Vítimas do Césio-137 seguem desamparados 30 anos após tragédia radioativa em Goiânia

Por Juliana Ferreira, para a Articulação Antinuclear Brasileira

Este mês completam-se 30 anos que se iniciou o maior acidente radiológico do mundo, causado por uma cápsula de Césio-137 abandonada em um aparelho hospitalar no centro de Goiânia. As 17 gramas do elemento radioativo contaminaram pessoas, o meio ambiente e causaram consequências sentidas até hoje. É uma tragédia que ainda não terminou. A Articulação Antinuclear Brasileira apoiou uma série de eventos que marcaram os 30 anos do acidente com o mote Césio-137 30 anos: Eu Também sou Vítima. Entre os dias 12 e 13 foram realizados um seminário e uma audiência pública sobre o tema e neles ficou patente que o Estado não prestou as devidas contas à sociedade, muito menos assistiu devidamente às vítimas de contaminação, especialmente aqueles que trabalharam na retirada dos entulhos radioativos.

Se as primeiras vítimas do césio foram contaminaram por omissão da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e o Instituto Goiano de Radiologia, dono do aparelho radiológico abandonado; os trabalhadores e militares enviados para realizar a descontaminação foram vítimas de uma conduta criminosa do Estado. Hoje, as instituições estatais querem chamá-los de heróis, título que recusaram na audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Goiás, pois consideram não se tratar de um ato heróico quando é feito por obrigação e sem conhecimento de causa.

Os trabalhadores do Consórcio Rodoviário Intermunicipal S.A. (Crisa) foram chamados para realizar a descontaminação dos locais por onde o Césio circulou, mas achavam estar lidando com um acidente com gás. Não sabiam que tratava-se de material radioativo. Muitos vieram do interior, sem orientação, com chinelos de dedo. Depois de terminado o trabalho, suas roupas eram lavadas ou reaproveitadas por suas esposas e filhas. Hoje padecem de doenças crônicas que, em muitos casos, a justiça não reconhece serem ligadas ao Césio, lutam por assistência jurídica e médica para si e seus familiares.

Grupo de trabalhadores do Crisa que atuou na descontaminação. Hoje, dos 15, só estão vivos 3.

Na fala do coordenador do Fórum Permanente sobre o Acidente com o Césio-137, Julio Nascimento, “as discussões acontecem e as vítimas estão aí morrendo. Também de morte social, psicológica. Enquanto nos gabinetes as instituições estão empurrando o problema um para o outro”. Isso ficou claro na audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Goiás, no dia 13, onde diante das inúmeras queixas apresentadas pelas vítimas, a Casa não se comprometeu com nada efetivamente além de encaminhar as demandas ao governador do estado, que não estava presente.

A jornada de eventos começou com o Seminário Césio 30 anos: Questões atuais sobre os direitos e saúde das vítimas, realizado na Asmego, dia 12 de setembro. Nele, foi feito um balanço de como está a assistência às vítimas atualmente. A engenheira civil e auditora do trabalho Fernanda Giannasi trouxe questionamentos sobre a atual classificação das vítimas em grupos de acordo com seu grau de exposição. Para ela, essa divisão é inadequada pois, de acordo com a Convenção 115 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, somente o fato de ter ocorrido exposição à radiação já deveria gerar a necessidade de acompanhamento vitalício do trabalhador. Outro documento fundamental sobre radiação, o 7º Relatório de Efeitos Biológicos da Radiação Ionizante, elaborado em 2005 pela Academia Nacional de Ciências norte-americana, afirma que não há níveis seguros para exposição à radiação. “Essa divisão entre o grau 1,2,3,4 é discutível. Se não há grau seguro de exposição, como eu posso avaliar quem está mais ou menos prejudicado por essa exposição?”, questiona Giannasi. As vítimas do Césio hoje são divididas em 4 grupos, sendo o primeiro composto por pessoas que tenham sido incapacitadas por consequência do acidente e os demais são classificados conforme o nível de radiação recebido.

A advogada Érica Coutinho trouxe um panorama das possibilidades de reparação às vítimas. A lei estadual de Goiás Nº 10.977/89 e a lei federal Nº 9.425/96 estabelecem o pagamento de pensão vitalícia. Érica frisou que as pessoas afetadas que não tiveram seus nomes citados na lei estadual podem também pedir o reconhecimento: “É muito importante que se resgate o que significa ser vítima em um acidente dessa proporção. Embora a lei traga uma lista com alguns nomes, isso pode ser judicializado. Quem apresentar alguma patologia após o acidente também pode pleitear uma pensão vitalícia”, explica. Ela também lembra que as vítimas podem requerer indenização por danos morais.

Ser reconhecido como vítima pelo estado ou governo federal, no entanto, nem sempre é fácil. João Dias Fonseca era mecânico do Crisa e trabalhou nas máquinas que descontaminaram Goiânia. Hoje está aposentado e sofre de inúmeros problemas de saúde, já teve 3 dedos do pé amputados e custeia seu atendimento médico. Há 10 anos ele luta na justiça para ser reconhecido como vítima, mas o estado de Goiás e o Governo Federal não reconhecem o chamado “nexo causal” entre seu adoecimento e o Césio.

Julio Nascimento, Chico Whitaker, Érica Coutinho e Fernanda Giannasi foram os conferencistas no dia 12 pela manhã

Aqueles que possuem o reconhecimento, por sua vez, relatam descaso no atendimento médico, valor de pensão defasado, receio de não ter o atendimento médico estendido a seus filhos e preconceito que os impede de integrar-se socialmente. “Passamos pela bateria de exames periódicos no Centro de Assistência aos Radioacidentados (Cara), mas não estamos recebendo remédios. Quem tem dinheiro para comprar, compra; quem não tem, fica sem”, afirma Suely Moraes, presidente da Associação das Vítimas do Césio.

Quando surgiu para concentrar o atendimento às vítimas do acidente, o Cara era chamado de Superintendência Leide das Neves, em homenagem a uma das primeiras vítimas fatais da tragédia, com apenas 5 anos à época. A mudança de nome é tida pelas vítimas como uma tentativa de apagar essa memória em uma intencionalidade que permeia todas as ações do estado em relação à tragédia: a busca pelo esquecimento.

Atualmente três associações fazem a defesa das vítimas do Césio em Goiânia. A Associação das Vítimas do Césio, Associação dos Militares Vítimas do Césio e a Associação dos Contaminados, Irradiados e Expostos ao Césio. Esse ano foi criado também o Fórum Permanente sobre o Acidente com o Césio 137, na tentativa de unificar as pautas e ações das três entidades, agregar apoiadores e promover a discussão na sociedade. Fernanda Giannasi reforçou em sua fala a necessidade de união entre esses atores para avançar nas reivindicações.

Goiânia e o nuclear

Apesar de convidada, a Comissão Nacional de Energia Nuclear, que promove e fiscaliza as atividades nucleares no Brasil, esteve ausente durante o seminário e também na audiência pública promovida dia 13 na Assembleia Legislativa de Goiás. O ativista Chico Whitaker declarou no seminário, dia 12, que a comissão, com suas falhas, omissões e falta de transparência, era uma inimiga em comum entre os contaminados, irradiados e expostos de Goiânia e outras comunidades impactadas pelo nuclear no Brasil: “Nós temos que trabalhar numa luta única. O que eu queria dizer, que eu tiro como conclusão, é que precisamos colocar mais gente nessa briga e transformar em uma luta nacional. Goiânia é um exemplo do que é a loucura do nuclear e queremos evitar que aconteça um desastre muito maior do que aconteceu aqui”.

Trazendo essa perspectiva de união contra o nuclear, os facilitadores da Articulação Antinuclear Brasileira, Renato Cunha e Zoraide Vilasboas compartilharam na audiência pública os problemas trazidos pela mineração de urânio em Caetité, no sudoeste baiano, onde água, ar e solo têm sido contaminados por radiação. Inês Chada relatou o medo que os moradores de Angra dos Reis (RJ) sofrem desde a instalação autoritária de duas usinas nucleares em seu município: “Estar aqui em Goiânia é ter um contato com como as vítimas do nuclear são tratadas e o descaso não me parece uma exceção. Se um acidente com uma cápsula de 17 gramas causou tantas vítimas – não sabemos nem exatamente quantas – como seria um acidente em uma usina nuclear?”, questiona.

Essa dimensão mais ampla do problema da radiação foi trazida também pela presença de Junko Watanabe, sobrevivente da bomba atômica de Hiroshima e integrante da Associação Hibakusha Brasil Pela Paz. Junko convive desde os 2 anos com os efeitos da radiação, veio a Goiânia e emocionou os goianienses com suas palavras de solidariedade às vítimas locais. “Onde quer que estejamos precisamos oferecer nosso auxílio às vítimas da radiação atômica. Devemos trabalhar para que nunca mais pessoas sejam afetadas por esse demônio desenvolvido pelo homem”, defendeu.

Reflexões sobre o Césio a partir da arte
Além do seminário e da audiência pública, outros espaços propuseram a discussão sobre o acidente e a situação das vítimas a partir de linguagens artísticas. No dia 12, pela noite, foi exibido o filme “O Suplício: Vozes de Chernobyl”, cedido pela VI Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. Já no dia 13, na rua 57, onde iniciou-se o acidente, uma tocante performance do grupo de dança goiano Por Quá, ao som ao vivo do grupo Vida Seca, emocionou o público ao usar a dança para transmitir o pânico vivido pelas vítimas no acidente, o adoecimento e isolamento social que a contaminação causou. “Não tem nada melhor que a arte para nos mostrar o que essa tragédia provocou na existência das pessoas. No corpo e na alma”, avaliou Julio Nascimento.

Imagem: Uma das vítimas do Césio na audiência pública realizada dia 13 na Assembleia Legislativa de Goiás

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