A psicanálise do golpe de 2016 / Psicanálise da miséria política brasileira: paixão pelo Real e pulsão golpista

“Ao atravessar a fantasia, a ‘classe média’ brasileira encontrou o neofascismo como a ideologia social e política capaz de permitir, numa situação de crise estrutural do capitalismo brasileiro, identificar-se totalmente com a sua fantasia primordial”.

Por Giovanni Alves, no blog da Boitempo

Os acontecimentos históricos do Brasil do Golpe de 2016 podem ser considerados verdadeiros espetáculos institucionais de ruptura da ordem democrática. Por isso utilizamos a figura da Ópera dos canalhas, pois, de fato, cumpriu-se um script. A mídia dominante mobilizou as ruas, e a “opinião pública”, pré-fabricada pelos media, mobilizou o Congresso Nacional com aval do Supremo Tribunal Federal.

No intuito de elaborar uma psicanálise do Golpe de 20161, consideramos que a pulsão golpista que caracteriza a miséria política brasileira representa o que poderíamos denominar “paixão pelo Real” (termo utilizado por Alain Badiou e Slavoj Žižek). Vejamos: de acordo com Žižek, a noção de uma paixão pelo Real teria animado tanto os atos revolucionários do século XX quanto o terrorismo manifesto hoje (por exemplo, o ataque às torres gemas do WTC em 11 de setembro de 2001). No caso do Brasil, entretanto, não se trata obviamente de revolucionários nem de terroristas, propriamente ditos, mas sim de golpistas – isto é, lideranças políticas, empresariais, sociais e sindicais, além de procuradores e magistrados e outros agentes públicos que “encenaram” o que descrevemos acima como a Ópera dos Canalhas.2

Poderíamos dizer que os terroristas da democracia imaginária promoveram a experiencia de transgressão da ordem constitucional para defender a causa da manutenção do status quo da Casa Grande & Senzala, não temendo ir até o fim e fazer o trabalho sujo que vai contra seus princípios morais privados. Como “terroristas políticos”, os supostos democratas brasileiros, de modo cínico, transgrediram,   espetacularmente, dentro da própria ordem legal, a própria ordem constitucional. Não temeram operar sob o manto da institucionalidade democrática, a violência política institucional sob aplauso espetacular da opinião pública de “classe média”.

Utilizando a sintaxe lacaniana, podemos dizer que, no golpe de 2016, a nossa paixão pelo Real foi complementada pelo seu inverso aparente, isto é, uma certa paixão pelo semblante3 representada pelo simulacro da institucionalidade democrática e o espetáculo da ignomínia política. A paixão pelo Real que caracteriza a miséria política brasileira, interconectou-se no século XXI com a paixão pelo semblante, tendo em vista que a experiencia da transgressão da ordem democrática, diferentemente, por exemplo, do golpe militar de 1964, assumiu a forma do espetáculo da democracia imaginária. O golpe de 2016 foi o resultado de uma paixão pelo Real, paixão daqueles que afirmam: “Vamos agir brutalmente”, mas seu efeito final é o de um grande espetáculo explosivo que nos fascina (com os auspícios do Padrão Globo de qualidade).

A ação golpista da direita organizada que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016 representou certa experiência de estetização da violência política articulada no seio da própria institucionalidade democrático-burguesa. Um golpe branco, de novo tipo, ou um golpe “brando”, tal como a “ditabranda”, termo com o qual nos brindou o editorial da Folha de São Paulo. Na era da sociedade do espetáculo, a pulsão golpista brasileira adquiriu um caráter de Imagem espetacular. Para ser “legitimado” pela sociedade civil burguesa, a pulsão golpista, impulsionada pela paixão da elite conservadora-oligárquica pela manutenção do status quo de desigualdade social, teve que constituir-se como verdadeiro  espetáculo midiático-jurídico e político.

Para Lacan, de acordo com Žižek, o Real é apenas uma espécie de ruptura na ordem simbólica, ou seja, uma espécie de “representação lógica que marca um antagonismo irredutível”. Alain Badiou e Jacques Rancière concebem o Real lacaniano como estratégia formal. Assim, Badiou se utiliza do conceito de paixão pelo Real para ressaltar um novo relacionamento do homem com a realidade no século XX. Segundo ele, enquanto no século XIX, o homem fazia uma busca incessante e apaixonada pelos seus ideais utópicos ou científicos, no século XX, essa paixão humana vai se voltar para o Real, a coisa em si (das Ding). Para Badiou, essa paixão é levada às últimas consequências pela espetacularização da autodestruição humana, a violência no seu extremo como uma forma de punição pela “des-ilusão” da realidade.

Por outro lado, partindo da posição Alain Badiou, Slavoj Žižek vai além e procura afirmar o Real como “o nó sintomal que marca o ponto de ruptura do edifico social” ou ainda, “o ponto de inconsistência do sistema social”. É desta perspectiva que concebemos a paixão pelo Real da miséria política brasileira. Portanto, atribuímos à noção de Real um sentido histórico-materialista, com o Real representando o “nó sintomal” que caracteriza a formação sócio-histórica brasileira como capitalismo hipertardio e dependente de extração escravista-colonial. Deste modo, o Real do Brasil seria representada pela imagem da “Casa Grande e Senzala” que, na medida em que é desvelada pela paixão dos golpistas pelo preservação do status quo, expõe a farsa da democracia política (a democracia imaginária) e a inconsistência do sistema social de poder burguês.

O sentido histórico-materialista da noção de Real representa-o como a verdade concreta  da  representação das inconsistências (ou contradições) da ordem burguesa hipertardia. A verdade intimida. Entretanto, não temos como escapar do Real, ele está aí, impõe-se a nós como uma lei inexorável. A esquerda social-liberal que idealiza um capitalismo social de rosto humano no Brasil, incapaz de compreender o Real da miséria brasileira, parece continuar acreditando na peça-bufa representada pelo Estado democrático de direito no seio irremovível da ordem burguesa hipertardia de extração escravista-colonial. Eis os impasses da apreensão do Real por aqueles que lamentam o golpe contra as “regras do jogo democrático”. Entretanto, por ironia da história, quem proclama lutar pelos pobres e pela justiça social contribui, em última instância, sem o saber, para reproduzir a democracia imaginária, por meio do semblante do republicanismo, recusando-se assim, a desvelar o Real da miséria brasileira.

A questão da apreensão do Real do Brasil pelo desvelamento da miséria política brasileira é a questão de saber se podemos ou não modificar a sociedade brasileira, tornar suas fissuras visíveis e, assim, escapar dessa imposição, desse discurso da democracia imaginária e do semblante do republicanismo que nega o Real. Assim, é a questão de afirmar o que há de real no real e a necessidade de reinventá-lo como paixão e desejo do povo brasileiro. Nesse caso, torna-se necessário afirmar a verdadeira democracia social, com a mesma paixão alegre que busca o que há de real no real, reinventando o sentido de povo para além do modelo “Casa Grande e Senzala”.

O curto século XX (1914-1989) é o século do capitalismo desnudado (o Rei está nu!). Foi no século XX que o capital imperialista se expôs em suas contradições viscerais e autodestrutivas. O século XX foi o século da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), do fascismo e do stalinismo; da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), dos campos de concentração nazistas, da Bomba Atômica e da Guerra do Vietnã. Enfim, o século XX foi o século do início da crise estrutural do capital (1973-1975). O século XX para o Brasil foi o século da modernização industrial e do sonhos e utopias do Brasil moderno, logo frustrados pela pulsão golpista como movimento do Real da miséria brasileira (o que Caio Prado Jr. intitulou “o sentido da colonização”). Eis os sinais da autodestruição humana e da “des-ilusão” com os ideais burgueses clássicos de Progresso e Civilização.

Interpretamos o significado de Real (para além de Lacan) como sendo aquilo da ordem do impossível – entretanto, diferentemente da abordagem lacaniana, inscrita numa metafisica da coisa em si, apresentamos o Real como sendo a verdade da impossibilidade de conciliação entre civilização e barbárie, ou ainda, a impossibilidade de conciliar desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e o movimento da propriedade privada. Esta impossibilidade, que nega os ideais utópicos burgueses (liberte, egalité et fraternité!), se manifesta irremediavelmente como Imagem na cena histórica do século XX por meio de atos de autodestruição humana (diria Badiou). É como se o Real (metafisicamente falando, a coisa ou das Ding) confrontasse o homem (decifra-me ou devoro-te!).

Alain Badiou entende que o confrontamento do homem com o Real é cada vez mais estimulado pelas mídias (por exemplo, a miséria brasileira está “nua e crua” na tela da Globo!) Enfim, a exploração do Real hoje é espetacularmente midiática. Ao mesmo tempo, na medida em que o Real aparece como “coisa em si”, ele é manipulado como afeto de reprodução da ordem da barbárie social. A pletora de mídias instiga hoje uma nova lógica da Imagem provocada pela mudança da sensibilidade humana que deve adequar-se à nova era do capitalismo manipulatório (o capitalismo do espetáculo, diria Guy Debord), com a automação da recepção pelos novos meios de comunicação da mensagem visual (a televisão e, principalmente a Internet e redes sociais).

Desde 1500, o Brasil é “Moderno”. Foi o movimento da paixão pelo Real que dilacerou a alta modernidade do capital. É essa paixão pelo Real que nos faz reencontrar na história política brasileira a pulsão golpista que constitui nosso traço ontogenético. É como se cada golpe (militares ou golpes midiático-parlamentares ou ainda golpes jurídico-políticos), golpes verde-oliva ou golpe branco, desferido contra os interesses do povo brasileiro, fosse a experiência direta do Real que nos fizesse lembrar a miséria política brasileira: um país de capitalismo dependente hipertardio e de extração colonial-escravista que perpetua, como fardo do tempo histórico, a estrutura de poder burguês oligárquico-política.

Destilando a consciência histórica da modernidade, Auguste Comte disse: “Os mortos governam os vivos”; logo a seguir, Karl Marx ressaltou: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Depois, para G. K. Chesterton, a “tradição não significa estarem os vivos mortos, mas sim os mortos vivos”. Enfim, nós brasileiros, somos demasiadamente modernos: modernidade-zumbi. Podemos dizer que o Real da miséria brasileira persiste, de tempos em tempos, a se manifestar com sua violência extrema como o preço a ser pago por qualquer projeto de mudança social que signifique abolir a Senzala e retirar as camadas enganadoras da realidade que ocultam a profunda desigualdade social da cena brasileira.

Nas palavras de Žižek:

“Ao contrário do século XIX dos projetos e ideais utópicos ou científicos, dos planos para o futuro, o século XX buscou a coisa em si – a realização direta da esperada Nova Ordem. O momento último e definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade social diária – o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade” (Bem-vindo ao deserto do real!, 2003).

A partir da redemocratização na década de 1980, a Constituição de 1988 e as eleições democráticas para Presidente da República em 1989, o Brasil imaginou a realização direta da esperada Nova Ordem ou o que se denominou aqui de Nova República. De 1988 a 2016, tivemos 26 anos de realidade social diária de que o Brasil possuía uma democracia estável. Com o Golpe em 2016 (o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff) tivemos uma experiencia direta com o Real como oposição à realidade social diária do projeto e ideal utópico do Estado democrático de direito. Como disse Žižek: “o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade.”

A ideia de Nova República reforçou a “camada enganadora da realidade” (Brasil, uma nação democrática!), expressando uma paixão pelo semblante que caracterizou o republicanismo de setores importantes da direção do PT. Na expectativa do Evento Messiânico, expresso no lema “Brasil para Todos” (espírito do lulismo e expressão midiática da ideologia da conciliação de classe e pacto conservador), imobilizou-se a dialética (aquilo que Walter Benjamin denominou de Dialektick im Stillstand). Na verdade, o “tempo messiânico” do lulismo desarmou a luta de classes, onde todos os Pobres esperam que o Brasil prossiga no seu rumo democrático de País mais justo e menos desigual (sem reformas de base!).

O republicanismoa crença de que o Brasil possui instituições democráticas consolidadas e, portanto, a crença quase-ingênua na Justiça (e no Poder Judiciário), como paixão pelo semblante, é o outro lado da paixão pelo Real: não apenas imobilizou a dialética, mas provocou a irrupção espetacular do efeito do Real (é quase óbvio que a classe dominante oligárquico-política não iria assistir bestificada à destruição de sua própria ordem social!). Nesse caso, a dialética do semblante e do Real culminou num paradoxo fundamental: “Se a paixão pelo real termina no puro semblante do espetacular efeito do Real, então, em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à paixão pelo Real.” (Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do real!)

Enfim, o espetacular efeito do Real no Brasil seria a farsa de uma das maiores democracias do Ocidente, a Nova República como espetáculo de uma “democracia consolidada” (como afirmou – ironicamente? – Dilma Rousseff no seu discurso na ONU às vésperas de sua deposição ´pelo Congresso). A espetacularização da Nova República, democracia farsescamente consolidada, representou a “paixão pós-moderna pelo semblante” (um detalhe: existe um laço indelével entre paixão pós-moderna e republicanismo no seio do bloco dirigente e de base do PT lulista).

Entretanto, como observou Žižek, “a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à paixão pelo Real”, cuja uma de suas modalidades históricas da cena brasileira foi o Golpe de 2016 que nos fez (re)lembrar o Real da miséria brasileira: o domínio político, econômico e simbólico secular da República brasileira pelo bloco oligárquico-burguês no poder. Na era do lulismo, o poder da propriedade privada no Brasil foi ameaçado – pelo menos no imaginário! Deste modo, o Golpe de 2016 – tal como o de 1964 – representou a volta violenta da verdade do Real: os pobres deveriam ficar no seu lugar (a Senzala).

Enfim, o Golpe de 2016 representou a afirmação do Real da miséria brasileira. Longe de ser apenas uma atitude de canalhas mau-caráter e corruptos ambiciosos, longe de indicar um mero desejo de autoritários fascistas oligarcas, o Golpe de 2016 foi uma tentativa radical de (re)dominar a realidade ou, o que é outro aspecto do mesmo fenómeno, basear firmemente o poder burguês do bloco político-oligárquico – inclusive (e principalmente) o seu poder simbólico – na realidade do Estado integrado aos interesses de classe dominante, contra “a angústia insuportável de sentir-se inexistente” (o desfazimento da ordem burguesa oligárquica em sua representação social provoca uma insuportável angústia na classe dominante e seus prepostos de “classe média”: a angústia de “sentir inexistente”).

O Golpe de 2016 e a instalação das facções da classe dominante no Palácio do Planalto (e não apenas no Poder Judiciário e no Poder Legislativo), contribuiu para que as ditas elites brasileiras se sentissem novamente vivas, firmemente enraizadas na realidade. Enfim, o Golpe de 2016 foi (e está sendo) uma tentativa histórica regressiva de recuperar algum tipo de normalidade, de evitar o total colapso da ordem burguesa – mesmo que o lulismo em si não representasse de imediato, uma real ameaça ao status quo burguês.

Slavoj Žižek faz uma observação que merece ser registrada na integra. Disse ele que:

“hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool… E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição contemporânea da política como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política; ou mesmo do multiculturalismo tolerante de nossos dias, a experiência do Outro sem sua Alteridade (o Outro idealizado que tem danças fascinantes e uma abordagem holística ecologicamente sadia da realidade, enquanto práticas como o espancamento das mulheres ficam ocultas…)? A Realidade Virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do Real – assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida como a realidade sem o ser.” (Bem-vindo ao deserto do real!, 2003).

Perguntaríamos: não seria a paixão pelo Real da miséria brasileira a ânsia pela democracia sem povo? Eis o lastro estrutural da história política brasileira no qual baseia-se a pulsão golpista: o povo é o personagem incômodo da democracia brasileira. Como arte da administração “competente” da coisa pública, a experiencia democrática na visão das elites do atraso deve ser a experiencia da política sem povo. A própria Realidade Virtual, como observou Žižek, é a representação-mor de um produto esvaziado de sua substância. Do mesmo modo, podemos dizer que a democracia no Brasil é sentida como realidade sem o ser (um precedente histórico: o Golpe civil-militar de 1964 deixou “funcionando” o Poder Legislativo e o Poder Judiciário brasileiro, além de permitir a liberdade de expressão – sob censura).

Mas a dialética entre o semblante e o Real, representação e verdade, faz com que comecemos a sentir a própria “realidade real” como uma entidade virtual. O processo do Golpe de 2016 é operado como espetáculo midiático dos “homens de Bem” (ou de bens), políticos, magistrados e procuradores do Estado que operam a conclusão dominante da paixão pelo Real. O efeito espetacular do Golpe, puro ato histórico do Brasil século XXI, repete ad nauseam a pulsão golpista que caracteriza a miséria política brasileira.

Para setores da “classe média” brasileira, o Golpe de 2016 pode ter representado uma estranha satisfação, a jouissance além do princípio do prazer, a jouissance em estado puro. Enfim, a intrusão do Real estilhaçou a nossa esfera ilusória (a democracia brasileira). No Brasil, a realidade da “democracia sem povo” é a melhor aparência de si mesmo (parafraseando Jeremy Bentham): realidade ilusória, representação, estilhaçada pela intrusão do Real.

A ilusão do republicanismo, verdadeira teia de semblantes, ousou penetrar (e subverter) a ordem burguesa oligárquico-política sem mobilizar a dialética. Diz Žižek: “Nessa suspensão da atividade instrumental orientada para um objetivo vemos uma espécie de ‘gasto irrestrito’ batailleano – o desejo pio de eliminar da revolução os seus excessos é simplesmente o desejo de ter uma revolução sem revolução” (Bem-vindo ao deserto do real!, 2013). De fato, o ápice das contradições sócio-históricas semeadas pelas paixões do semblante (por exemplo, as promessas lulistas de combate à desigualdade social pelo Estado democrático de direito no país da “Casa Grande e Senzala”) nos conduziram irremediavelmente ao “vazio destrutivo” do Governo Temer.

É fácil explicar o fato de os pobres brasileiros sonharem em se tornar “classe média” (como queria o lulismo). Mas resta nos interrogar: com que sonha a “classe média” brasileira abastada e imobilizada no seu bem-estar? Ela sonha que uma catástrofe social viria a destruir suas vidas com a ascensão dos pobres. A questão é: como explicar, por que no meio da riqueza (ou relativo bem-estar), a “classe média” brasileira é assombrada por pesadelos catastróficos com a ascensão dos pobres e sua inclusão na sociedade de consumo?

Pela explicação de Žižek, a partir de Jacques Lacan, poderíamos dizer que a “classe média” brasileira, aliada histórica da classe dominante oligárquico-política do Brasil, com a nova crise do capitalismo brasileiro, fez aquilo que os lacanianos chamam de “travessia da fantasia”. Isto não significa que os sujeitos de alguma forma abandonaram seu envolvimento com os caprichos ilusórios e se acomodaram a uma “realidade” pragmática, mas exatamente o contrário, ou seja, a “classe média” brasileira se submeteu ao efeito da carência simbólica que revela o limite da realidade diária (pobre Brasil!). Portanto, conclui Žižek: “Atravessar a fantasia no sentido lacaniano é ser mais profundamente exigido pela fantasia do que em qualquer outra época, no sentido de ter uma relação cada vez mais íntima com o núcleo real da fantasia que transcende a imaginação” (Bem-vindo ao deserto do real! – ele se utiliza das contribuições de Richard Bothbay).

Poderíamos dizer que a situação de crise do capitalismo brasileiro, nas condições da profunda manipulação midiática pela oligarquia burguesa proprietária dos meios de comunicação e informação, fez com que a “classe média” brasileira caísse no abismo da sua fantasia de classe, isto é, obrigou-a a ter uma relação cada vez mais íntima com o núcleo real da fantasia que transcende a imaginação: a ascensão dos pobres ameaça a dominação da oligárquica proprietária, a quem historicamente a “classe média” serve como classe-apoio.

Na vida diária, a “classe média” está imersa na “realidade” (estruturada e suportada pela fantasia da ordem burguesa normalizada). A crise e a manipulação perturbam a imersão na sua fantasia, desvelando que outro nível reprimido da psique resiste a ela (a proletarização da “classe média” a expõe como efetivamente não-proprietária e portanto, como… “pobre”. O horror! O horror!). Portanto, reagindo diante do vislumbramento do “núcleo real da fantasia”, contrário à “realidade” estruturada e suportada pela fantasia (não somos pobres, somos “classe média”!), a “classe média” brasileira “atravessou a fantasia”, o que significa identificar-se totalmente com a fantasia – a saber, como observou Žižek, com a fantasia que estrutura o excesso que resiste à nossa imersão na realidade diária.

A “fantasia que estrutura o excesso” é a fantasia da “classe média” brasileira de ser classe dominante (sic) estruturadora do “excesso”: o capitalismo brasileiro oligárquico-burguês de extração colonial-escravista, forma atípica (e portanto, excesso) do capitalismo histórico. Ao atravessar a fantasia, a “classe média” brasileira encontrou o neofascismo como a ideologia social e política capaz de permitir, numa situação de crise estrutural do capitalismo brasileiro, identificar-se totalmente com a sua fantasia primordial.

Slavoj Žižek reconheceu que, Richard Boothby está carreto ao enfatizar a estrutura característica, reminiscente de Janus, da fantasia. Diríamos nós, uma fantasia é simultaneamente pacificadora, desarmadora da própria idéia de “classe intermediária” na sociedade oligárquica construída pela polaridade escravos x proprietários. Enfim, o que eram os homens livres com capital simbólico, ilustrados e bem apessoados, senão o resto da ordem oligárquica que ambicionava adentrar-se na Casa Grande? A fantasia da “classe média” brasileira é incluir-se, mesmo que simbolicamente, no polo dos proprietários que confrontam os “escravos” (os pobres).

Entretanto, ao mesmo tempo que pacificava e desarmava a “classe média” no plano do imaginário, a fantasia, ao defrontar-se com a realidade diária da crise social, produz uma angústia que a obriga a atravessar a fantasia, expondo assim, o caráter de destruição e perturbação inassimilável da fantasia na nossa realidade (objetivamente a “classe média” se proletariza!). É curioso que, para Lacan, como ressalta Žižek, o verdadeiro objeto da angústia é a excessiva proximidade do desejo do Outro. No caso brasileiro, as políticas de transferência de renda e programas sociais de combate a desigualdade social aproximaram excessivamente os desejos dos “pobres” da “classe média” brasileira.

Na medida em que se proletariza, mais a “classe média” se identifica com as obscenas fantasias racistas que circulam no espaço simbólico. Enfim, elas se distanciam cada vez mais das pessoas tal como “realmente são”, mas pelo contrário, as confrontam a partir das obscenidades ideológicas incentivadas pela classe dominante. Deste modo, atravessar a fantasia para a “classe média” brasileira é fazer cumprir o seu papel histórico de cão-de-guarda ideológica das oligarquias proprietárias brasileiras.

A “classe média” proletarizada, na medida em que, cada vez mais, vive a experiência de estar num universo artificialmente construído que expõe a polarização de classe numa situação de crise da economia capitalista brasileira, encontra dificuldades, em si e para si, de integrar o Real na realidade (no que ela sente como tal), sendo forçada a senti-lo como um pesadelo fantástico. Na verdade, o Real que retorna (somos uma “República de bananas”, ops, commodities e rentismo) tem o status de outro semblante que expõe o caráter traumático e excessivo do próprio Real. A crise e proletarização da “classe média” é seu pesadelo fantástico com o próprio Real, que para se manter, tem que ser visto como um irreal espectro de pesadelo.

O movimento da “classe média” brasileira em apoiar o Golpe de 2016 foi um semblante, um “efeito” que, ao mesmo tempo, ofereceu “a coisa em si” (remember a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964?). A narrativa do “mal do PT” foi a ficção midiática da “classe média” que tornou possível a ela suportar o “núcleo duro do Real” que se expôs com a crise estrutural do capitalismo brasileiro. Como ensinou a psicanálise, de acordo com Žižek, é preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o “núcleo duro do Real” que só temos condições de suportar se o transformarmos em ficção. E conclui ele: “é necessário ter a capacidade de distinguir qual parte da realidade é ‘transfuncionalizada’ pela fantasia, de forma que, apesar de ser parte da realidade, seja percebida num modo ficcional” (Žižek, 2013). Incapaz de discernir a transfuncionalização da realidade pela fantasia, a parte da ficção na realidade “real” (somente os homens, entidades que habitam o espaço simbólico, são capazes de apresentar como falso o que é verdade), a “classe média” brasileira optou por “cortar-se” na própria pele (o governo Temer tem sido uma navalha afiada…).

Žižek utilizou o exemplo das pessoas que se cortam para dizer:

“Se o verdadeiro contrário do Real é a realidade, isso significaria que, ao se cortar, elas na realidade estão tentando fugir não somente da sensação de irrealidade, da virtualidade artificial do mundo em que vivemos, mas do próprio Real que explode sob a forma das alucinações descontroladas que começam a nos assombrar quando perdemos a âncora que nos prende à realidade?” (Žižek, Bem-vindo ao deserto do real!).

No plano da memória social e histórica, a ideologia dominante oculta o trauma histórico brasileiro que originou o excesso na formação capitalista brasileira: a escravidão e o “sentido da colonização” (Caio Prado Jr.). De acordo com a psicanálise, a verdadeira escolha com relação ao trauma não está entre lembrar-se ou esquecer-se dele: os traumas que não estamos dispostos a ou não somos capazes de relembrar assombram-nos com mais força. Deste modo, para a “classe média” brasileira, suas origens oligárquicas de viés escravista-colonial, capacho da Casa Grande, é um verdadeiro pesadelo. A ideologia dominante não apenas as faz esquecer esse acontecimento histórico, mas tirou dela a força para lembrá-lo. Como observou Žižek “o contrário de existência não é inexistência, mas insistência: o que não existe continua a insistir, lutando para passar a existir” (Žižek, Bem-vindo ao deserto do real!).

A “classe média” brasileira teve oportunidades históricas de mudar, aliadas às camadas populares, as bases estruturais da formação capitalista no Brasil. Não podemos esquecer, por exemplo, o movimento  tenentista na década de 1920; ou mesmo o populismo da década de 1950 e o lulismo na década de 2000. Entretanto, ela renunciou e perdeu oportunidades ético-politicas cruciais de aliar-se com o povo brasileiro e fazer a revolução social necessária. Ela deixou de realizar a ação que “mudaria tudo”. Žižek ressaltou: “a própria inexistência do que nós deveríamos ter feito há de nos perseguir para sempre (apesar de não existir o que nós não fizemos, seu espectro continua a insistir)” (Žižek, 2013). Assim, podemos dizer que o lulismo foi o espectro daquilo que continua a persistir e insistir no Brasil: a necessidade de realizar a revolução brasileira ou um programa de reformas de base capazes de eliminar o “excesso” do capitalismo brasileiro (ou o próprio capitalismo no Brasil).

Žižek faz referência a Eric Santner,4 que desenvolveu a noção de Walter Benjamin (nas Teses “Sobre o conceito de história”) que, “uma intervenção revolucionária presente repete e redime as tentativas fracassadas do passado: os ‘sintomas’ – traços passados que são retroativamente redimidos pelo ‘milagre’ da intervenção revolucionária – ‘não são atos esquecidos, mas, pelo contrário, as omissões de ação que ficaram esquecidas, a incapacidade de suspender a força da ligação social que inibe os atos de solidariedade com os ‘outros’ da sociedade” (os grifos são do autor). Diz ainda Santner: “Os sintomas registram não somente as tentativas fracassadas do passado, mas, mais modestamente, as ocasiões no passado em que se deixou de reagir ao chamado à ação ou à empatia pelos outros cujo sofrimento de alguma forma pertence à forma de vida de que se é parte. Ocupam o lugar de alguma coisa que está lá, que insiste na nossa vida, apesar de nunca ter chegado à completa consistência ontológica. Assim, os sintomas são, em certo sentido, os arquivos virtuais dos vazios – ou, talvez melhor, defesas contra os vazios – que persistem na experiência histórica” (Citado por Žižek em Bem-vindo ao deserto do real!o grifo é nosso).

Deste modo, poderíamos dizer que, os “sintomas” que afligem hoje a “classe média” brasileira tomam a forma de irrupções delirantes na vida social “normal” (de Janaína Paschoal et caterva ao conservadorismo moral como marca do MBL), verdadeiros rituais obscenos da ideologia dominante. A cena política brasileira antes e depois do Golpe de 2016 pode ser interpretado como um perfeito “carnaval” bakhtiniano; ou ainda um “sintoma”: no plano psicanalítico, os delírios jacobino-juridicistas da “classe média” à la Moro ou Dallagnol, por exemplo, seriam mecanismos de defesa que encobrem o vazio da incapacidade da “classe média” de intervir eficazmente na crise social (combate-se a corrupção… para, paradoxalmente, reiterar a ordem burguesa visceralmente corrupta).

Noutras palavras, parafraseando Žižek, diríamos que a própria fúria e ódio das manifestações da “classe média” brasileira é uma prova a contrario da possibilidade da autêntica revolução proletária: sua energia excessiva só pode ser entendida como uma reação ao reconhecimento (“inconsciente”) da oportunidade revolucionária perdida (que no plano histórico-concreto foi representado pelo lulismo). Nos interroguemos: não seria a causa última da nostalgia entre muitos intelectuais petistas e não-petistas (e até mesmo entre pessoas comuns) o desejo, não tanto (ou não apenas) do passado dos governos Lula e Dilma, mas do que poderia ter acontecido, da oportunidade perdida de construção política e social de um outro Brasil?

Consequentemente, não seriam também as explosões pós-golpe de violência e de direita ao estilo Bolsonaro, uma prova negativa da presença dessas oportunidades de emancipação, uma explosão sintomática de fúria que substitui a consciência de oportunidades perdidas? Žižek observou: “Não devemos ter medo de traçar um paralelo com a vida psíquica individual; assim como a consciência da perda de uma oportunidade “privada” (por exemplo, a oportunidade de se envolver numa relação amorosa enriquecedora) geralmente deixa traços sob a forma de angústias, dores de cabeça e acessos de raiva “irracionais”, o vazio da oportunidade revolucionária perdida pode acabar explodindo em acessos “irracionais” de fúria destrutiva” (Žižek, 2013).

Ao dizermos que o Golpe de 2016 representou a paixão pelo Real que caracteriza a pulsão golpista da miséria política brasileira, significa que devemos rejeita-la em si e para si? Adotando a linha de raciocínio de Slavov Žižek, diríamos que, definitivamente não, pois, uma vez adotada essa postura, a única atitude que resta é a da recusa de chegar até o fim, de “manter as aparências”. A pulsão golpista desvenda o Real do Brasil, a miséria brasileira e a aparência da nossa farsa democrática. O problema com a paixão pelo Real que marca a miséria política brasileira, não é o fato de ela ser uma paixão pelo Real, mas sim o fato de ser uma paixão falsa em que a implacável busca do Real que há por trás das aparências é o estratagema definitivo para evitar o confronto com ele – como? Os golpes sempre significaram alavancas para a modernização conservadora. Portanto, evitou-se o verdadeiro confronto com o Real traumático e excessivo do capitalismo oligárquico-burguês de extração colonial-escravista. Tudo não passou de uma farsa grotesca incapaz sequer de ser  trágica: como são deveras as paixões pelo Real nos “excessos” do capitalismo histórico.

No capitalismo hipertardio e dependente de extração colonial escravista, a farsa grotesca do projeto de civilização mantendo-se a ordem burguesa oligárquico-política não é sintoma de um “atraso”, mas sim resultado necessário do moderno na periferia do sistema mundial do capital. O excesso estrutural do poder do Estado se despe de sua realidade permitindo que o Real se manifeste delirantemente.

Ao analisar Apocalipse Now Redux (2000), a versão mais longa e recém-editada do filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, Žižek nos mostra, na figura de Kurtz, essa ideia de como o Poder gera seus próprios excessos, que depois tem de eliminar numa operação que forçosamente imita o que ele tem de combater (a missão de Willard de matar Kurtz não existe oficialmente, “nunca aconteceu”, como explica o general que o instrui).

Dessa forma, entramos no domínio das operações secretas, do que o Poder faz sem admiti-lo. Os golpes no Brasil, pelo menos desde 1964, contaram historicamente com o apoio da CIA, operações secretas de um poder que deve eliminar as colateralidades do excesso estrutural do próprio imperialismo do capital que sustenta o sistema da superexploração do trabalho e da desigualdade social. A reiteração dos golpes como uma pulsão que insiste e persiste exige – como disse Žižek, “um ato político coletivo de rompimento desse círculo vicioso do Sistema que gera os excessos do supereu e então é forçado a aniquilá-los: uma violência revolucionária que não seja baseada na obscenidade do supereu. Este ato “impossível” é o que acontece em todo processo revolucionário autêntico” (Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do real!).

Finalmente, Žižek inova ao opor a paixão reacionária à progressista pelo Real: enquanto a paixão “reacionária” pelo Real é, na linguagem lacaniana, “o endosso do reverso obsceno da Lei”, a paixão “progressista” pelo Real é a confrontação com o Real do antagonismo negado, que parte do princípio de que o Real é tocado na, e através da, destruição do elemento excessivo que introduz o antagonismo. Por isso, ele salienta que devemos abandonar a metáfora padrão do Real como a Coisa aterradora que não se é capaz de enfrentar cara a cara, como o Real definitivo oculto sob camadas de véus imaginários e/ou simbólicos. Diz: “A própria ideia de que sob a aparência enganadora oculta-se uma Coisa Real definitiva, horrível demais para que a possamos encarar diretamente, é a aparência definitiva – a Coisa Real é um espectro fantasmático cuja presença garante a consistência de nosso edifício simbólico, permitindo-nos evitar sua inconsistência constitutiva (“antagonismo”)” (Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do real!).

Assim, ir além do Real da miséria politica brasileira significa não renunciar à luta de classes como estratégia de expor a inconsistência constitutiva da ordem burguesa oligárquica no Brasil. É possível sim enfrentar, cara a cara, o Real da miséria brasileira como Coisa aterradora, oculta sob camadas de véus imaginários e/ou simbólicos (o que se põe a necessidade crucial da luta ideológica e cultural contra a moralidade burguesa arcaica, o que a esquerda brasileira tem evitado, satisfazendo-se apenas com a luta política e sindical). A Coisa Real que mantém e perpetua a ordem oligárquica brasileira é um “espectro fantasmático” cuja presença garante a consistência de nosso edifício simbólico baseado na noção do Homo sacer. Por isso, Žižek conclui seu texto salientando:

“É neste ponto que se deve introduzir a noção de Homo sacer, criada recentemente por Giorgio Agamben: a distinção entre os que se incluem na ordem legal e o Homo sacer não é apenas horizontal, uma distinção entre dois grupos de pessoas, mas, cada vez mais, também a distinção vertical entre as duas formas (superpostas) como se pode tratar as mesmas pessoas – resumidamente: perante a Lei, somos tratados como cidadãos, sujeitos legais, enquanto, no plano do obsceno supereu complementar dessa lei incondicional vazia, somos tratados como Homo sacer.” (Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do real!)

Eis a questão: a luta pela abolição da ordem capitalista oligárquico-burguesa no Brasil é a luta pela democratização radical do Estado político capaz de erigir um novo edifício simbólico baseado na integração pleno do povo brasileiro (o proletariado pobre do campo e da cidade, que constitui a maioria da população brasileira) no direito à vida plena de sentido. Num país capitalista de formação histórica escravista-colonial o estigma da escravidão constituiu o edifício simbólico do mundo do trabalho. O cidadão-escravo é aquele que habita os “campos de concentração”, territórios de segregação social, favelas e bairros pobres das periferias das cidades brasileiras. É o sem-terra, sem teto, sem perspectiva de se inserir nos espaços da civilização brasileira. Em tais locais, como diria Agamben, “a vida humana é perfeitamente matável e insacrificável” (Giorgio Agamben, Homo sacer)

A biopolítica do povo brasileiro é historicamente a biopolítica da “vida nua” (zoé), onde o ser denominado “humano” nunca representou e não representa qualquer tipo de humanidade, estando destituído de qualquer das qualidades que poderiam caracterizá-lo como tal. Diz Agamben: “Qualquer um pode matá-lo sem cometer homicídio, a sua inteira existência é reduzida a uma vida nua despojada de todo direito, que ele pode somente salvar em uma perpétua fuga”. No Brasil, a produção normativa da Casa Grande elaborou um edifício simbólico que ocultou a humanidade do pobre. A opinião pública formada pela Mídia dominante não se sensibiliza com a “guerra civil permanente” que caracteriza as metrópoles brasileiras.

Por exemplo, no Brasil, segundo dados do IPEA, em 2015 o País teve uma taxa de homicídios de 28,9 a cada 100 mil habitantes – o que representa um aumento de 10,6% desde 2005. Os dados são impressionantes: a violência mais que dobrou em alguns Estados da Federação, sendo todos das regiões Norte e Nordeste. Os estados que tiveram aumento de mais de 100% na taxa de homicídios foram Amazonas, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Sergipe e Tocantins. A piora mais intensa foi registrada no Rio Grande do Norte, por exemplo, onde o aumento na taxa de homicídios em 10 anos foi de 232% – ou seja, mais que triplicou.

O detalhe oculto: os negros estão mais sujeitos à violência no Brasil. De 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros subiu 18,2%, a mesma taxa teve queda de 12,2% entre habitantes não-negros. Portanto, a estimativa é que os cidadãos negros tenham um risco 23,5% maior de sofrer assassinato em relação a outros grupos populacionais. De cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras no Brasil. Portanto, eis a biopolítica do holocausto do proletariado pobre e negro no Brasil, herdeiros da força de trabalho dos escravos negros, mesmo “libertos” em 1888, foram excluídos historicamente da ordem civilizatória brasileira.

Mesmo a “classe média”, como camada social intermediária operadora ideológica da oligarquia proprietária, excluiu do seu imaginário o pobre como ser humano, cidadão, sujeito legal. Na verdade, a inclusão do indivíduo representativo da zoé, a vida nua ou da simples vida destituída de qualquer valor, é feita através da exclusão (inclui-se excluindo). Tornou-se explicita a ausência de concretização de direitos, a partir de normas substancialmente implementadas. Na realidade, o que se percebe na sociedade brasileira é que, apesar da existência de um ordenamento normativo tido como avançado (por exemplo, a Constituição de 1988) existe na realidade uma normatização simbólica, que visa dar apenas uma sensação de segurança em relação às intempéries sociais – e com o reajustamento neoliberal, nem isso –, mas que na realidade fica somente “no papel”. Torna-se necessário para a Casa Grande que a universalização de direitos sociais, inclusive da vida plena de sentido, fique apenas “no papel”, mas é incompatível com a lógica histórica constitutiva da ordem burguesa baseada na superexploração da força de trabalho. Portanto, o Homo sacer e a vida nua não caracterizam no Brasil um simples “Estado de exceção”, mas o Estado “normal”, o Estado capitalista de extração colonial-escravista, fardo histórico originário que constituiu a própria idéia de Brasil. Aquilo que Capistrano de Abreu disse ser o povo brasileiro, “capado e recapado, sangrado e ressangrado”, é herdeiro da multidão de escravos, verdadeiro Holocausto brasileiro, que após a Lei Aurea, foi condenado à morte pelo desamparo na ordem do mercado – tal como hoje.

O Golpe de 2016 foi perpetrado para reforçar o edifício simbólico da “vida nua” e do Homo sacer brasileiro, deixando claro que o Poder Judiciário brasileiro representa o próprio modo de operação da moralidade do Homo sacer, pois legitima em si e para si, a distinção entre os cidadãos e os Homo sacer, tornando certas vidas matáveis. Na verdade, não se trata apenas de modelo jurídico-institucional, mas de um modelo biopolítico de Poder oligárquico que o Poder Judiciário executa por meio da lei. Enfim, perante a Lei, somos tratados como cidadãos, sujeitos legais, enquanto, no plano do “obsceno supereu complementar dessa lei incondicional vazia” (Žižek), somos tratados como Homo sacer.

Notas

* Elaboramos uma paráfrase do interessante texto de Slavoj Žižek intitulado “Paixões do Real, paixões do semblante”, publicado no livro Bem-vindo ao deserto do real, publicado no Brasil em 2003 pela Boitempo editorial (edição original de 2002). Por paráfrase entendemos a interpretação de um texto através das próprias palavras utilizadas pelo autor. Entretanto fizemos uma adaptação criativa do pensamento original de Slavoj Žižek à problemática tratada por nós: a miséria política brasileira e o significado do Golpe de 2016.

1 Discutimos a “pulsão golpista” da miséria política brasileira no artigo publicado no livro A resistência ao golpe de 2016, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Marcio Tenenbaum e Wilson Ramos Filho (Projeto editorial Praxis/Instituto Declatra, 2016).
2 Fazemos referência ao processo do golpe como uma ópera no artigo “A Ópera do Atraso: um apelo à Razão histórica”, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo Dornelles (Projeto editorial Praxis/Instituto Declatra/Instituto Joaquin Herrera Flores, 2017).
3 Na linguagem lacaniana, o semblante como categoria é o antônimo, o oposto do Real (com letra maiúscula, pois não se trata daquilo que é da ordem da realidade, mas sim, daquilo que é da ordem subjetiva, isto é, da forma de perceber).
4 Ensaio não-publicado de Eric Santner de 2001: “Miracles do Happen: Benjamin, Rosensweig, and the Limits of Enlighttenment” (Žižek, 2013).

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Nota de Combate: os negritos no texto são deste blog.

Imagem: internet.

 

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