Mãos à mostra: os aspectos cotidianos que o racismo inflige aos corpos pretos

Por Kauan Almeida, no Justificando

Cotidianamente mutilo em mim ações comuns a todos, em parte porque há um sistema pedagógico tácito apreendido nas micro-relações que (des)educam-me para ter a percepção de que sempre sou o alvo preferencial das acusações de incivilidade.

Exemplifico com o gesto de nunca entrar em um estabelecimento comercial com as mãos nos bolsos.

O gesto simples indica uma simbologia disciplinar que é colocada para mim, enquanto homem preto, como um mecanismo social previsível que, após 500 anos de sujeição dos povos pretos, torna-se quase instintivo. José Moura Gonçalves Filho nos sugere, a partir da análise do conto machadiano “O caso da vara”, que o sofrimento imposto aos escravizados e seus descendentes é, também, moral, cavando nos corpos sulcos que ao mínimo indício de ameaça trazem à memória os processos violentos que os criaram.

Não há descanso em um sistema colonial, as violências se acumulam em corpos, produzindo, como escreve Gloria Anzaldúa, distâncias.

“Tanta dor me custou a distância”. Distâncias tais que implicam numa subjetividade fragmentada como consequência do racismo, acarretando, também, um modelo severo de ortopetização.

Este mesmo gesto de retirar as mãos dos bolsos é uma forma de assegurar que os estereótipos criados sobre o perfil dos homens pretos não correspondem à realidade, mas a uma ficção criada e recontada pela mídia, pelas ciências oitocentistas e pelo não-dito racista.

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A respeito dos estereótipos, Homi Bhabha os descreve como um processo de produção de significados que gera uma cadeia de outros estereótipos para se sustentar, portanto, para se efetivar a crença nele é necessário que seja sempre reproduzido por diferentes vozes e em diferentes contextos, dando a eles características fixas sobre um povo.

Não à toa, Quijano finca na codificação das diferenças, o princípio colonial que possibilita ao colonizador instaurar signos de dominação aos povos, desse modo, várias etnias africanas traficadas ao Brasil via movimento transatlântico, receberam o mesmo signo reducionista: raça. A criação de uma unidade de dominação provoca o assujeitamento de diferentes povos a uma característica central, desfigurando as individualidades socioculturais.

Jota Mombaça ao discorrer sobre o ensaio denominado “The Mask – Colonialism, Memory, Trauma and Decolonization”, de Grada Kilomba, diz que ela ao analisar uma máscara imposta por escravocratas brancos aos escravizados estadunidenses para impedi-los de comer a cana-de-açúcar e o cacau das plantações, chama-a de mask speechless (máscara da não-fala) e, assim, estabelece um regime de territorialização da boca que simboliza a fala.

Aqui poderíamos utilizar deste mesmo regime de territorialização para compreendermos de que forma é imputado ao corpo preto regimes territoriais, uma vez que o racismo estrutura indivíduos brancos e pretos em dimensões distintas, neste caso, reduzindo o povo preto, como escreve Sueli Carneiro, ao ôntico, isto é, às particularidades, neste caso, a cor, o corpo, o fenótipo, a cultura etc., enquanto o branco é inscrito na sua totalidade, ou seja, um ser ontológico.

A inscrição dos indivíduos afro-brasileiros na dimensão ôntica coloca-os em processo de outrificação, eximindo, assim, o colonizador da prática da alteridade, pois a outrificação potencializa a animalização e coisificação do corpo preto, o que o torna um corpo destituído de alma e pensamento. Por outro lado, a figura colonizadora é estabelecida como método normatizador universalizante.

Em outras palavras, a sociedade colonial aliena o Ser preto da sua humanidade, onde brancos são postos como seres totais e universais, e pretos limitados ao biológico.

A sintetização à biologia serve ao colonizador como marco de domínio territorial do corpo preto, já que destituído de uma humanidade, negros são produzidos enquanto “outros” e dotados somente de habilidades físicas (corporais). Neste sentido, cabe a vigilância colonizadora investigar, dissecar e produzir efeitos de verdade sobre a anatomia do “outro”. Portanto, ao retirar as mãos dos bolsos, há em mim, a construção de uma série de símbolos introjetados que projetam no gesto o sentimento de “não-ameaça”.

E mais uma vez, inconscientemente, me desvio da vara a fim de não me ferir.

A mão ainda é metaforizada como roubo, tê-la a vista do outro é uma “prova” de inocência.

Leis islâmicas ainda impõem o corte das mãos ao indivíduo que pratica furtos. No Êxodo bíblico há a indicação de que aquele que “for achado roubando e for morto, o que o feriu não será culpado do sangue”[1] . A punição ao furto e ao roubo, nestes contextos, estão impostas somente ao corpo, e, mais especificamente, ao corpo que é territorializado, uma vez que crimes institucionais, como, por exemplo, a corrupção, praticada por aqueles que ocupam cargos de lideranças não são punidos da mesma forma.

Ao mostrar as mãos limpas, certifico ao outro que não sou (somos) o que a dominação colonizadora produziu e reproduziu sobre o povo preto, pois, como na composição Esú, de Baco Exu do Blues, “ sinto que o mundo tem medo de mim”.

Kauan Almeida é mestrando em ensino e relações étnico-raciais.

Referências

GONÇALVES FILHO, José Moura. A invisibilidade pública (prefácio). In.: Costa, F. B.da. Homens Invisíveis – relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004.

ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de lamestiza / Rumo a uma nova consciência. In.: Boderlands/La Frontera: The new mestiza. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 13 (3): 320, pp. 704 – 719, set-dez, 2005.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In.: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, pp. 117 – 142

SANTOS, Danilo dos. Transando com abel ou 14 passos para a loucura: descendo aos infernos de theweeknd. Disponível em: <http://raplogia.com.br/transando-com-abel-ou-14-passos-para-a-loucura-descendo-aos-infernos-de-the-weeknd/>. Acesso em: 03 set. 2017.

MOMBAÇA, Jota. Pode um cu mestiço falar?. Disponível em: <https://medium.com/@jotamombaca/pode-um-cu-mestico-falar-e915ed9c61ee>. Acesso em: 05 set. 2017.

NKOSI, F. D. O pênis sem falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. In: Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 75-104.

CARNEIRO, A. S. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese (Tese de doutorado) – USP. São Paulo, p. 339., 2005.

KILOMBA, Grada. Plantation Memories: EpisodesofEverydayRacism.Münster: Unrast, 2008.

[1]Êxodo 22:2

Destaque: Roberto Weigand.

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