Proibição do tráfico de escravos no século XIX ilustra cinismo e racismo na formação social do Brasil

Por Cesar Baima, no Extra

Imposta pela Inglaterra como uma das condições para reconhecimento da independência de 1822, já sobre diversas restrições determinadas em tratados dos ingleses com Portugal quando o Brasil ainda era colônia, a proibição do tráfico negreiro da África para o país no início do século XIX pode ser vista como o início do fim da escravidão aqui. Mas até a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, que finalmente aboliu a escravatura no Brasil, último país das Américas a fazê-lo, a prática se manteve no centro da vida econômica e política brasileira.

E é justamente tendo a proibição do tráfico, sua fiscalização, burla e consequências como linha mestra que a historiadora Beatriz Mamigonian, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), traçou um retrato do Brasil oitocentista no recém-lançado livro “Africanos livres – A abolição do tráfico de escravos no Brasil” (Ed. Companhia das Letras). A partir de uma minuciosa pesquisa documental, Beatriz usa relatos de casos de indivíduos e grupos de negros apreendidos das mãos de traficantes, com alguns dos personagens por vezes voltando a aparecer no texto, para compor o cenário que os africanos “libertos” e escravos enfrentavam no Brasil no século XIX e sua influência na construção social do país.

Com seu trabalho, Beatriz derruba a antiga noção de que a proibição foi só “para inglês ver”, demonstrando que na verdade ela pode ser considerada um exemplo antigo do crônico problema brasileiro de leis que “não pegam”, escancarando a tragédia moral e o cinismo oficial que marcaram, e ainda marcam, o Brasil como nação. E não é por menos: apesar das apreensões, que foram ficando mais raras à medida que a década de 1830 avançava, só entre o início dos anos 1830 e 1850 cerca de 800 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o país, num ritmo que rivaliza com o registrado antes da proibição.

– Discordo da interpretação, que é senso comum, de que a lei de 7 de novembro de 1831, que proibiu a entrada de escravos no país, teria sido “para inglês ver”. Ela parte do princípio de que nunca houve intenção de aplicar a lei, que era para ser só de fachada, e a pesquisa aponta em outro sentido – afirma.

– Houve disposição para acabar com o tráfico e a lei de 1831 é uma medida até mais rígida que o tratado assinado com a Inglaterra em 1826. Se depois não pôde ser aplicada, isso também faz parte da história, mas não estava previsto de antemão. Os ingleses não se deixavam enganar tão facilmente. Mas ela foi largamente burlada e é o exemplo paradigmático dessas leis que “não pegam”. O sistema de conivência com o tráfico e com a escravização ilegal dessas pessoas envolveu muita gente: de funcionários de alfândega, delegados, juízes e padres a ministros e conselheiros de Estado. Como a lei declarava livres os africanos que fossem importados depois daquela data e ainda prometia penalizar os traficantes e os detentores dos escravos ilegais, foi necessário forjar provas de propriedade e construir todo um discurso de que a lei não podia ser aplicada em nome do bem público. Era tanta gente que devia ser criminalizada que todos se protegiam. Sobre os paralelos com o presente, são muitos. Espero que os leitores tirem suas próprias conclusões.

Mas mesmo “salvos” das mãos dos traficantes, os africanos capturados ilegalmente e depois classificados como “livres” só tinham a liberdade na palavra. Isto porque a própria lei de 1831 e os tratados anteriores obrigava-os a trabalhar para supostamente custear sua “repatriação” para a África. Assim, eles acabavam sujeitos a condições similares à escravidão durante anos, por vezes muito mais do que o regulamentado, servindo nas casas “de família”, como de vários nobres do Império, ou funcionários públicos, nas instituições públicas como os arsenais de guerra, de Marinha, as fortalezas e quartéis, e em obras, como as estradas e de modernização das cidades na segunda metade do XIX.

– As condições de trabalho deles eram muito parecidas com as dos escravos – conta Beatriz. – O alvará determinava que trabalhassem por 14 anos e, entre os que sobreviveram para reivindicar a “plena liberdade”, muitos tinham trabalhado mais de 20, alguns até 30 anos. Trabalhavam sem remuneração, só pela comida, por alojamento e roupas. O Estado Imperial brasileiro poderia ter tratado esses africanos sob sua responsabilidade como pessoas livres que aprendessem ofícios e ganhassem autonomia. Mas nunca fez.

A proibição do tráfico também teve como consequência um aprofundamento das divisões e desigualdades sociais no Brasil, em especial envolvendo os negros, que podiam ser tanto escravos, quanto alforriados, emancipados, libertos, livres etc. E isso influenciou nos conflitos e na luta abolicionista na época e no reforço do racismo na sociedade brasileira de então e de agora, aponta Beatriz.

– A sociedade brasileira já era estratificada antes da independência. A taxa de alforrias no Brasil sempre foi alta em relação a outros territórios escravistas das Américas, o que significa que, à altura da independência, para além dos livres brancos e dos escravos havia uma camada de pessoas livres de origem africana, indígena ou mestiça e também um bom número de libertos – lembra a historiadora.

– A distinção entre quem era livre e quem era escravo não era nada fácil. Era uma das questões de direito mais debatidas, pois afetava muitas vidas. E não era uma questão que envolvia apenas os africanos trazidos depois de 1831, mas também muitos libertos condicionais, que viviam num limbo jurídico. O que procurei mostrar é que as chances dos “africanos livres” gozarem a liberdade no Brasil se estreitaram em virtude do imenso contrabando e do tratamento de apátridas que recebiam aqui. Não eram cidadãos brasileiros, mas também não tinham nacionalidade que os protegesse.

E por trás disso tudo, claro, estavam interesses econômicos associados ao poder político. A ascensão do liberalismo e do sistema capitalista a partir do século XIX fomentou o comércio ilegal de escravos para o Brasil devido à demanda dos proprietários de terras por mão de obra barata para a produção de açúcar, café e algodão, principais artigos do país no comércio internacional da época.

– A demanda por produtos tropicais teve aumento no início do século XIX, o algodão para a indústria têxtil inglesa, o café e o açúcar para o consumo das camadas médias e trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos – destaca Beatriz.

– Foram as regiões escravistas que responderam melhor a essa demanda e assim a escravidão se reforçou no Sul dos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil enquanto no resto das Américas o movimento foi de abolição gradual. Há muito tempo os historiadores veem a relação entre o capitalismo e a escravidão com complexidade e não defendem que eram incompatíveis. O capitalismo se beneficia da escravidão e do trabalho forçado, visto que reduz muito os custos com mão de obra.

Desta forma, os interesses econômicos também incentivaram as autoridades brasileiras de então a fazerem “vista grossa” para este comércio ilegal e as estratégias para se esquivar desta ilegalidade, como dizer que libertos eram escravos que morreram ou alegar “boa-fé” na sua aquisição.

– O que procuro demonstrar no livro é que houve conflito no seio do governo imperial, ao longo das décadas, a respeito da repressão ao tráfico e da aplicação da lei de 1831 – resume.

– Entre 1830 e 1834, houve muita gente disposta a apreender africanos, emancipá-los, e mesmo reprimir o tráfico. Dali em diante, porém, a pressão dos proprietários de terras sobre o Congresso foi muito grande e as dificuldades das forças de repressão aumentaram. E de 1837 em diante, com a ascensão de um gabinete composto por políticos conservadores que prometeram proteger os proprietários de terras, a conivência com o tráfico e os traficantes passou a política de Estado. Os argumentos da aquisição em “boa fé”, da honradez dos proprietários de terras e o da defesa da “ordem pública”, que seria ameaçada pela emancipação dos africanos, travavam a aplicação da lei. No começo, tinha um sentido de proteger a economia, que dependia da mão de obra escravizada, mas também provinha de uma fraqueza do Estado imperial, recém-independente, que não conseguia impor medidas contrárias aos interesses das elites regionais, pois dependia de apoio político.

Destaque: Debret

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