Supremo retoma análise da ADI 3239/03, que trata do direito das comunidades quilombolas à terra
Por Eduardo Araújo, na Carta Capital
“Por mais que você corra, irmão /Pra sua guerra vão nem se lixar/ Esse é o xis da questão/ Já viu eles chorar pela cor do orixá? /E os camburão o que são?/ Negreiros a retraficar/ Favela ainda é senzala, Jão! /Bomba relógio prestes a estourar” (Boa Esperança, Emicida)
Nesta quarta 18 estará em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) a continuidade do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/03.
Conhecida como a ADI do partido DEM e do agronegócio contra as comunidades quilombolas, a ação busca a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, que trata dos instrumentos administrativos-jurídicos de reconhecimento, identificação, delimitação e demarcação dos territórios quilombolas.
O decreto tem sua base normativa na Constituição Federal de 1988 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante às comunidades quilombolas uma série de diretrizes e direitos, entre eles, o de serem previamente consultadas quanto à medidas legislativas que as afetem diretamente.
Juridiquês, siglas, datas e números a parte, o que está em julgamento não é apenas o decreto presidencial.
Esta é uma ADI contra as comunidades quilombolas, não é meramente um julgamento contra um ato do poder Executivo, porque não se trata de uma discussão governamental.
O que está em pauta, atravessando diversas cortinas de fumaça, é o reconhecimento ou não, do Estado e da sociedade das conquistas históricas, sociais, econômicas, políticas e culturais das mobilizações dos quilombolas para garantia de direitos.
No “papo reto”, o que está em análise na ADI, nos últimos 14 anos, é o racismo estrutural (inclusive o judicial) no Brasil.
O racismo estrutural é a constatação de que a sociedade brasileira foi erigida sob a égide do patriarcado, colonialismo, capitalismo e racismo, sendo este último presente nas relações interpessoais, nas invisibilidades institucionais e na baixa representatividade nas arenas políticas, econômicas, culturais e jurídicas.
Todas as análises em torno do julgamento são oportunas, ajudam a atravessar as camadas das cortinas e servem enquanto chaves interpretativas, pois trazem elementos jurídicos, políticos, antropológicos e outros. Entretanto, a principal questão em jogo neste embate é racial.
O julgamento do decreto 4.887/03 pode se tornar um acontecimento de consequências catastróficas incalculáveis, caso julgada procedente a ADI.
Por outro lado, a improcedência da ADI não resolve tudo, mas garante o “direito de ter direitos”, ou seja, a continuidade das lutas em passos curtos e longas esperas com um caminho firme para pisar no território jurídico.
Partindo da premissa do texto, de que estamos diante de um caso que julgará o racismo no Brasil, é óbvio que existe similitude com o julgamento das ações afirmativas nas Universidades no Brasil em 2012 pelo STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°186, ajuizada na pelo DEM (sim, o mesmo partido, antigo PFL e Arena), onde STF decidiu por unanimidade reconhecer a necessidade da superação do racismo no Brasil.
Cada caso tem suas particularidades e potencialidades políticas e simbólicas.
Na ADI contra as comunidades quilombolas, os ministros e ministras poderão ratificar (ou não) as seguintes questões:
1) O Brasil permanecerá sendo a nação do racismo estrutural, institucional e interpessoal ou não?
2) O Brasil continuará a fábula de democracia racial, fundada na exploração do outro e de tantas outras ou não?
3) O Brasil é um projeto de nação/sociedade ou ainda há boas esperanças de enfrentamento ao racismo ou não?
4) A proteção dos direitos humanos e dos grupos vulnerabilizados previstos em nosso ordenamento jurídico é apenas para “inglês ver” ou não?
Não é possível saber, antecipadamente, qual será o resultado do julgamento e quantas armadilhas discursivas podem aparecer nos votos.
Os elementos-chaves (desapropriação, marco temporal, autodefinição, etc) em disputa contêm múltiplas variações hermenêuticas e podem escamotear retrocessos petrificando uma política que está congelada, mas nem por isso pode ser deturpada ou aniquilada.
No Brasil de todos os tempos, poucas pessoas que detêm poder dizem o que precisa ser dito. É assim com o racismo – nunca é “bem assim”, mas sempre é vivido pelas comunidades quilombolas. Estas, permanecem atentas e prontas para resistir pela insistência em ser o que são.
Ao STF caberá declarar se ainda é o que dele se espera, consolidando na Corte e na história mais uma tentativa de superação dos racismos, das violências e dos não ditos.
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*Eduardo Araújo é professor da UFPB e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.