Jéssica Tavares Cerqueira, Helena Duarte Marques e Lucas Campos Zinet – Justificando
Há 50 anos, Henri Lefebvre utilizava pela primeira vez a expressão “direito à cidade”. A intenção não era a ideia de um direito real, mas de uma consigna de luta dos trabalhadores. Ao longo dos anos, o direito à cidade foi se consolidando em cartas, leis, constituições e tratados internacionais, apesar de sempre existir, desde as indagações do autor pioneiro, o debate sobre se esse direito poderia e deveria se institucionalizar.
No âmbito da legislação internacional, o direito à cidade se concretiza como parte dos direitos humanos, com destaque para a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, firmada no Fórum Social das Américas (Quito, 2004), no Fórum Mundial Urbano (Barcelona, 2004) e no V Fórum Social Mundial (Porto Alegre, 2005) e que define o direito à cidade como “um direito coletivo de todas as pessoas que moram na cidade, a seu usufruto equitativo dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social”.
No Brasil, houve dois marcos legais em relação ao direito à cidade. O primeiro é a inclusão do Capítulo da Política Urbana na Constituição de 1988 (Artigos 182 e 183), que introduziu um novo ramo no Direito Público: o Direito Urbanístico, com normas, princípios e instrumentos próprios e com um regime de competência bem definido, cujo universo é a política de desenvolvimento urbano e o vetor da justiça social. O segundo marco foi a elaboração e a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, que apresenta diversas disposições sobre o ambiente urbano.
Todavia, seria equivocado afirmar que o conteúdo e o alcance do direito à cidade sempre foram os mesmos, ou matéria apenas do campo jurídico, muito pelo contrário. Conforme os estudos e as lutas dos diversos movimentos sociais citadinos avançavam, mais aspectos da desigual vida na urbe foram sendo incorporados ao debate. Nesse sentido, hoje o debate de direito à cidade tem uma nova e importante dimensão, que é a das opressões de raça, gênero e sexualidade.
Parte desse debate envolve, em primeiro lugar, o desigual acesso à cidade que os sujeitos oprimidos experimentam no seu cotidiano. Ou seja,
a mera constatação de que as opressões não ocorrem somente no espaço privado, mas também no espaço público traz à tona a questão de como a cidade é espaço privilegiado para que as opressões se reproduzam. É nesse sentido que há grande convergência da pauta dos movimentos sociais de combate às opressões com a luta por uma cidade mais acessível e justa.
Do contrário, sem esse encontro, fica muito limitada a capacidade de analisar, por exemplo, os motivos que levam um transporte público precário a representar especial fardo às mulheres, principalmente as negras das periferias das cidades, ou ainda fica reduzido o debate sobre o que implica ser LGBT em diferentes bairros da cidade.
Há ainda um importante aspecto da relação entre movimentos sociais de combate às opressões e o direito à cidade, que é a cidade como espaço de luta desses movimentos.
Quando uma manifestação de mulheres é convocada em uma via pública, ela tem em si a capacidade de questionar e subverter o lugar tradicionalmente imposto às mulheres na cidade. Isso, por si só, independentemente daquilo que se está reivindicando ou repudiando na manifestação, é um questionamento do ordenamento da cidade. Ou seja, a própria forma de manifestação já é uma provocação à forma como a cidade é experimentada por aquele grupo social.
Apesar de a perspectiva de gênero, raça e sexualidade ter avançado muito no debate de direito à cidade e, como dito, fazer parte dos debates atuais da questão, é preciso afirmar que é necessário avançar muito ainda no estudo, na análise e na reflexão sobre o tema, inclusive porque os próprios ambientes dedicados ao estudo e à luta pelo direito à cidade ainda não estão isentos da reprodução dessas opressões.
Com essa perspectiva, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico lançou, em 2017, uma linha editorial destinada ao assunto. As publicações que levam o mote de Novos Olhares para a luta nas cidades buscam não somente interseccionar as discussões e produções sobre o tema dos direitos urbanos, mas, principalmente, possibilitar que os grupos então oprimidos sejam os protagonistas das narrativas das experiências na cidade.
Para além de um tom de relato de vivências, os textos revelam como os mais atingidos pelas desigualdades urbanas têm se organizado para subverter as lógicas de um projeto de gestão e desenvolvimento urbano excludente.
Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, explicita a ineficiência das políticas públicas, principalmente no âmbito da política urbana, quando elas são elaboradas de forma descolada de um recorte de gênero e raça. Em seu texto intitulado “Nossos corpos, nossa cor, nossa cidade: os impactos causados pelas intervenções decorrentes dos grandes projetos de urbanização no Rio de Janeiro” e produzido para o segundo volume da série, a autora explica o quanto a segregação é paradoxal, considerando questões materiais e geográficas, mas também simbólicas e culturais que operam simultaneamente.
“A conquista pela preferência à titularidade da moradia em programas de habitação popular realmente é ganho diante desse processo histórico, mas o direito à cidade nos impõe avançar no entendimento sobre o acesso à terra. Nos basta a propriedade?”
A autora enfatiza ainda a necessidade de ressignificar as relações dos cidadãos na cidade, sobretudo das mulheres faveladas, excluídas pela mercantilização das cidades:
“Trazer à tona a noção acerca do direito à cidade na perspectiva das desigualdades de gênero aponta para a valorização dos espaços públicos. É preciso diferenciar o valor de troca, que vincula a cidade à ideia de mercadoria, do valor de uso, que é o lugar da garantia da democracia, da diversidade dos modos de apropriação do espaço urbano”.
Gustavo Belisário, cientista político, antropólogo e militante, reforça a urgência da união da pauta de combate às opressões e do direito à cidade em seu texto chamado “LGBTS e o direito à moradia”, escrito para o terceiro volume do editorial. Gustavo afirma que a violência familiar não é o único entrave que dificulta o acesso à moradia por parte de LGBTs. Além da expulsão de casa, faz parte desses entraves para o acesso a uma moradia a homolesbotransfobia de locatários, inquilinos, vizinhos e de alguns movimentos de moradia também.
“São urgentes um maior investimento na insuficiente política de reforma urbana e de acesso à moradia e a integração de uma política afirmativa que garanta o acesso de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais.”
No mesmo sentido, segue o relato de Letícia Carvalho, 20, fundadora do Coletivo Faça amor, não faça chapinha, autora de “Pelo direito de sobreviver à cidade”, para o quarto volume do editorial Novos Olhares. A autora questiona as limitações impostas pelo Estado, como sujeito político, no simples ato de ocupar espaços públicos de lazer.
“Como lutar pela estética da cidade quando ainda lutamos para que nossa estética seja aceita e que não seja atrativa para a polícia? Como lutar pela construção de espaços de lazer quando sequer temos o direito de transitar pelos poucos espaços que temos? Como lutar por segurança se sofremos violência dos ditos “agentes de segurança”?”.
Em um contexto de acirramento das desigualdades urbanas no país, é preciso ter em mente também que há uma efervescência de resistências, organizadas principalmente nos coletivos. Grupos culturais de juventude, e principalmente periféricos, têm se mobilizado para formar opinião pública e lutar pelos seus direitos, e nesse sentido têm mostrado alternativas aos tradicionais espaços de participação social, ou de democracia participativa.
A maré de resistência desses gruposé ainda impulsionada pelo avanço da ideologia da “cidade-négocio” – em São Paulo, encabeçada pelo prefeito, João Dória, que, inclusive, utiliza-se nas suas redes sociais da hashtag #cidadedomundo, sem ao menos garantir que a cidade seja de seus munícipes. Nesse sentido, a juventude e os movimentos sociais têm passado um importante recado para a gestão pública, que se mostra bastante insensível às demandas sociais apresentadas no que diz respeito aos direitos urbanos, inclusive operando na contramão de direitos historicamente reivindicados.
Para o direito à cidade, para a vida plena dos cidadãos, a resposta vem das ruas.
Jéssica Tavares Cerqueira é bacharela em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC e assessora de coordenação do IBDU.
Helena Duarte Marques é mestranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da USP e assessora jurídica do IBDU.
Lucas Campos Zinet é formado pela Faculdade de Direito de São Bernado do Campo e pesquisador do IBDU.
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Militares ocupam áreas economicamente vulneráveis no Rio de Janeiro. Foto: Leo Correa / AFP