Por Helenice Rocha*
As gerações futuras sentirão vergonha de nós.
Sentirão vergonha de nosso silêncio e de nossa apatia.
Não haverá certamente nenhum espanto, posto que a brutalidade que estamos permitindo tomar conta do mundo há também de eliminar a possibilidade de espanto e indignação. A brutalidade elimina qualquer espasmo de surpresa.
Casos como o da deputada que tem recebido sistematicamente ameaças pela internet, pelo whatsapp e também pessoalmente, não nos indignam porque estamos atolados, sem perceber, na mais absoluta falta de empatia. Num dos áudios, o sargento da aeronáutica a ameça “vou rasgar você no meio” e avisa que o clã Bolsonaro faz parte do grupo. Os xingamentos e ameaças que se ouve no áudio são dignos de uma sessão de tortura.
O neto do ex presidente Figueiredo, aquele que dizia que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro de povo, postou nesta semana no facebook um efusivo agradecimento ao governador do RJ por ter deixado falir a UERJ. No texto, ele vibra diante da possibilidade dos professores (sem salários) morrerem de inanição. Mas como estamos cindidos psicoticamente, não nos afetamos.
Do salário mínimo para 2018, será tirado 10 reais. Enquanto isso, um magistrado do Mato Grosso recebeu em julho salário de mais de 500 mil e outros dezoito, receberam mais de 300 mil. Ao ser indagado sobre o valor, muitíssimo acima do teto, o primeiro responde “tô nem aí”. Assim como a excelência de Mato Grosso, nós também não “estamos nem aí.”
O prefeito da maior cidade do país xinga, humilha e ofende políticos e militantes do PT, enquanto abandona a periferia sem saúde, enquanto corta parte da merenda das crianças com a justificativa de combate a obesidade, enquanto deixa aumentar o número de moradores de rua, enquanto trama vender o patrimônio público de olho no financiamento de sua campanha para presidente em 2018.
Não precisamos olhar para Barcelona ou para Charlottesville para vislumbramos a face do horror. Os massacres à população negra, LGBT e indígena ocorridos aqui apenas neste ano, nos dão a dimensão do nosso horror caseiro.
A sanha demolidora do governo golpista que nos desgoverna com as reformas que vem fazendo desde que assumiu, nos promete um país arrasado para os próximos anos. Com saúde, segurança e educação sucateados, a miséria e a violência aumentarão. Mas não nos abalamos porque, afinal, não sabemos de nada.
A extrema direita e suas personas, nazistas, fascistas, homofóbicas, machistas, xenófobas, pretendem dilacerar todas as possibilidades de uma sociedade mais justa e mais humana. A prova evidente é a adesão em massa até dos mais “letrados” e dos mais jovens, às ideias de políticos e de grupos que propagam diuturnamente o ódio. Ainda assim não reagimos porque, afinal, a liberdade de expressão é um bem precioso.
Nos espaços onde divido com colegas os meus afazeres profissionais, vejo alguns absolutamente indiferentes diante do sofrimento deste presente tenebroso e diante da promessa de mais sofrimento que um futuro sombrio nos acena. Estão totalmente incapazes de dimensionar suas responsabilidades éticas diante deste estado de coisas.
Estamos falhando absurdamente. Tínhamos a obrigação moral, ética, instintiva até, de deixarmos um mundo melhor para os que virão.
Os incautos e hoje privilegiados, os brancos, os da classe média, os que não sentiram ainda o corte na carne, não tardarão a reconhecer que ficaram do lado errado da luta. Mas os seus filhos e netos saberão, ainda que não seja pelos livros de história, ainda que seja pelos resíduos inconscientes a eles transmitidos, saberão da covardia de seus antepassados que preferiram a inércia, a preguiça e a covardia ao invés do trabalho árduo, duro e sofrido de denúncia e combate a todas essas formas de ódio, pois é de ódio que se trata tudo isso. Ódio ao próximo, ao diferente, ao povo, à justiça, ao elemento humano.
As gerações futuras sentirão vergonha de nós e tomara que assim seja. Se forem capazes de sentir vergonha, é porque talvez tenham compreendido um pouco daquilo que hoje a grande maioria não está compreendendo, que tudo isso é muito vergonhoso. Por ignorância, má fé ou cinismo, a verdade é que a maioria não está compreendendo.
A psicanálise nos ensina que a pulsão de morte opera em silêncio. Eu diria que no nosso silêncio diante de tanta brutalidade, opera a pulsão de morte na sua forma mais destrutiva e mais avassaladora, que é o desligamento. Desligamento da nossa própria fragilidade e desamparo, cujo reconhecimento seria a única possibilidade de nos aproximarmos como gente, que ainda somos.
–
Professora de Psicanálise na Universidade Guarulhos.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
Destaque: Thinkstock/ThinkStock