Brasil bate palmas para o trabalho infantil se ele fizer sucesso na TV, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

Buenos Aires – É fácil reconhecer trabalho infantil ao ver crianças e adolescentes esvaziando um forno de carvoaria, separando material reciclável em um lixão ou empurrando um carrinho em uma feira livre. E quando eles se encontram em programas de auditório, telenovelas, espetáculos, desfiles de moda ou propagandas? Ou quando estão jogando futebol, defendendo a camisa de um clube?

O trabalho infantil artístico e esportivo é tema polêmico. Logo de cara, parte da população assume facilmente o discurso do ”melhor estar trabalhando do que vagabundeando na rua” – como se o destino de nossas crianças tivesse que obedecer a esse binômio. Além do mais, grande parte da sociedade tende a ver com simpatia o fato de seus filhos e filhas tornarem-se ”famosos” desde cedo, mesmo em detrimento à sua formação, ao seu crescimento, sua liberdade e sua integridade física e psicológica. Pois é uma forma dos filhos e filhas alcançarem o prestígio e o dinheiro que eles não tiveram.

A questão foi uma das muitas levantadas durante a IV Conferência sobre Erradicação Sustentável do Trabalho Infantil, realizada com o apoio da Organização Internacional do Trabalho, em Buenos Aires, entre os dias 14 e 16 de novembro. O evento reuniu governos, empregadores e trabalhadores de 193 países. O objetivo do encontro foi fortalecer o combate as violações de direitos no trabalho infantil com objetivo de eliminá-las até 2025. Isso claramente não vai acontecer nesse prazo, mas ter um norte é sempre importante.

A pedido deste blog, a jornalista e pesquisadora Fernanda Sucupira, especialista em trabalho infantil, havia levantado questões relacionadas ao debate sobre trabalho infantil e artístico:

– O glamour artístico e a valorização social da fama muitas vezes impedem que sejam percebidos os prejuízos que o trabalho infantil artístico e esportivo podem causar no desenvolvimento de crianças e adolescentes. E frequentemente resultam na condescendência das famílias, da sociedade e da justiça no Brasil. Crianças chegam a ficar dez horas gravando uma propaganda de 15 segundos, repetindo a mesma tomada, o que pode gerar estresse, ansiedade e pressão, principalmente quando cometem erros.

– Pesquisas têm apontado que o trabalho infantil artístico pode prejudicar o desenvolvimento escolar. Longas jornadas de trabalho, viagens constantes e a necessidade de memorizar muitos textos são alguns dos elementos que contribuem para a diminuição do tempo de estudo. Muitas vezes, deslumbradas por terem ”estudantes famosos”, escolas são excessivamente compreensivas e  fazem vista grossa. Esse tratamento diferenciado, com uma série de privilégios, em alguns casos, pode levar inclusive a que sofram bullying de outros colegas. Muitas dessas crianças levam uma vida agitada, com muito trabalho e tempo livre escasso, o que as afasta do convívio com familiares e amigos. E não são raras também as situações de constrangimento, humilhação e rebaixamento da autoestima da criança.

– Há ocasiões em que as crianças também participam de gravações com elencos adultos, em cenas que não são apropriadas para elas, que incluem situações de agressividade e violência. A convivência com o processo dramático, isto é, a vivência das crianças de suas personagens pode levar a danos para o desenvolvimento, já que muitas vezes elas ainda não diferenciam o que é fantasia do que é realidade.

A Constituição Brasileira define que é proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos (salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos) e qualquer tipo de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos. A Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2001, admite a participação de crianças em manifestações artísticas (o que é bem diferente de trabalho infantil artístico), ou seja, de forma muito limitada, como uma exceção. No entanto, para que essa exceção seja válida, o país deve determinar explicitamente seus casos excepcionais.

Autorizações judiciais têm sido concedidas, não raro, sem que um magistrado analise o impacto e as consequências daquilo que está julgando. Deveriam ser averiguadas as condições de trabalho para serem pensadas medidas de proteção a serem exigidas, mas nem sempre isso acontece. Mesmo a ideia de excepcionalidade das autorizações não é respeitada, atendendo a interesse de grupos de mídia e de publicidade, por exemplo.

Há uma lista de parâmetros de proteção para essas permissões excepcionais, entre eles a exigência de um laudo psicológico, uma jornada compatível com o horário escolar, matrícula, frequência e bom aproveitamento escolar, assistência médica, odontológica e psicológica e o depósito de um percentual da remuneração da criança em uma poupança para que possa retirar quando completar 18 anos. No entanto, a maior parte das autorizações judiciais no Brasil é vaga.

Este blog conversou sobre esse tema, durante a Conferência, com a juíza do Trabalho no Distrito Federal, Noemia Porto, vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra):

Por que parte da sociedade não enxerga que crianças e adolescentes em programas na TV ou no futebol estão trabalhando?

Noemia Porto – A primeira questão é a grande confusão de se imaginar que o artista e o esportista não são trabalhadores. Eles podem não estar em uma situação de emprego, mas estão em situação de trabalho. Como existe no Brasil uma certa ”glamourização” da situação do artista e do esportista, imagina-se que, naquele momento, a criança não está trabalhando. Ela está trabalhando, mas com menor proteção comparativamente a qualquer outro trabalhador.

Quais impactos negativos vocês têm acompanhado nesse tipo de trabalho?

São os mais diversos. Da evasão escolar de crianças artistas e esportistas até impactos de natureza psicológica e social. Por exemplo, crianças expostas a ambientes adultos erotizados ou que implicam em risco para a sua saúde. No Brasil, temos casos que tornaram essa causa bastante visível. Um deles, conhecido do público, era da então artista-mirim Maísa, que publicamente demonstrou seu sofrimento com a pressão. Percebeu-se que era muito menos glamour.

Outro caso que necessitou atenção foi de um coral famoso de crianças, gravado no Estado do Paraná, sempre na época de Natal. O Ministério Público do Trabalho precisou intervir porque as crianças gravaram horas a fio, cantando, sem condições mínimas, sem intervalo para lanche, sem água, com roupas quentes, com iluminação no rosto. O que o público vê e consome? A apresentação. Mas às vezes não percebe que, por trás disso, existe trabalho e, eventualmente, um trabalho no qual se sofre.

Temos exemplos também no futebol?

Temos exemplos de aliciamento de crianças, notadamente de ”talentos”, em periferias, em locais mais pobres, em que condicionam famílias a uma ”venda” desses talentos para aliciamento de clubes. Nem sempre sob os olhos da Justiça, da fiscalização do trabalho ou do Ministério Público do Trabalho.

Esse tema está em análise pelo Supremo Tribunal Federal, com o ministro Marco Aurélio Mello. O que está sendo julgado?

Esse é um processo importante no Supremo Tribunal Federal. Formalmente a discussão é se a competência jurídica para a concessão de alvarás que autorizam o trabalho infantil artístico seria da Justiça do Trabalho ou da Justiça Comum. Mas o que está sendo discutido verdadeiramente é se uma estrutura especializada seria mais condizente com a proteção integral das crianças e adolescentes como prevê a Constituição. Do nosso ponto de vista, o melhor seria reconhecer que a competência é da Justiça do Trabalho.

Foto: Sílvio Santos já foi acusado de expor a apresentadora Maísa a constrangimentos quando era criança

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