Patricia Fachin – IHU On-Line
“Imagina alguém entrando na sua casa, sentando no seu sofá, comendo da sua comida, sem nem mesmo te conhecer ou te pedir permissão, ou te dar abertura para dizer não. É assim que as usinas entram na vida dos povos indígenas: sem bater na porta, ocupam todo o espaço, mudam todo o ambiente, impactam diretamente na segurança alimentar dessas populações, nos seus sistemas simbólicos, na rotina, sem perguntar, sem dar outra opção ou saída”, dizem João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio, integrantes do Fórum Teles Pires, ao comentarem os impactos do complexo hidrelétrico de Teles Pires na vida dos povos indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, os integrantes do Fórum Teles Pires relatam as principais violações de direitos indígenas envolvidas na construção das hidrelétricas de Teles Pires e São Manoel, duas das quatro barragens que estão em construção no Rio Teles Pires e afluentes do Rio Tapajós, na divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará. Segundo eles, locais sagrados para essas comunidades, como o Karabixexe (cachoeira Sete Quedas) e o Dekuka’a (Morro dos Macacos), foram destruídos por causa das construções. “Karabixexe, se compararmos com as religiões cristãs, representa o Céu do povo Munduruku. Nesse local estavam as 12 urnas funerárias e outros artefatos sagrados. Não são artefatos arqueológicos, porque esse local era visitado pelo povo Munduruku, não eram resquícios de uma população antiga, era um lugar que fazia parte da cultura do povo. Dekuka’a é onde está a ‘mãe dos animais’, e os Munduruku vieram dos animais, ou seja, a destruição e a violação desses dois locais sagrados traz desordem na espiritualidade do povo Munduruku”, explicam.
João Andrade e Karla Dilascio relatam ainda que o Estudo de Componente Indígena – ECI, que compõe o Relatório de Impacto Ambiental das usinas hidrelétricas, está “incompleto”, e o mesmo estudo feito para a hidrelétrica de Foz do Apiakás foi reutilizado para a usina hidrelétrica de São Manoel. Além disso, informa, “das quase 20 Ações Civis Públicas – ACP relacionadas a esses temas, todas sofreram suspensão de segurança, alegando que a implantação das usinas é importante para a soberania nacional e deve seguir”. E denunciam: “O governo desconsiderou os atropelos e passou por cima dos direitos para implementar, a todo custo, essas hidrelétricas”.
João Paulo Soares de Andrade é graduado em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e mestre em Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é diretor regional centro-oeste da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, coordenador do núcleo de redes socioambientais do Instituto Centro de Vida e membro do Fórum Teles Pires.
Karla Dilascio é analista ambiental do Instituto Centro de Vida e integrante do Fórum Teles Pires.
O Fórum Teles Pires é uma rede coletiva que atua desde 2010 na defesa dos direitos dos atingidos e ameaçados por hidrelétricas e outros grandes empreendimentos no rio Teles Pires. O Fórum agrega movimentos nacionais como o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, organizações locais representativas dos assentados da reforma agrária, povos indígenas, ribeirinhos e pescadores, entidades parceiras da sociedade civil como a Comissão Pastoral da Terra – CPT, o Instituto Centro de Vida – ICV, o Centro Popular do Audiovisual – CPA e a International Rivers – Brasil – IR, além de pesquisadores vinculados a instituições públicas de pesquisa e ensino, como a Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, a Universidade do Estado do Mato Grosso – Unemat, a Universidade Estadual de São Paulo – UNESP e pesquisadores autônomos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os maiores “atropelos” no planejamento, licenciamento e implantação das hidrelétricas de Teles Pires e São Manoel?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – Estudo de Componente Indígena – ECI, que compõe o EIA/RIMA, incompleto. Além disso, o ECI foi feito para as usinas hidrelétricas de São Manoel e Foz do Apiakás, e o mesmo documento foi usado pela usina hidrelétrica de Teles Pires. O parecer do antropólogo responsável foi contrário à liberação da licença; a Funai também se posicionou contrária, as populações indígenas também se posicionaram contrárias, mas mesmo assim o licenciamento saiu.
Os seminários de apresentação dos resultados do PBAI muitas vezes são meramente informativos, nem a linguagem nem a metodologia são adequadas. Das quase 20 Ações Civis Públicas – ACP relacionadas a esses temas, todas sofreram suspensão de segurança, alegando que a implantação das usinas é importante para a soberania nacional e deve seguir. O governo desconsiderou os atropelos e passou por cima dos direitos para implementar, a todo custo, essas hidrelétricas.
IHU On-Line – Hoje ainda são feitas muitas críticas à hidrelétrica de Belo Monte, mesmo depois do seu funcionamento. O mesmo tende a ocorrer com Teles Pires e São Manoel? Por quê?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – O problema é estrutural, as decisões são políticas e não pautadas nos pareceres técnicos nem nas decisões das populações. Mesmo provando a inviabilidade ambiental e econômica, ou os impactos irreversíveis para as populações indígenas, ao final, as decisões são tomadas em favor do projeto político e de governo.
IHU On-Line – Do ponto de vista ambiental, quais são as implicações dessas hidrelétricas, especialmente em relação à mudança do comportamento hidrológico do rio Teles Pires?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – As implicações ambientais são muitas, nós apresentamos alguns dos impactos que não foram contabilizados no Dossiê “Barragens e Povos Indígenas no Rio Teles Pires: Características e Consequências de Atropelos no Planejamento, Licenciamento e Implantação das UHEs Teles Pires e São Manoel”. Entre os principais impactos estão a diminuição quantitativa e qualitativa do recurso pesqueiro, porque os peixes perdem locais de reprodução e engorda, como os igapós (mata alagadiça). Há ainda mudanças repentinas na dinâmica de cheia e vazante, diminuição da qualidade da água (diminuição de locais de corredeiras – ambientes reofílicos – importantes na oxigenação da água), entre outros. Há aumento da emissão de CH4 (gás de efeito estufa) no reservatório da usina hidrelétrica de Teles Pires, que além de contribuir para o aquecimento global, também contribui para a perda da qualidade da água.
IHU On-Line – Em meados de julho integrantes do povo Munduruku ocuparam o canteiro de obras da Hidrelétrica São Manoel, que integra o complexo de Teles Pires. Quais são as reivindicações deles em relação a essas obras? De que modo elas tendem a afetar a vida deles?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – Imagina alguém entrando na sua casa, sentando no seu sofá, comendo da sua comida, sem nem mesmo te conhecer ou te pedir permissão, ou te dar abertura para dizer não. É assim que as usinas entram na vida dos povos indígenas: sem bater na porta, ocupam todo o espaço, mudam todo o ambiente, impactam diretamente na segurança alimentar dessas populações, nos seus sistemas simbólicos, na rotina, sem perguntar, sem dar outra opção ou saída.
IHU On-Line – Por conta dessa ocupação, os Munduruku publicaram uma carta na qual afirmam que seus locais sagrados, como Karabixexe e Dekuka’a, foram violados e destruídos. Recentemente os Munduruku também fizeram um protesto por conta da inundação de cachoeiras sagradas que deram lugar à construção da hidrelétrica de Teles Pires. Qual era o significado simbólico desses locais para os Munduruku?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – O Karabixexe (cachoeira Sete Quedas) e o Dekuka’a (Morro dos Macacos) são lugares sagrados para o povo Munduruku, que foram destruídos pela construção das usinas. Karabixexe, se compararmos com as religiões cristãs, representa o Céu do povo Munduruku. Nesse local estavam as 12 urnas funerárias e outros artefatos sagrados. Não são artefatos arqueológicos, porque esse local era visitado pelo povo Munduruku, não eram resquícios de uma população antiga, era um lugar que fazia parte da cultura do povo. Dekuka’a é onde está a “mãe dos animais”, e os Munduruku vieram dos animais, ou seja, a destruição e a violação desses dois locais sagrados traz desordem na espiritualidade do povo Munduruku, como dizem na carta os pajés: “Nós pajés vemos e ouvimos nossos antepassados se manifestando e cobrando de nós porque suas moradas não existem mais”. Esses dois locais fazem parte da cultura viva do povo Munduruku.
IHU On-Line – Entre as reivindicações dos Munduruku, está a criação do Fundo Munduruku, o qual teria recursos para a construção de uma universidade indígena, para apoiar os parentes que foram afetados pelas hidrelétricas, proteger locais sagrados e preservar a cultura e história indígena. Em que consiste essa proposta?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – Essa é uma proposta do povo Munduruku e que está em construção ainda. Só um representante Munduruku que esteja envolvido nessa proposta poderia falar sobre isso. Seria importante entrar em contato com as lideranças do Movimento Ipereg Agu para falarem sobre esse aspecto.
IHU On-Line – Qual é a atual situação do processo de demarcação e homologação da Terra Indígena Sawré Muybu?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – Em geral o diálogo dos povos indígenas com o Executivo é limitado. Há duas semanas indígenas da região do baixo Teles Pires estiveram em reunião com Ibama, Funai e Fórum Teles Pires, a qual foi organizada pelo MPF. Nessa reunião foram feitos alguns encaminhamentos até então inéditos, que puderam somar aos pontos da Carta pós-ocupação do canteiro. Podemos dizer que esse tipo de reunião deveria acontecer mais vezes. Infelizmente, ultimamente, junto e por influência de segmentos conservadores do Congresso, o governo federal tem dado abertura para que muitas violações de direitos dos povos indígenas aconteçam. É possível identificar esta ausência de escuta aos povos indígenas pelas recentes determinações, como o parecer de Michel Temer sobre o Marco Temporal, e as tentativas de aprovar PECs como a 215, que transfere para o Legislativo a responsabilidade de demarcação de Terras Indígenas – TI, a PEC 038, que transfere para o senado a demarcação de TI, e a PEC 237/13, que legaliza o arrendamento das TIs.
IHU On-Line – Como tem se dado o diálogo entre os Munduruku e o poder público, especialmente o Executivo?
João Paulo Soares de Andrade e Karla Dilascio – O Cimi do Pará está acompanhando esse processo diretamente com o povo Munduruku, eles poderão dar esclarecimentos sobre esse ponto.