão as inúmeras tentativas de aprovação de projetos de lei ou de emendas constitucionais que visam travar as ações de demarcação de terras indígenas, como a PEC215/2000 – que retira do Executivo e transfere ao Legislativo a palavra final sobre esses processos. Neste início de 2017, a portaria 68, do Ministério da Justiça, gestada sem nenhum debate público anterior, introduziu novos elementos para tornar os processos de demarcação ainda mais morosos, ao estabelecer a criação de um grupo de trabalho específico para analisar os relatórios de identificação produzidos e aprovados pela Funai. Tendo em vista o atual cenário de instabilidade política, não se pode dizer com certeza quais inovações serão de fato introduzidas nos processos, mas fica evidente que os setores interessados em atacar os direitos indígenas procuram fazê-lo incessantemente, com todos os instrumentos possíveis, estejam eles no âmbito do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário.
Outras formas recentes de violação de direitos indígenas estão relacionadas à expansão concomitante de duas frentes conservadoras, a ruralista e a evangélica. Ao mesmo tempo em que uma relativa melhoria nas condições econômicas e de acesso a direitos sociais, nos últimos anos, fortaleceu a luta de diversas populações pela recuperação de seus territórios, as débeis iniciativas do poder público para atender, finalmente, a uma série de reivindicações históricas resultou em uma onda de perseguições políticas, prisões arbitrárias e também agressões e assassinatos, como acontece nos últimos anos no Mato Grosso do Sul, com os Guarani-Kaiowa e Terena, ou no sul da Bahia, com os Pataxó e os Tupinambá de Olivença2.
Os artigos que seguem são, por vezes, resultado direto das discussões promovidas no âmbito do fórum. Vários deles foram apresentados originalmente em grupos de trabalho promovidos por integrantes do FVDPI, durante o VIII e o IX encontros nacionais da Andhep em 2014 e 2016 ou no IV Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Enadir) em 2015.
Em seu conjunto, levando em conta o caráter interdisciplinar do fórum, os textos tratam de aspectos tão diversos como: o histórico do processo de colonização até a história recente, passando pelas investidas do regime militar contra vários povos indígenas; aspectos jurídicos relacionados à morosidade no processo de demarcação de terras, a legislação indigenista, e a tese do “marco temporal”; o acesso dos povos indígenas a direitos sociais; a luta pela garantia da consulta prévia, direito previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Pode-se, portanto, compreender a diversidade dos assuntos e abordagens apresentados a partir do panorama dos ataques vividos pelos povos indígenas nos últimos anos. O artigo “Índios na Cidade: Afirmação de Direitos e Vulnerabilidades Sociais”, de Luis Roberto de Paula, trata da falta de acesso ou negação a direitos básicos de indígenas em contexto urbano como moradia, transporte, educação, saúde etc., buscando localizar esses grupos e identificar suas singularidades.
Outros dois artigos aprofundam o debate sobre projetos desenvolvimentistas relacionados a políticas nacionais e internacionais que afetam povos indígenas. O primeiro deles – “Os Projetos de Infraestrutura da IIRSA e a Violação dos Direitos dos Indígenas”, de Natália Carolina de Oliveira Vaz e Joaner Campello de Oliveira Júnior, trata de uma série de projetos político-econômicos envolvendo diversas nações (IIRSA) visando à exploração de recursos minerais na América do Sul. Já o segundo, “La Iniciativa Yasuni-ITT: del sueño de la moratoria petrolera a la pesadilla de los derechos coletivos”, de Javier Dávalos González e Samuel Silveira Martins, analisa a luta pela participação política de grupos indígenas na Amazônia equatoriana frente a projetos de desenvolvimento, situação em que a consulta prévia se torna mecanismo-chave para a garantia de direitos.
O Poder Judiciário, como se sabe, sobretudo depois de 2008, com o emblemático julgamento da TI Raposa Serra do Sol, também tem sido palco de disputas envolvendo tentativas explícitas de tolher direitos constitucionais garantidos pelos povos indígenas. Entre os aspectos jurídicos, a anulação da demarcação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul (MS) pelo Supremo Tribunal Federal e a violação de parâmetros internacionais de direitos humanos são o tema de “Morosidade na demarcação, violência decorrente e o direito à terra dos Guarani Kaiowá”, de Konstantin Gerber e Rafaela Paula Ribeiro Mendes. No mesmo sentido, o artigo “A tese do “marco temporal da ocupação” como interpretação restritiva do direito à terra dos povos indígenas no Brasil: um olhar sob a perspectiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, de Bruno Pegorari, reconstrói a trajetória jurídica que levou a um ambiente de fragilidade pelos conflitos interpretativos entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Uma das poucas iniciativas federais relevantes para os direitos indígenas, ainda assim com incidência indireta e a partir de um processo interrompido pelas bruscas transições políticas que temos vivido, a experiência da Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2012-2014) e sua interface com a recuperação de documentos, relatos e testemunhos relativos às violações dos direitos humanos de povos indígenas durante o período de 1946 a 1988 é outro tema que envolveu pesquisadores ligados ao FVDPI e que, nesta coletânea, faz-se também presente por meio de dois artigos. O primeiro, intitulado “A Violência Física e Cultural contra os Povos Indígenas durante o Regime Militar”, de Carla Daniela Leite Negócio, evidencia o uso do aparelho de Estado no período ditatorial brasileiro trazendo danos, às vezes irreparáveis, aos povos indígenas. Para isso, o artigo faz uso de dados do Relatório da CNV publicado em 2014. Já “Povos Indígenas e Justiça de Transição – reflexões a partir do caso Xetá”, de Edilene Coffaci Lima e Rafael Pacheco, também parte da análise do relatório mencionado (e de suas ramificações estaduais) para trazer à tona o modelo de ocupação territorial dos militares e suas ações de expropriação de terras envolvendo massacres e expulsões de indígenas.
Finalmente, vale dizer que destacamos dois textos especiais como introdução ao dossiê. Eles representam, também, uma importante amostra do tipo de trabalho que a articulação oferecida pelo FVDPI pode proporcionar. Uma vez que já circula na internet há alguns meses, o primeiro deles é, portanto, uma republicação autorizada pelo autor, Eduardo Viveiros de Castro. Intitulado “Os involuntários da Pátria”, trata-se, na verdade, do texto que embasou uma aula dada em praça pública na cidade do Rio de Janeiro pelo antropólogo, na Cinelândia, em 20/4/16, a convite do fórum. A atividade integrou um ciclo nacional de aulas públicas, sempre articuladas ou apoiadas por integrantes de nossa rede com a finalidade de apoiar o Abril Indígena, mobilização produzida pelo movimento indígena para promover em todo o país o debate público sobre as reivindicações desses povos quanto a seus direitos.
O segundo texto destacado em nossa introdução representa outro tipo de produção que o fórum pretende incentivar: trata-se de uma nota técnica, “O desmantelamento da política pública indigenista e o risco de genocídio de povos isolados e de recente contato no Brasil” de Fábio A. Nogueira Ribeiro e Fabrício Ferreira Amorim, em que dois experimentados indigenistas, servidores da Fundação Nacional do Índio, realizam uma denúncia pública, expondo, de forma didática e pormenorizada, as graves ameaças que pairam atualmente sobre o órgão, no que tange a sua ação junto às chamadas Frentes de Proteção Etnoambiental, em função do descaso generalizado com que a fundação vem sendo tratada.
O presente dossiê representa, assim, um primeiro apanhado dos trabalhos efetuados pelo FVDPI em seus dois anos e meio de existência, contribuindo para o debate acerca das violações de direitos dos povos indígenas e apontando caminhos interessantes para superá-las, neste difícil momento que o país atravessa.
A todas e todos uma boa leitura!
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- Editores temáticos deste Dossiê. Danilo Paiva Ramos é antropólogo, pesquisador (pós-doutorado) vinculado ao Departamento de Antropologia da USP. Membro do Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdëh e Hupd’äh (CAPYH), vem desenvolvendo ações de assessoria a movimentos indígenas desde 2007. É autor dos livros Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh e Nervos da terra: histórias de assombração e política entre os Sem-terra de Itapetininga-SP. Cauê Tanan é Mestrando em História pela Universidade de São Paulo. É pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA-USP) onde desenvolve pesquisa sobre processos de alcoolização entre indígenas. Spensy Pimentel é professor na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Mestre e Doutor em Antropologia Social pela USP. É também pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA-USP) e autor do livro O índio que mora na nossa cabeça – sobre as dificuldades para entender os povos indígenas. Os três são membros do Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas (FVDPI) da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP).
- A título de exemplo, em uma ofensiva inovadora no último dia 6 de janeiro, a Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ) emitiu uma nota de repúdio a um enredo criado pelos sambistas da Imperatriz Leopoldinense cujo tema para o próximo carnaval será “Xingu, o clamor que vem da floresta”. O incômodo maior foi gerado pelo verso “o belo monstro rouba as terras dos seus filhos”, em evidente alusão à usina de Belo Monte, que foi interpretado como se o alvo fossem eles, os ruralistas. Não sendo apenas um problema de interpretação, este engano revela que os ruralistas reconhecem, embora não assumam, sua autoria nas usurpações de terra contra as populações indígenas.
Foto: reprodução Inesc.
186 ARACÊ – Direitos Humanos em Revista | Ano 4 | Número 5 | Fevereiro 2017