Por Rodivaldo Ribeiro, no RDNews
Localizado em uma área de terra ainda fértil e visual acachapante, a cerca de 32 quilômetros do centro do município de Chapada dos Guimarães (distante 60 quilômetros de Cuiabá), à beira da MT-251, mas com acesso por uma estrada de chão de 16 quilômetros, há um antigo quilombo hoje dividido entre dois rios e comunidades.
Lá, há pelo menos 104 anos nasceu a parteira, benzedeira e patrimônio vivo da cidade, dona Francisca, a Vó Francisca, e, claro, não só ela. Ainda agora — espremidas entre fazendas e grandes lavouras de soja, milho safrinha e algodão, acossadas pelos efeitos dos agrotóxicos da monocultura nas nascentes de água e nas pequenas roças — vivem 50 famílias dos descendentes de antigos escravos.
Divididas nas comunidades nomeadas como Lagoinha de Baixo (a maior, com 35 famílias) e Lagoinha de Cima (com 15 famílias, quase todas parentes umas das outras), algo em torno de 250 pessoas, entre crianças, jovens, adultos e idosos, seguem a mesma vida de seus tataravós.
Não é incomum, entretanto, ver alguns deles empunhando celulares que parecem pré-históricos aos jovens dos grandes aglomerados urbanos próximos.
Também há uns poucos carros em bom estado e motocicletas de baixa potência. Em maioria, as conhecidas Honda CG 125 ou 150 cilindradas.
A equipe de reportagem primeiro deixa o asfalto ainda novo que conduz ao mirante e, após alguns quilômetros, entra numa estrada no meio de uma das muitas lavouras que veríamos dali em diante. Conforme descemos, já em dúvida se estávamos no rumo certo, começam a aparecer pessoas em sentido contrário. Todas tem a pele bem escura e sorrisos largos. Perguntamos se conhecem Lagoinha de Baixo. “É só continuar descendo”, é o que respondem. Obedecemos e, quantos mais metros seguimos, mais as lavouras vão dando lugar a uma vegetação de cerrado cada vez mais alta, até chegar a um ponto em que o que sobra é uma picada estreita totalmente sombreada por árvores em uma quantidade que não é possível supor, mesmo, após quatro quilômetros abaixo do início das grandes plantações.
Chegamos enfim a uma ponte de madeira sobre um córrego típico da Chapada: no meio da mata fechada, de água fresca e aparentemente límpida. Avistamos também as primeiras casas de habitação popular rural padronizadas que famílias quilombolas começaram a receber do governo federal com preços mais baixos desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto Presidencial 4.887, em 2003 (que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos).
A competência para lidar com essas demarcações é do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Como acontece em praticamente todos as comunidades quilombolas espalhadas pelo país, há vários questionamentos judiciais relacionados aos 2.514 hectares de terra fértil, nascentes de água e paisagens naturais deslumbrantes das duas Lagoinhas. A maioria envolve fazendeiros e os pequenos trabalhadores ou produtores rurais.
Tensões em torno da posse daquelas terras foram num crescendo até chegar o dia em que seu Euzito Reis de Castro foi surpreendido (ao voltar para casa ao entardecer, ao final de mais um dia duro de lida com a terra, cercas, currais e animais como gado e cavalo, como fez na maior parte de seus 56 anos) pelo reflexo das luzes de um giroflex ligado à soleira de sua pequena propriedade.
À porta da viatura da Polícia Militar, dois soldados perguntaram pelo seu nome. Confirmada a identidade, pediram para que ele os acompanhasse, pois havia algo a ser esclarecido ali.
“Disse muito calmamente: ‘vamos, vamos sim até a delegacia’”, disse o filho de seu Tonhão e dona Helena, cujos pais também ali nasceram, cresceram, se conheceram, casaram-se e tiveram seus próprios filhos desde os fins do século 18, de acordo com a portaria publicada no Diário Oficial da União, no dia 10 de setembro de 2008, a reconhecer e declarar o território de Lagoinha de Baixo como área remanescente de quilombo.
Na ocasião, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) e a ata nº 28/2007, da reunião do Comitê de Decisão Regional do Incra, identificou as 35 famílias como quilombolas. “Mas tá todo mundo muito espalhado”, diz seu Euzito. O mesmo documento, o RTID produzido pela equipe do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra mato-grossense, aponta que os quilombolas descendem de escravos e ex-escravos que trabalharam em fazendas dali desde fins do século 18 e que, portanto, ocupam a região, de forma ininterrupta, há pelo menos 200 anos.
Depois da Abolição, aqueles descendentes de escravos continuaram a interagir com os antigos donos, permanecendo nas fazendas sem, porém, na maior parte das vezes, terem se tornado mão-de-obra assalariada.
Já na delegacia, em Chapada dos Guimarães, seu Euzito, pai de cinco filhos, avô de 18 e bisavô de seis, todos nascidos ali, era inquirido quanto a documentos de posse do pedaço de chão conhecido por ele também desde o nascimento.
Lembrou-se que seus pais haviam comentado, na infância, algo nesse sentido (a necessidade de documento de posse), mas nunca a fundo. Às autoridades e ao que se declarava dono, identificado por ele apenas como José Barbosa, explicou, entretanto, não saber ou ter ouvido falar sobre o tal contrato de comodato suposta e anteriormente celebrado entre o pai dele, seu Antonio, e o fazendeiro e que agora era cobrado pelo último.
Como não houve acordo, o caso foi para a justiça e a tensão passou a morar por ali até o decreto presidencial. “Mas não temos, por exemplo, nem área pra plantar uma roça maior. Só temos plantada uma mandioca aqui, outra ali. Até Michel nos entregar a posse definitiva, e não sei se isso vai acontecer, só tem lugar pra morar mesmo”, continua o líder.
Lembra também que a água dos córregos e nascentes próximos dali – o rio da Casca é o mais caudaloso – não pode mais ser consumida, devido ao alto teor de “veneno de agrotóxico” contido nelas e que se torna particularmente visível nos períodos de plantio e chuva, quando colunas de espuma se formam nas poças, córregos e rios.
Ninguém mais se arrisca, aliás, a tomar a água dali, só as engarrafadas por alguma das duas mineradoras que funcionam nas proximidades de Chapada.
E quem não tem dinheiro para comprar essa água, seu Euzito? “Fazer o que? Puxa pra dentro do terreno, filtra, ferve e manda pra dentro, né?”, diz, rindo da adversidade como maneira de amenizar a seriedade da situação.
Quando a conversa chega ao questionamento quanto a casos de racismo, Euzito é categórico: “hoje está estampado em todas as páginas dos jornais, mas dizem que acabou escravo. Tudo bem, deu uma amenizada, mas pra mim nunca terminou. Esta cor aqui nunca foi fácil não”, diz, rindo alto quando o repórter conta a ele, em tom de deboche e imitação, sobre a reclamação em péssimos tom e gosto dita pelo jornalista William Waack nos bastidores do Jornal da Globo durante a cobertura das eleições nos Estados Unidos e vazada pelo Twitter há alguns dias.
“Por isso eu sou chato, ando sempre com a cabeça erguida e respeito todo mundo como é, porque quero ser respeitado como sou”, diz Euzito, sem nunca parecer bravo ou revoltado e sempre a sorrir. “Mas um brasileiro disse isso, né? É coisa de preto. Não sei se algum dia essa consciência chega na cabeça de todo brasileiro não, viu? Só ver o quanto aquela menina do jornal (Maria Julia Coutinho, a garota do tempo do JN) sofreu pra chegar até ali”.
Mesmo o assunto sendo duro, o que mais se ouve são risadas em meio às anedotas quanto as coisas já ouvidas, de teor racista, por todos ali em algum momento da vida. Isso torna o clima ameno e faz o relógio correr. Chega a hora da despedida, que vem com um convite para participar da festa em memória de Zumbi dos Palmares, a ser celebrado no domingo (19) com música, dança, churrasco e alguma cachaça.
Lagoinha de Cima
Diferentemente de Lagoinha de Baixo, a comunidade de Lagoinha de Cima conta com somente 15 famílias e cerca de 75 pessoas declaradamente descendentes de quilombolas. Ainda mais cercados de lavouras que os moradores da quase homônima, estão localizados, ironicamente, em uma via de acesso muito mais confortável e próxima da MT-251 exatamente por isso.
O problema é que ninguém da equipe atentara-se para o fato e por isso seguimos o caminho de subida a partir de Lagoinha de Baixo por mais 16 quilômetros por estrada de chão, atravessando várias porteiras e mata-burros em várias fazendas, até finalmente chegar à Lagoinha de Cima.
Nos perdemos várias vezes pelas picadas, percebemos pela paisagem que rodamos metade de um círculo até decidirmos ir a uma engarrafadora de água por orientação de um dos 10 pequenos proprietários, pais de família não-quilombolas, que por ali também habitam. “Tem vários quilombolas que trabalham lá na engarrafadora, é só perguntar lá”, nos diz um deles.
O tiro é certeiro.
Chegamos enfim primeiro à casa de dona Maria Eterna Oliveira, 64 anos, viúva de um quilombola cujo filho hoje trabalha na engarrafadora durante o dia e toca um pequeno boteco à noite. “Não sou quilombola, sou índia, mas vivi a maior parte da vida aqui. Desde que casei com meu marido. Ele sim, nasceu e cresceu aqui e os pais dele, mas todos já morreram”, explica, enquanto varre o quintal, dois cachorros a acompanhá-la latindo pro carro da reportagem, dona Maria.
Ela também conta que antes havia muito mais famílias de pequenos produtores por ali, “todos tinham sua roça”, mas os grandes fazendeiros chegaram oferecendo o que para eles, muito mais pobres, pareciam oportunidades de vidas melhores na cidade.
“Eu sabia que não era. Todos que venderam, alguns da família do meu marido, ficaram bravos comigo. Só voltaram, mais calmos, depois que acabaram com o dinheiro e também não tinham mais terra. Aí tudo virou as lavouras ali, ó”, mostra o início das plantações, a pouco mais de 100 metros da terra dela.
Nos indica também onde estão as famílias quilombolas. Quase todas são parentes de dona Rosinete de Oliveira Valentim, 51 anos, a principal líder da comunidade de Cima. As casas dela, de sua mãe e de vários irmãos ficam localizadas ainda mais próximas das lavouras, menos de vinte metros de distância, contando com a rua.
Rosinete não estava, havia viajando para visitar um dos filhos. Somos recebidos pela mãe dela, dona Vanildes Francisca de Oliveira, 69 anos, viúva e mãe de cinco. Com dificuldade de fala, ela gosta mesmo é de lembrar do passado, quando o assunto é a comunidade onde nasceu, sempre viveu e criou todos os filhos.
“Quando tinha festa aqui, matavam três vacas e sete porcos. Durava uma semana tudo. As mulheres faziam linguiça, doce, bolo. Oito latão de bolo e sete de doce. Comia pra valer, vinha bastante gente e mesmo assim sobrava”, lembra dona Vanildes Francisca. É a maneira que ela encontrou pra não falar sobre a espuma do agrotóxico que volta e meia se acumula na água da chuva, em poças à frente da casa dela.
Um dos filhos, Benedito Oliveira, conta que a nascente do rio, de onde eles bombeiam água para tudo, da pequena roça de mandioca ao trato dos pequenos animais, lavagem de roupas e vasilhas, além do consumo próprio, sempre cria uma camada espessa de espuma branca quando é tempo de borrifar agrotóxicos.
“E ainda deu uma melhorada, porque pararam de usar o avião. Naquele tempo sim, era muito pior”, expõe, sem deixar de contar entretanto que as copas de árvores frutíferas ainda se queimam, assim como seus frutos.
Mesmo assim, ninguém pensa em sair dali. Outro dos filhos de dona Francisca, de 30 anos, conta que nunca conseguiu se dar muito bem nas visitas às cidades, mesmo em Chapada dos Guimarães, e que só o faz quando estritamente necessário.
“Quer ver eu ficar ruim é ir pra Cuiabá. O barulho incomoda”
“Quer ver eu ficar ruim é ir pra Cuiabá. O barulho me incomodava demais, a fumaça trancava minha garganta, o calor me deixava tonto, com dor de cabeça. Quer pedir pra eu adoecer é me levar pra Cuiabá”.
O levantamento ocupacional aponta a existência, além das 10 famílias não-quilombolas na região, alguns posseiros sem título da terra e particulares com documentos em análise pelos técnicos do Incra. Há também uma área registrada em nome do Estado de Mato Grosso.
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Área de 2.514 ha ainda é fértil e está localizada numa região de nascentes, entre dois rios. Foto: Gilberto Leite