Terra-barriga, por Oiara Bonilla

“abre teu corpo
para este medo
não venha tarde demais na vida
feche a tua parte das coisas
para essa carne presa entre céu
e terra, canta teus nervos e dança teu coração
dança teu corpo hoje
porque para a morte do mundo não
estarás,
dança teu corpo
dança tuas entranhas
não há mil maneiras,
viva você e viva eu
não há mil maneiras de estar vivo”
(Sony Labou Tansi)

Por Oiara Bonilla, inaugurando a Seção “O Grito”, na DR

Aí veio o ministro engravatado e disse: “terra não enche a barriga de ninguém”. Mas o que se sabe é que Terra sempre houve, e que sem barriga o mundo não existiria.

É.

Pra começar, do ventre da Jakoniro nasceram todos os bichos peçonhentos – talvez os ministros também, quem sabe, isso o mito não conta. O que se sabe é que o demiurgo, na medida em que o gambá tirava os bichos de dentro da barriga da Jakoniro, ia repartindo eles pelo mundo. As piranhas, ele jogava n’água, os jacarés nos lagos, as jararacas na terra firme, as arraias no rio, os escorpiões na areia, e assim todos os bichos peçonhentos foram ganhando seu lugar na Terra.

Da mesma forma procederam os Sete Irmãos primordiais em sua jornada por aqui, antes de subir para o céu e se transformarem nas Plêiades – as Sete Estrelas que anunciam a chegada do verão amazônico. Arpoaram a cobra d’água e do bucho dela extraíram o irmão mais novo que ensinou os humanos a ser gente de verdade, a comer comida de verdade, a sustentar-se na Terra. Dos paus das árvores, do barro e da palha foram feitos todos os povos. Os corpos de todos aqueles que povoam a Terra foram extraídos deles, da terra-barriga, da árvore-barriga, do barro-barriga, da palha-barriga. Dali a cobra saiu cavando os rios e igarapés, formando toda a calha sinuosa do Purus. Na medida em que os povos iam surgindo, o irmão mais velho também os repartia na Terra. Alguns nas margens dos rios, outros na terra firme, outros na beira dos lagos e dos igarapés e os brancos e seus ministros, esses aí, tiveram de se contentar com as cidades.*

Já escurecia, naquele dia de final de abril, na aldeia.  E as águas já começavam a baixar. O filho da G bateu na porta “vem, chegou a hora, mamãe mandou te chamar”. Desci rápido a escadinha torta da casa de palafita. G estava no terreiro da casa, andava para lá e para cá. O marido não estava. “Está sim, está na rede” disseram, “ele não pode chegar perto, nem sentir o cheiro”. As parteiras estavam lá, baldeando as tábuas da casa, fervendo a água, cortando as unhas. Panelas no fogo. Crianças sussurrando.

Hari’a kaho! (Aquieta)!” gritou uma mulher para uma menorzinha.

G caminhava lá embaixo, pra lá e pra cá, em silêncio. Sem parar, nunca.

Lembro do meu primeiro parto, do meu corpo cravado na maca fria, do cheiro do álcool, do éter e da luz branca. Tim-tim-tim-tim fazia aquela máquina do meu lado. Sem falhar. Carne e corpo perfurados, catéter na mão direita, a agulha grossa machucando. A dor. Eu me lembro. Meu corpo imobilizado, conectado, sob escuta. Sofrimento necessário para dar à luz. Diziam. Tudo monitorado.

G andava para lá. E andava para cá.
Por alguma razão não me lembro dos mosquitos nessa noite. Tudo estava suspenso, os insetos, o calor, o ruído do motor de luz da igreja, o zumzumzum das rabetas encostando no porto, os risos abafados das crianças dos vizinhos já deitadas nas redes, tudo muito quieto. Só o ir e vir de G.
Ziguezagues com barriga na escuridão. E o cheiro da mata e da terra esfriando com o cair da noite.

E se desse errado? E se fosse preciso uma maca? Um catéter? Um médico e suas ordens enigmáticas? Uma máquina? Tim-tim-tim-tim.

Contração.
A cada aperto uma parada. G se agacha. Respira. Se apoia no esteio da casa, levanta e segue. Retoma seu caminhar pra lá e pra cá. Já está tão escuro que não consigo enxergá-la direito. O silêncio me intimida. Medo meu. Cegueira minha, de branca.

Fórceps.
Assim tiraram de mim meu primeiro filho. Anestesia. Arrancaram ele com uma pinça gigante de metal. Des-anestesia. Tim-tim-tim-tim. Passou tempo demais. Tim-tim-tim-tim. Tudo monitorado. Arrancaram ele a ferro, no ápice da dor. Até ela própria me anestesiar de novo. A dor também anestesia, sabia? Tudo monitorado. “Ele passa bem, ficará com uma marca no rosto por uns dias. Agora abre as pernas porque temos que costurar”. Curetar. Costurar.
Procedimento normal.

Contração.
G senta no chão. “Você é grande, fica atrás dela e segura”. A cada contração o corpo dela se arqueia, seguro firme com todas as minhas forças o corpo atravessado pela dor.
Corpo-cadeira. Corpo-maca. Corpo-barriga. Força.

As parteiras massageiam a barriga sem trégua. Murmúrios. Força. Ajeitam a criança. Empurram ela para baixo, em círculos. O tempo passa. O calor volta, ele também com força, abafando o ar debaixo do mosquiteiro que nos protege do mundo lá fora.
Mosquiteiro-barriga.
Corpo-força. Tempo-força. Grito-força.
Suor. Exaustão e sangue.
O cheiro do sangue se mistura com o da terra esfriando na noite. Eu me lembro.

“Ele pula”, disseram as parteiras. “É como peixe quando a gente segura, escorrega”.

Contração.
Corpo-sangue. Suor ainda. Cordão. Placenta.
A mais velha levanta. “A placenta a gente enterra no pé de uma árvore, no mato. Para não ofender a criança. Para nenhum bicho peçonhento comer.”

Placenta-terra. Terra-barriga. Árvore-vida.

Para nenhum bicho peçonhento encher a barriga.

Para Fátima, com saudades.

*Versão livremente adaptada de trechos da mitologia do povo Paumari que habita os lagos e margens do médio curso do Rio Purus (AM).

Bebê Xikrin. Foto: Reuters.

 

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