Nazim Hikmet: A vida é alegre, ma non troppo, por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Hé dis donc, Taranta Babu! Hé dis donc, que c’est beau de vivre!
Nom de dieu, que c’est beau de vivre! (Nazim Hikmet -1901-1963).

Diga lá, Taranta Babu! Diga lá! Como é bom viver! Meu Deus do céu, como é bom viver! A vida é uma coisa tão bela, tão alegre, mas há momentos estranhos, como agora, em que os bandidos dão as cartas e a vida fica tão sangrenta e desumana, tão insuportável, que dá vontade de desistir dela. O que fazer?

Parece até o Brasil de hoje. Mas foi escrito pelo poeta turco Nazim Hikmet, em 1935, num cenário tão “esquisito” como esse que vivemos, no qual a vida duvida da própria beleza. O nazismo, o fascismo e o racismo assolavam a Europa e conquistavam adeptos em outros países, incluindo o Brasil, onde a ditadura Vargas prendia, torturava, arrebentava. A indústria bélica fazia mais de 40 milhões de mortos na Segunda Guerra. Logo o macarthismo iria ferir de morte a democracia norteamericana. Havia retrocesso generalizado nas liberdades, a censura golpeava as artes, o cinema, o museu, a escola, o sindicato, com a cumplicidade da grande mídia.

Esse filme a gente está vendo agora outra vez. O triunfo do obscurantismo e da escrotidão, hoje, atualizam as palavras de Nazim Hikmet, que viveu duas guerras mundiais. Preso político durante quinze anos, foi torturado, fez greve de fome e, logo ele que amava tanto a vida, tentou o suicídio na prisão em um momento de dor insuportável. Foi condenado à morte e libertado graças a uma campanha internacional. Exilou-se sem o direito de rever a mulher e o filho proibidos de deixar a Turquia. É o poeta turco de maior expressão internacional, mas ainda pouco conhecido aqui, onde seu nome não é badalado nos suplementos literários. Et pour cause…

Ivan Ivanovitch

A nossa geração das passeatas contra a ditadura teve a sorte de conhecê-lo porque, nessa época, circulava clandestinamente entre os militantes uma edição em espanhol do livro Existió realmente Ivan Ivanovich? – peça de teatro em três atos, escrita por ele no seu exílio de Moscou, em 1955, na qual criticava o regime stalinista. Éramos poucos os que sabíamos quem era Nazim Hikmet. Ainda somos.

– Ele era um homem alto, louro, aquilino, de olhos azuis, muito simpático. Mantinha sempre um tom risonho e jovial nas suas conversas – escreveu seu amigo, o poeta cubano Nicolás Guillén em suas memórias.

Nazim passou a parte mais significativa de sua vida na prisão, condenado em dois processos.  O primeiro quando seus livros de poesia foram encontrados com vinte alunos da Academia Militar que adoravam literatura. Por isso, foi acusado de incitação à indisciplina e à rebelião, com pena de 15 anos de prisão. O segundo porque cadetes da Marinha foram também surpreendidos lendo os livros do poeta. Aqui a condenação foi de 28 anos. A poesia dele dentro dos quartéis fazia mais “estragos” que uma bomba, porque fazia pensar.

Quando ganhou, em novembro de 1950, o Prêmio da Paz, conferido pela II Conferencia do Congresso Mundial da Paz, quem recebeu a honraria em seu nome foi Pablo Neruda que, no discurso, contou como Nazim Hikmet reagia à violência. Encarcerado por um tempo em um barco da Marinha turca, foi colocado dentro de uma latrina cheia de excremento e triunfou sobre a cloaca nauseabunda, cantando. Cantou sem parar em voz alta todas as canções de amor que conhecia, seus poemas e cantigas populares, até de lá ser retirado, rouco e cambaleante..

Depois de fugir da Turquia, já no exílio, tentou por todos os meios trazer de lá sua mulher e filho, sem sucesso. Neruda conta que ela procurou o general, ministro do Interior, que lhe disse:

– Nunca sairás da Turquia. Nem tu, nem teu filho. Teu marido vai sofrer até morrer por causa disso. Logo depois tu seguirás seus passos. A criança ficará, então, sob a nossa guarda para que lhe ensinemos a odiar seu pai.

Viva a vida

A resposta antecipada que ele deu está em um poema à sua mulher, em outubro de 1945, no qual afirma o compromisso com a beleza da vida: “Nós dois sabemos, minha amada, / que nos ensinaram / a ter fome e frio / a morrer de cansaço / e a viver separados. / Nós não fomos obrigados ainda a matar / e nem chegou ainda a hora de morrer. / Nós dois sabemos, minha amada / que nós podemos ensinar os outros / a combater por nosso povo / a amar cada dia um pouco mais / cada dia um pouco melhor…”

A obra luminosa de Nazim Hikmet continua inspirando o mundo, apostando na vida, mesmo “nesses tempos em que é tão difícil a ternura”, como escreveu sobre ele o poeta basco Blas de Otero. Nazim sabia que a vida podia ser bem melhor e lutou para que assim fosse, mas isso não o impediu de dizer, como Gonzaguinha, que a vida é bonita, é bonita e é bonita.

Desistir da vida? Professores, servidores da UERJ e o funcionalismo público do Rio estão sem receber seus salários há três meses num contexto em que a ministra de Direitos Humanos Luislinda Valois, que não se pronunciou sobre as leis de Temer permissivas em relação ao trabalho escravo, requer salário mensal de R$ 61 mil, “porque não é escrava para trabalhar de graça”.

O espetáculo obsceno encenado nacionalmente por representantes dos três poderes é chocante e brutal. O presidente é acusado – com provas robustas – de chefiar uma quadrilha, da qual fazem parte seus ministros. Deputados e senadores chantagistas, muitos deles envolvidos com corrupção, boicotam qualquer investigação. O Judiciário tergiversa. Todos eles com discursos indigentes, verdadeiras bofetadas em nossa inteligência. É a ditadura do lumpensinato. Não esboçamos qualquer reação. Adoecemos impotentes, deprimidos, alguns desistindo da alegria da vida.

Quando a vida está ameaçada, nesses tempos de Trump e Temer, ler Nazim Hikmet não é só um bálsamo, é uma necessidade. Ele enfrenta a morte.

A Morte

Um dos tópicos mais universais que assombra o homem de qualquer cultura, época ou crença, a morte, recebe esse tratamento poético. No seu último poema – “Meu enterro” –  escrito em abril de 1963, em Moscou, o poeta tem a coragem de brincar com sua própria morte:

Meu enterro sairá de nosso pátio? / Como vai descer do terceiro andar?
O caixão não cabe no elevador / E as escadas são demasiado estreitas.
Quando o caixão finalmente entra no carro funerário, que o transporta, o poeta se despede:
A janela de nossa cozinha me seguirá com a mirada
Nosso balcão me acompanhará com a roupa no varal.
Não podeis imaginar como fui feliz neste pátio.
Vizinhos meus, a todos desejo uma longa vida.

 

Já no conto “A Nuvenzinha Apaixonada”, as flores que morriam por falta de água são salvas porque a Nuvem faz chover sobre o jardim. A menininha jardineira fica alegre pelas flores, mas triste com o desaparecimento da Nuvem. O coelho, seu amigo, a consola, de uma forma quase messiânica:

– Quem ama, não morre. Quem morre para que os outros vivam, nunca desaparece. Renasce cada vez que é lembrado. Fica vivo na memória.

O júbilo com que celebra a vida se transforma em reverência à morte, quando tem esse sentido amoroso.

P.S. Compartilho com alguns raros leitores a trajetória de alguém que amou a vida. Agradeço ao titiriteiro Euclides Coelho de Souza o livro do Ivan Ivanovitch que há muito tempo me presenteou. Agora, décadas depois, seu filho André me brinda com a versão em francês da Nuvenzinha Apaixonada. ricamente ilustrado.  A Editora da UnB programou a publicação de poemas traduzidos por Marco Syrayama Pinto e John Milton, mas não me foi possível verificar se a edição existe.

Nazim Hikmet: Le Nuage Amoureux. Paris, Gallimard. 2013. Nazim Hikmet: Existió realmente Ivan Ivanovitch? Buenos Aires. Ariadna. 1957

Numa versão livre do francês, deixo abaixo “Viver”, do livro Cartas a Taranta Babu (1935) – longo poema narrativo sobre a invasão da Etiópia pelas tropas de Mussolini, no qual um jovem etíope escreve à sua mulher.

VIVER

Diga lá, Taranta Babu.
Diga lá! Como é bom viver!!!
Meu Deus do céu, como é bom viver!!!
Pensa, Taranta-Babu:
O coração
A cabeça
e o braço do homem,
perfuraram as entranhas da terra,
criaram deuses de aço com bocas de fogo,
que podem aniquilar o planeta
com um simples piscar de olhos.
A árvore que dá granadas uma vez por ano
Pode dar mil vezes mais.
O nosso mundo é tão grande, tão belo,
tão vasto e tão espaçoso, que
todos nós podemos cada noite,
deitar-nos à beira-mar
sobre as areias douradas
de um litoral ao outro,
para cantar as águas estreladas.
Como é bom viver, Taranta-Babu.
Como é bom viver,
lendo o mundo como se fosse um livro,
sentindo-o como um canto de amor,
maravilhando-se como uma criança.
Viver!
Viver o dia à dia
E entrelaçar os dias todos
Como se fia um tecido de seda.
Viver como se canta em harmonia
Uma canção de alegria.
Viver…
E no entanto, que negócio estranho, Taranta-Babu
Que história mais esquisita
De ver que essa coisa tão bela
Que essa coisa tão alegre
Se tornou hoje terrivelmente nojenta.

Comments (2)

  1. Sobre la vida

    No es chacota la vida.
    La tomarás en serio,
    como lo hace la ardilla, por ejemplo,
    sin esperar ayuda ni de aquí ni de allá.
    Tu más serio quehacer será vivir.

    No es chacota la vida.
    La tomarás en serio,
    pero en serio a tal punto
    que, puesto contra un muro, por ejemplo,
    con las manos atadas,
    o en un laboratorio,
    de guardapolvo blanco y con grandes anteojos,
    tú morirás porque vivan los hombres,
    aun aquellos hombres
    cuyo rostro ni siquiera conoces.
    Y morirás sabiendo, ya sin ninguna duda,
    que nada es más hermoso, más cierto que la vida.

    La tomarás en serio,
    pero en serio a tal punto
    que a los setenta años, por ejemplo,
    plantarás olivares,
    no para que les queden a tus hijos,
    sino porque, aunque temas a la muerte,
    ya no creerás en ella,
    puesto que en tu balanza
    la vida habrá pesado mucho más.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

15 − 14 =