A (des)Constituição de 2017 e pistas para revogá-la

Já é possível afirmar: mudanças impostas ao país pelo governo Temer, sem debate algum, revogam a Carta de 1988. É legítimo fazê-lo sem sequer um referendo?

Por Ivo Lesbaupin* – Outras Palavras

O processo a que estamos assistindo é a elaboração, sob as nossas barbas, de uma nova constituição, que joga a Constituição Cidadã no lixo. A Constituição de 1988, que tinha a missão de eliminar de vez o entulho autoritário e estabelecer bases democráticas para a nação, foi elaborada com intensa participação de cidadãos e cidadãs, durante mais de dois anos. Foi elaborada em amplo processo de negociação em que tomaram parte todos os setores da sociedade, parlamentares, partidos políticos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, indivíduos. Foram apresentadas 120 propostas de emendas populares, reunindo 12 milhões de assinaturas e, não custa lembrar, não havia internet nem celular.

A nova Constituição está sendo elaborada por encomenda de um governo ilegítimo e eivado de corruptos, inaugurado a partir do impedimento de uma presidente eleita pelo voto popular — impedimento, diga-se com todas as letras, sem crime de responsabilidade. Um governo ilegítimo que é aprovado por menos de 10% da população. Está sendo aprovada a toque de caixa por um Congresso onde mais da metade dos parlamentares está sob suspeita de corrupção, improbidade administrativa, recebimento de propinas ou caixa 2. Mais da metade dos parlamentares foi eleita com recursos de empresas (bancos, empreiteiras ou outras empresas, inclusive do agronegócio): tais políticos não representam os interesses de seus eleitores e, sim, os interesses de seus “compradores” (os financiadores de suas campanhas).

O governo tem enviado ao Congresso projetos de lei que revogam os direitos presentes na Constituição de 1988, o direito ao trabalho, o direito à proteção social, o direito à saúde, o direito à educação.

Veja-se o artigo 1º da Constituição de 1988:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
I –a soberania;
II –a cidadania;
III –a dignidade da pessoa humana;
IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V–o pluralismo político.
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

E o artigo 6º:

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (EC no 26/2000 e EC no 64/2010.)

Não se trata apenas dos direitos que constam da nossa Constituição, trata-se dos direitos humanos fundamentais,  aqueles que fazem parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948!).

Veja-se o artigo 23, parágrafo 1º, por exemplo:

“Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”.

Ou o artigo 25:

“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”.

Nenhum destes direitos ficará de pé com a entrada em vigor da PEC 55, a PEC do Teto dos Gastos (também conhecida como “PEC do Fim do Mundo” ou de “PEC da Morte”) ou com a lei da “terceirização universal”recentemente aprovada, com a reforma trabalhista que o governo pretende fazer votar. Os direitos sociais promulgados em 1988 estão sendo simplesmente descartados, supostamente para enfrentar a grave crise econômica por que estamos passando. Mas esta retirada de direitos não resolverá a crise econômica, apenas transferirá uma boa parte dos salários, aposentadorias e pensões da maioria da sociedade, dos trabalhadores, da classe média e dos mais pobres, para os mais ricos, para a elite. Para a maioria, a crise só vai aumentar.

O que o Congresso está votando hoje não são apenas algumas emendas constitucionais: ele está votando às pressas, sem debate com a sociedade, sob pressão de uma maciça campanha de propaganda e com apoio da grande mídia, uma nova Constituição. A maioria dos parlamentares está votando não com a sua consciência, mas com “incentivos” oferecidos pelo governo: isto é o que explica que o governo tenha uma maioria tranquila para aprovar seus projetos. Como diz a imprensa em sua linguagem rebuscada: o Congresso se tornou um “balcão de negócios” (com recursos públicos). Quando não se consegue o número suficiente de votos favoráveis, oferece-se um pouco mais e os votos mudam.

É este o país livre da corrupção que se queria? Com os parlamentares sendo corrompidos à luz do dia (ou melhor, à luz da noite)? Como é que um grupo de parlamentares vota uma matéria com uma posição e, no dia seguinte, sobre a mesma matéria, toma a posição contrária? O que se passou nesta noite para que o voto mudasse? E aquilo que aprovaram vai virar parte da nossa nova Constituição?

Para enfrentar a crise, exige-se, supostamente, a contribuição de todos: “cada um tem de fazer a sua parte”. Mas não: só se está cobrando da parte mais pobre da sociedade, da maioria. Dos mais ricos, dos 5% mais ricos da população, não se pede nada, não se cobra nada: nem imposto sobre lucros e dividendos, nem taxação de grandes fortunas, nem contribuição sobre transações financeiras. Ao contrário, eles ficarão mais ricos.

Os brasileiros não vão ser consultados sobre as leis que seus “representantes” estão aprovando? É legítimo mudar a Constituição, a Lei Maior do país, sem um referendo? Sem debate público?

Que democracia é esta, em que o soberano – o povo – não é chamado a decidir nem a opinar sobre o que estão decidindo em seu nome?

*Doutor em Sociologia pela Universidade de Toulouse-Le-Mirail (França), professor da UFRJ, coordenador da ONG Iser Assessoria (Rio de Janeiro) e membro da direção da Abong.

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