Marco Weissheimer – Sul21
Qual relato sobre a ditadura civil-militar, implantada no Brasil pelo golpe de 1964, foi escrito pela Comissão Nacional da Verdade? Quais as omissões e silêncios presentes nessa narrativa e em que medida eles impactam o presente político do país? Qual a responsabilidade dos historiadores frente a esses questionamentos? Essas são algumas das perguntas centrais abordadas pela historiadora Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em seu livro “Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade” (Paco Editorial), que será lançado na 63a Feira do Livro de Porto Alegre, dia 2 de novembro, às 16h30, na Praça de Autógrafos.
Autora do livro “Brasil e Argentina: Ditaduras, Desaparecimentos e Políticas de Memória” (publicação conjunta da Editora Medianiz e da Associação Nacional de História), Caroline Silveira Bauer integrou o Grupo de Trabalho Araguaia da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Para ela, o processo de anistia no Brasil não propiciou uma verdadeira reconciliação na sociedade, mas criou um mito, uma espécie de ideologia da reconciliação, segundo a qual o melhor para a sociedade brasileira seria seguir adiante e esquecer o que aconteceu no período da ditadura. Esse processo de construção do esquecimento, defende a historiadora, deixou consequências que se manifestam no presente político do país.
Em entrevista ao Sul21, a ela fala o seu trabalho e rejeita a visão segundo a qual o historiador deve buscar uma postura neutra e objetiva. “Durante muito tempo se defendeu, no âmbito da História, a necessidade de uma certa neutralidade e objetividade em relação ao passado. Os acontecimentos dos últimos anos talvez nos digam que essa neutralidade e essa objetividade abram precedentes para muitas coisas. Estamos vivendo uma conjuntura onde não dá para ser neutro”, afirma. Caroline Bauer também aborda possíveis analogias entre o que está acontecendo agora no país e o período pré-64, assinalando que a experiência do golpe de 2016 nos ajuda a ver como o golpe de 64 e a ditadura que se seguiu foram sendo construídos paulatinamente.
Sul21: Em seu novo livro, você faz uma análise do texto do relatório final da Comissão da Verdade. Qual a sua avaliação do relato sobre a ditadura civil-militar que foi construído pela Comissão?
Caroline Silveira Bauer: Esse trabalho nasceu como um projeto de pesquisa financiado pelo CNPq sobre os usos políticos do passado nos debates envolvendo a Comissão Nacional da Verdade. Minha ideia era trabalhar com as diferentes temporalidades envolvidas nestes debates. Nos trabalhos sobre temáticas da ditadura sempre apareceu uma referência à ideia de um passado que não passava. Essa expressão sempre me incomodou. Nós falávamos dela sem refletir muito sobre o que ela significava. A partir de algumas leituras fui me dando conta que a temporalidade envolvendo a ditadura contém muitos tempos. Há o tempo das pessoas que foram vítimas, dos ex-presos e perseguidos políticos, dos familiares dos mortos e desaparecidos e há o tempo das pessoas vinculadas de alguma forma ao aparato repressivo da ditadura. Ao contrário do tempo do primeiro grupo, que quer olhar para o passado e mostrar o que aconteceu, o tempo do segundo grupo é marcado por uma defesa do “olhar para a frente” de “deixar o passado para trás”.
À medida que fui estudando isso, comecei a me interessar sobre o papel do historiador frente a estas demandas de esclarecimentos e a estas negações do passado. Enquanto na primeira parte da pesquisa, estudei essa questão das diferentes temporalidades, da metade para o final me dediquei a pensar a função social dos historiadores diante dessas demandas, por que eles não participaram da Comissão Nacional da Verdade e o que isso pode ter significado no resultado final.
Sul21: Os historiadores não participaram da Comissão?
Caroline Silveira Bauer: Não entre os sete comissionados que coordenaram os trabalhos. Neste grupo tivemos seis pessoas vinculadas ao Direito e uma à Psicanálise. Não havia nenhum historiador entre eles. O relatório final tem um caráter jurídico muito forte com algumas interpretações feitas com um viés mais psicanalítico. Houve historiadores que trabalham na coordenação de alguns grupos e como consultores técnicos, mas nenhum deles esteve vinculado às esferas maiores da Comissão. Isso acabou se refletindo no texto do relatório final que, do ponto de vista historiográfico, tem vários vícios de interpretação sobre a ditadura. O relatório trouxe avanços, sem dúvida, mas tem vários vícios também.
Sul21: Poderia dar alguns exemplos desses vícios?
Caroline Silveira Bauer: O relatório da Comissão Nacional da Verdade está dividido em três grandes tomos. O primeiro traz uma narrativa histórica do que foi a Comissão. O segundo está dividido em eixos temáticos e o terceiro é dedicados aos casos que foram analisados, com as biografias dos mortos e desaparecidos políticos. Talvez essa percepção seja uma sutileza, mas o fato de os eixos temáticos que compõem o segundo tomo serem relativos a camponeses, indígenas, população LGBT e mulheres significa que esses grupos não estão no relato oficial que está no primeiro tomo. São temas, de certo modo, acessórios e correlatos ao relato oficial.
Em relação ao terceiro volume, houve sempre um conflito interno na Comissão da Verdade em torno do tema de quem seriam os investigados e quais casos ela levaria adiante. Houve uma pressão muito forte por parte dos familiares de mortos e desaparecidos políticos para que fossem aqueles casos que, historicamente, já estavam sendo trabalhados. Algumas pessoas dentro da Comissão queriam ampliar o escopo de quem eram as vítimas. Os familiares de mortos e desaparecidos achavam que isso iria diluir um pouco o foco das investigações. O resultado final foi que acabamos tendo uma repetição de casos que já vinham sendo trabalhados na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e pelos próprios familiares.
Do ponto de vista histórico também há alguns problemas como a ideia de ver o governo João Goulart como uma espécie de antessala do golpe, não levando em conta peculiaridades que marcaram este governo e considerando o golpe como uma coisa inevitável que já estava dada.
Sul21: O material de divulgação do livro fala em omissões e silêncios na narrativa do relatório da Comissão da Verdade. Poderia citar alguns exemplos?
Caroline Silveira Bauer: O trabalho da Comissão da Verdade resultou, sem dúvida nenhuma, em uma série de avanços. Um deles foi despertar a discussão na sociedade e criar comitês que estão trabalhando de forma independente. Outro avanço foi consolidar a perspectiva da participação civil na ditadura, dando mais visibilidade a temas como o financiamento empresarial e a participação das elites civis dentro da estrutura da ditadura. Por outro lado, acho que ela foi ainda muito tímida em desconstruir um senso comum que vê a ditadura como uma disputa entre os militares, de um lado, e os guerrilheiros do outro. E o restante da sociedade, onde estava durante a ditadura? O que fazia? Como foram as relações de cumplicidade e omissão na sociedade?
Toda a vez que a gente fala de censura na ditadura isso parece se resumir a uma censura política. Houve uma censura moral muito grande também.
Vou citar um exemplo que me parece significativo. Toda a vez que a gente fala de censura na ditadura isso parece se resumir a uma censura política contra manifestações críticas às ideias e práticas da ditadura. Mas nós tivemos uma censura moral muito grande neste período sobre quais eram os comportamentos aceitáveis a respeito de relacionamentos, hábitos e costumes. Essa censura moral costuma ser pouco enfatizada nas análises sobre a ditadura e isso aparece também no relatório da Comissão. O principal silêncio é, na verdade, um silenciamento que, historicamente, determinados grupos populacionais sofrem, como indígenas, negros e negras, mulheres.
Sul21: O processo de transição da ditadura para a democracia foi marcado por uma série de concessões que varreu muita coisa para debaixo do tapete. De que maneira essas concessões, acompanhadas também por silêncios e omissões, impactam o presente político do país hoje, quando, entre outras coisas, vemos muitas pessoas pedindo a volta dos militares ao poder?
Caroline Silveira Bauer: O processo de transição no Brasil envolveu toda uma negociata. Para manter o status quo resultante dessa negociação foi necessário fazer novas negociatas nos anos subsequentes. A negociata da anistia e da transição política criou uma excepcionalidade. Essa excepcionalidade foi a decisão de que, quem cometeu crimes, não seria punido, contrariando o que diz o Código Penal e tratados internacionais. Para manter essa situação é preciso criar constantemente outras excepcionalidades. Essas negociatas e excepcionalidades aparecem na própria constituição da Comissão Nacional da Verdade. Havia uma demanda para que fosse uma Comissão Nacional da Verdade e da Justiça, incluindo um processo de responsabilização penal ao término dos trabalhos. Para que a proposta fosse aprovada no Congresso foi retirada essa demanda por justiça. No relatório final da Comissão há uma recomendação para que ocorra esse processo penal, mas, na prática, isso não aconteceu.
Ao longo de todo o trabalho da Comissão Nacional da Verdade houve uma postura, talvez não tanto dos comissionados, mas da Presidência e da Casa Civil, para tentar apaziguar os ânimos das forças militares. Houve um receio das forças conservadoras com o que sairia no relatório final que durou até o dia da divulgação do mesmo. Na véspera, houve inclusive uma tentativa, por via judicial, de impedi-la.
Há algumas questões históricas mais de fundo que devemos considerar. As Forças Armadas são uma das instituições que ainda têm maior respaldo social no Brasil. A Comissão Nacional da Verdade pode ter sido vista como uma afronta a essa instituição considerada o último bastião de moralidade, segurança e estabilidade. Houve outras coisas que incomodaram as forças conservadores como o pagamento de indenizações e a proibição da comemoração do 31 de março dentro dos quarteis. Todas as medidas consideradas mais progressistas na perspectiva dos direitos humanos foram vistas como afronta. Essas manifestações que vemos hoje de defesa de uma intervenção militar e das práticas da ditadura não são uma criação de agora. Essas posições existem há muito tempo, mas ganharam mais visibilidade agora porque temos pontos de apoio na sociedade que legitimam esse curso. Quanto temos, na Câmara Federal, um deputado que faz a apologia de um torturador, abre-se um precedente para uma série de manifestações neste sentido, potencializadas pelas redes sociais e pela proliferação de um discurso de ódio.
Há outro aspecto, que também tem a ver com a nossa responsabilidade como historiadores e professores de História, que é o fato das novas gerações estarem cada vez mais distanciadas cronologicamente do período da ditadura. É preciso repensar o ensino de História para essas gerações, de 16, 17 anos de idade, que não têm mais uma vinculação tão próxima com esse período.
Sul21: Temos visto, recentemente, manifestações de militares falando abertamente da possibilidade de uma nova intervenção militar. A fala do general Mourão foi a mais explícita neste sentido, mas não a única. O general Sergio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo Temer e crítico feroz da Comissão da Verdade, em recente discurso para alunos do Itamaraty, elogiou feitos da ditadura e criticou o vazio de poder no país. Há quem diga que há uma disputa dentro das Forças Armadas entre uma “linha dura”, representada por Etchegoyen, e outra mais comprometida com a democracia. Como vê esse cenário?
Caroline Silveira Bauer: Faz algum tempo que me distanciei desses debates mais internos da caserna. Tenho alguns contatos com pessoas de dentro das Forças Armadas que consideram essa vinculação com o histórico da ditadura algo muito maléfico para a instituição hoje. Dificilmente vai se conseguir uma pacificação sobre esse passado. Há uma questão aí envolvendo as diferentes gerações que integram hoje as Forças Armadas. Entre as gerações mais novas, mais presentes na baixa oficialidade e não oficiais, esse debate não tem muita repercussão. Ele é mais forte entre a alta oficialidade e entre oficiais que pertencem a famílias de militares como é o caso do próprio general Etchegoyen, cujo tio, general Ciro Etchegoyen foi apontado na Comissão Nacional da Verdade como responsável pela Casa da Morte, local de tortura de presos políticos na cidade de Petrópolis (RJ).
Esses setores têm muita força nos Clubes Militares. Aí eles têm um discurso que contagia bastante, inclusive as gerações mais novas da oficialidade. Os mais fortes ficam no Rio de Janeiro, tanto da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Os oficiais que tiveram relação com a ditadura circulam muito nestes clubes, incluindo aí o coronel Brilhante Ustra. Durante o trabalha da Comissão Nacional da Verdade, eles se manifestaram várias vezes. Partiu deles, inclusive, a iniciativa de impetrar um habeas corpus para tentar impedir a divulgação do relatório final. Não tenho maiores informações sobre como esses clubes funcionam fora do eixo Rio-São Paulo, mas geralmente são compostos por militares que já estão na reserva, o que abre espaço para que eles possam falar sobre determinados temas sem serem responsabilizados ou sofrerem algum tipo de censura por suas declarações. Após Dilma Rousseff ter proibido a comemoração do 31 de março nos quartéis, essa comemoração foi levada para os clubes militares.
No período em que trabalhei na Comissão de Mortos e Desaparecidos, o Ministério da Defesa tinha uma posição de não se envolver neste tipo de debate. Havia uma postura de certa colaboração, embora fosse a instituição com postura mais retrógrada quando se tratava de discutir reparação por crimes da ditadura.
Sul21: Você referiu o papel e a responsabilidade dos historiadores em informar as novas gerações sobre o que foi o período da ditadura. Esse é um tema que segue sendo objeto de pesquisas na universidade? Na sua avaliação, isso vem sendo feito na intensidade necessária?
Caroline Silveira Bauer: Um dos legados da Comissão Nacional da Verdade foi ter deixado muita coisa para as futuras gerações pesquisarem. Em 2005, ocorreu a transferência para o Arquivo Nacional da documentação dos serviços de segurança e de informação do Estado, principalmente do SNI (Serviço Nacional de Informações). Hoje, temos uma base documental imensa, que chega à aproximadamente dois milhões de documentos esperando para serem analisados. Então, temos possibilidades de pesquisa sobre a ditadura para alguns séculos. Mas isso não é suficiente. Talvez seja preciso mudar um pouco a percepção de quem é o historiador sobre a ditadura e qual o seu papel na sociedade.
Essa foi uma das grandes preocupações que eu tive na escrita desse livro. Durante muito tempo se defendeu, no âmbito da História, a necessidade de uma certa neutralidade e objetividade em relação ao passado. Os acontecimentos dos últimos anos talvez nos digam que essa neutralidade e essa objetividade abram precedentes para muitas coisas. Estamos vivendo uma conjuntura onde não dá para ser neutro. Esse posicionamento engajado do historiador, que talvez seja uma das principais defesas que eu faço neste livro, não significa uma falta de compromisso com uma produção de qualidade, mas implica não negar a responsabilidade social do historiador.
Eu fiquei muito tocada por alguns estudos mais recentes realizados na Argentina que, de certa forma, acabaram se tornando paradigmáticas para pensarmos a nossa realidade, respeitadas as diferenças entre os países. Esses estudos mostram como a produção dos historiadores pode contribuir para a reparação social das vítimas da ditadura. Se um historiador assume, por exemplo, a perspectiva de chamar a ditadura de revolução isso impede que muitos familiares e ex-presos políticos encaixem a sua história neste relato. É bem diferente se você chamar a ditadura pelo seu nome e dizer que se tratou de um terrorismo de Estado. Então, o historiador e a História têm, sim, um papel muito importante neste processo de reparação.
Falando como professora, nós temos chamado cada vez mais a atenção para isso, mas estamos nos defrontando com inimigos muito fortes, do ponto de vista da censura do que pode ser dito e do que não pode.
Sul21: Isso dentro da sala de aula?
Caroline Silveira Bauer: Sim, dentro da sala de aula. Toda vez que a gente aborda um tema relacionado à ditadura ou a qualquer outro tema sensível é quase impossível desinflar uma questão valorativa envolvida neste ensino. Isso não significa que precisamos dizer que a ditadura foi boa ou má, até porque não utilizamos essas categorias na História. Mas a abordagem desses temas tem um caráter de denúncia implícito. É impossível não ter um ponto de vista valorativo. Perspectivas como a da escola sem partido estão tentando cada vez mais proibir esse ponto de vista e fazer com que nós levemos sempre em conta os dois lados. Aí se coloca a seguinte questão: o que significa dizer que tem dois lados na escravidão, no holocausto ou na ditadura? Se há um compromisso de educação para os direitos humanos, é impossível “levar em conta os dois lados” na abordagem desses temas. Sempre temos que denunciar a barbárie, a tortura, o genocídio, o terrorismo de Estado.
Os professores já levam em consideração que podem colocar em risco seus empregos por um posicionamento político que possa ser considerado como pregação ideológica.
No curso de licenciatura de História temos frequentemente reforçado essa visão, destacando que estamos amparados pela LDB, pela Constituição Federal e por tratados de direitos humanos. A educação tem um ponto de vista valorativo e moral e não há nenhum problema em reforçar isso em sala de aula. Mas os nosso inimigos estão bastante fortes.
Sul21: Essa ameaça de censura dentro da sala de aula parte de quem exatamente?
Caroline Silveira Bauer: Acho que isso já foi introjetado como uma censura prévia, do ponto de vista profissional. Os professores já levam em consideração que podem colocar em risco seus empregos por um posicionamento político que possa ser considerado como pregação ideológica ou algo assim. Embora tenhamos todo o respaldo institucional, há uma auto-censura que já está presente. Talvez tenha levado muito tempo para nós, historiadores, e professores universitários de um modo em geral nos darmos conta disso.
O nosso aluno chega hoje na universidade já com determinadas percepções sobre a história que não foram construídas necessariamente na educação básica, mas em espaços como o Youtube, nas redes sociais e de várias outras formas. Muitos chegam com essa visão de que a História tem dois lados e que, no caso da ditadura, há o lado da esquerda, dos guerrilheiros e o lado da direita, dos militares. Para nós, é um desafio tentar modificar essa leitura binária da História. O fato é que, hoje, não são poucos os professores que já tem receio de trabalhar determinados temas. A gente vai introjetando algumas coisas. Isso é praticamente inevitável.
Sul21: Muita gente que viveu a ditadura e o período pré-64 enxerga o cenário político brasileiro atual com muita preocupação, identificando sinais de que podemos estar caminhando para um fechamento político ainda maior. Sei que o papel do historiador não é fazer previsões, mas gostaria de saber como está sentindo esse momento que estamos vivendo? Também tem esse temor?
Caroline Silveira Bauer: Tenho acompanhado, há cerca de três ou quatro anos, o trabalho das clínicas do testemunho, que procuram fazer um trabalho de reparação psíquica com pessoas afetadas pela ditadura. As pessoas que acompanham as rodas de conversa têm relatado é que, depois do golpe de 2016, muitas pessoas pararam de falar porque já estão com receio do que essa fala pode significar. Para algumas pessoas, estamos vivendo uma repetição de coisas que aconteceram em 1964. O medo está presente.
É muito difícil fazer uma previsão do que vai acontecer, mas 2018 será decisivo para isso. A conjuntura atual me possibilitou olhar para 64 com outros olhos. A percepção que muitas vezes se tem é que, entre o dia 31 de março e o 1o. de abril, dormimos em uma democracia e acordamos em uma ditadura. Embora a gente institua essas datas como marcos do golpe, a experiência de 2016 nos mostra como a construção do golpe de 64 e da ditadura foi paulatina. Talvez o ineditismo de 2016 seja a rapidez com que isso foi feito. Ter vivido 2016 nos ajuda a olhar para 64 e perceber como o fechamento foi ocorrendo aos poucos. Além disso, ajuda a entender um pouco mais porque a população, no período entre 1964 e 1968, não reconheceu que estava vivendo numa ditadura. Há muitos setores da população, hoje, que não reconhecem que estamos vivendo em um estado de exceção, seja porque sempre viveram em um estado de exceção ou porque a pouca experiência democrática que temos não permita o reconhecimento de uma série de sanções que estamos sofrendo desde 2016.
Então, não sei o que pode acontecer, mas as analogias são absolutamente possíveis. O que mais me assusta é que o golpe ocorreu em 1964 e em 1965 houve eleições legislativas. Como os partidos ditos de esquerda então tiveram uma votação muito grande veio o AI-2, instituindo o bipartidarismo e o fim do sistema eleitoral.
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“Nos trabalhos sobre temáticas da ditadura sempre apareceu uma referência à ideia de um passado que não passava”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.