A Escola Yanomami: levando e trazendo histórias, por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

De Roraima – A fugaz convivência com mais de cem índios Yanomami e Ye’kuana, nessa semana, de repente me proporciona a doce sensação de que estou aqui no lago Caracaranã, para cumprir, embora sem igual competência, missão similar à do contador de histórias na sociedade Matziguenga. A existência dele não foi registrada pela literatura etnográfica, mas o viajante francês Paul Marcoy jurou tê-lo ouvido, em 1846. A controvertida figura do kenkitsatatsiriras, ou seja, “aquele que conta histórias”, foi recriada ficcionalmente por Vargas Lllosa no romance “El hablador”.

O tal falador ou contador de histórias perambula o ano todo por cinquenta comunidades Matziguenga espalhadas pela região dos rios Urubamba e Madre de Dios, na Amazônia peruana. Sua função é andar de aldeia em aldeia, levando e trazendo informações de todas para cada uma. Atualiza notícias e fofocas, além de contar peripécias de heróis míticos e narrativas nas quais Tasurinchi, o Criador do Mundo, enfrenta  Kientibakori, o Coisa Ruim. Por não ter endereço fixo, nem roça, enquanto ele lá permanece, cada aldeia visitada, agradecida, lhe dá tudo: casa, comida e tanga lavada.

Sua estadia termina quando já contou tudo sobre as demais aldeias e recolheu as novidades daquela em que está. Levanta, então, acampamento, e sai para outra, confirmando que “tudo pode mudar em vinte minutos”. Dessa forma, o falador, dotado de memória excepcional, leva e traz a voz de cada aldeia em sua própria língua, contribuindo, à maneira de antigos trovadores, para a confraternização e coesão do grupo. Este lugar de destaque, que lhe permite recolher, repassar e renovar informações, confirma que “o que pinta de novo e vira lenda, pinta em Matziguenga”.

Fábrica de napëpë

Lembrei do “falador” quando fui convidado para relatar aos Yanomami e aos Ye’kuana como é que funcionam as escolas indígenas em outras áreas do Brasil, especialmente na Amazônia e nas regiões Sul e Sudeste, onde ministrei cursos de formação de professores indígenas. O que lá aprendi, repassei agora na III Oficina temática organizada para atualizar o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Yanomami, que abriga 321 aldeias com 25 mil índios.

Além dos Yanomami e Ye’kuana, participaram nesta III Oficina representantes de organizações governamentais, de universidades e de ONGs vinculadas à educação e à saúde. No primeiro dia, a antropóloga Lídia Montanha Castro, que viveu com os Yanomami e alfabetizou muitos deles em suas línguas, apresentou a linha do tempo da educação escolar e da saúde, desde 1500, numa visão histórica que mostra a relação tensa dos índios com a escola, responsável por apagar línguas indígenas e saberes tradicionais.

Este quadro permitiu iniciar minha exposição com o desenho do guarani Vanderson Lourenço, que resume sua visão sobre a trajetória da escola no Brasil: um prédio com uma chaminé, cuja fachada exibe em letras grandes: FÁBRICA DE FAZER BRANCOS. Lá, as crianças entram indígenas, mas saem juruá, segundo os Guarani ou napëpë, como fala o Yanomami ao se refeir aos não-indígenas. Por isso, a escola é retratada, num mito andino, como um monstro devorador de identidades.

As escolas Kaxinawá e Ashaninka foram também apresentadas em relatos colhidos numa disciplina que há tempo ministrei no curso de formação de professores indígenas do Acre, organizado pela Comissão Pro-Indio.  Lá me contaram que um dia, indagado sobre se seu filho falava a língua Huni Kuin e conhecia as narrativas míticas, um velho Kaxinawá respondeu:

– Não, minha filha! Coitadinho! Ele frequentou a escola. Não sabe nada.

Nossa Flor

Foram relatados alguns contraexemplos das escolas bilíngues e interculturais criadas a partir da Constituição (1988) e da Lei de Diretrizes e Bases (1996). Hoje, são cerca de 2.700 escolas, com 11 mil professores e 250.000 alunos no ensino fundamental e médio, segundo o Censo Escolar elaborado pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Entre elas estão a Escola Tuyuka Utapinopona e a Escola Tukano Yupuri da aldeia Bote Puri Bua, ambas no rio Tiquié, assim como a Escola Yandé Putira – Nossa Flor da aldeia Baré, em Canafé e as escolas Tikuna do Alto Solimões.

As notícias levadas aos Yanomami sobre essas escolas que visitei estão relacionadas ao uso e produção de material didático. O melhor uso dado aos livros inadequados enviados pelo MEC para alimentar a fábrica de fazer brancos foi fazer bandeirolas de suas páginas para enfeitar as malocas nos dias de festa. Os índios preferem livros produzidos por eles, em suas línguas, como é o caso dos Tuyuka que inventaram a aula-passeio e criaram uma biblioteca com textos manuscritos e desenhos feitos pelos alunos. Levei alguns desses exemplares para esta III Oficina temática.

Lá apresentei também o livro “Índios no Acre: história e organização” feito pelos professores bilíngues. Eles encontraram uma saída para enfrentar a incompatibilidade entre a versão indígena e a científica sobre o povoamento da América. Não hesitaram em incorporar ambas: uma, que circula nas universidades, narra a passagem pelo estreito de Bering durante a última era glacial. A outra, recolhida por Edson Ixã, professor Kaxinawá, conta a travessia feita na costa de um jacaré. Versões Katukina, Kulina e Terena e até as de alguns povos africanos foram também inseridas no livro.

O calendário escolar e a organização do currículo mereceram o relato do que aconteceu na escola Waimiri-Atroari, quando o professor indígena interrompeu a aula de alfabetização para correr com os alunos atrás de uma paca que passava, adiantando a aula de caça, que não pode ter horário rígido, porque a paca não diz em que horário vai passar.

Mostramos, finalmente, os desenhos do professor guarani Claudinei Alves, da Aldeia Laranjinha, no Paraná, para evidenciar as diferenças entre as escolas bilingües e as fábricas de fazer brancos.

Tradução

Todas as falas foram traduzidas em Ye’kuna e em algumas línguas Yanomami, que são pelo menos cinco, segundo os linguistas, ou nove na avaliação dos seus falantes. Para todas elas, há excelentes tradutores. entre os quais Armindo Goes e Dário Yanomami, que acabam enriquecendo o texto, explicitando detalhes que estavam implícitos nas falas de alguns expositores feitas em português.

A III Oficina, que começou no 6 e termina 15 de novembro, está atualizando reflexões acumuladas em eventos anteriores e elaborando propostas e diretrizes para valorizar as línguas e os conhecimentos tradicionais através também de tecnologias não-indígenas. Para isso, precisa fortalecer a escola diferenciada, garantir a formação continuada de professores bilíngues, elaborar material didático próprio, além de melhorar a infraestrutura e as condições de ensino-aprendizagem.

O tópico da saúde foi abordado pelo médico Douglas Rodrigues, coordenador do Programa de Saúde do Parque Indígena do Xingu, que contribuiu para que se discutisse as reivindicações dos Yanomami de autonomia de decisão e gestão participativa, de valorização da medicina indígena, de atendimento preferencial na aldeia e de formação profissionais da saúde com visão adequada à realidade intercultural.

Durante minha fugaz passagem, andei anotando algumas histórias narradas pelos Yanomami e pelos Ye’kuana para contá-las depois aos guarani, sentindo-me pretensiosamente um modesto aspirante a kenkitsatatsiriras.

P.S. A III Oficina organizada pela Associação Hutukara Yanomami (HAY) e o Instituto Socioambiental (ISA), está acontecendo no Centro Regional do Lago Caracaranã, dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, onde à noite uma lua escandalosamente deslumbrante ilumina o espelho do lago, a areia fina e os cajueiros nativos. Coordenada por Marina Vieira e Lucas Lima, contou com a participação, entre outros, de Marcos Wesley, Ciro Campos, Iñaki Gomez Corte e Marília Senlle (ISA), Silvio Cavuscens (SECOYA), Anne Ballester e Otavio Yanomami (Rios Profundos).

Foto: Iñaki Gomez Corte

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