#TrabalhoEscravoNão: crime e impunidade persistem no Rio de Janeiro e Espírito Santo

Treze ações contra escravidão tramitam na 1ª instância no RJ e outras 7 em Varas capixabas

Procuradoria-Geral da República

Cena 1: após a doença grave de um trabalhador, os filhos de 10 e 6 anos foram forçados a trabalhar num sítio em Sapucaia (RJ) para a família continuar numa casa do terreno. Trabalhavam das 5h às 12h, com pausa para a escola e volta ao trabalho às 17h. Nos fins de semana, o trabalho não tinha intervalo. As crianças eram agredidas com cordas e vara de ferrão e trabalhavam sob sol ou chuva. Para o MPF, “a autoria dos delitos ficou demonstrada pela análise conjunta da denúncia ao Disque 100, relatório social, depoimentos de duas testemunhas e, principalmente, declarações das vítimas”.

Cena 2: numa pastelaria em Icaraí, bairro nobre de Niterói (RJ), um casal chinês com bebê recém-nascido e um conterrâneo solteiro dormiam em cubículos num alojamento sem janelas e pé-direito entre 1,26m e 1,72m mantido pelo empregador. Funcionários do estabelecimento, usavam banheiro sem janela nem lavatório e com comunicação direta ao local de trabalho e ao destinado às refeições. “No alojamento não havia armários individuais, além de ter sido constatado desrespeito às condições mínimas de higiene para pernoite no local e para a alimentação. Os trabalhadores sempre se alimentavam no alojamento, sem higiene adequada”, frisou o MPF/Niterói em denúncia de 2017.

Cena 3: numa fazenda de café em Brejetuba (ES), a 170 km de Vitória, 12 empregados satisfaziam as necessidades fisiológicas e se alimentavam no meio da plantação, sem higiene, privacidade, água potável e alojamento em mínima condição de uso. Nos dois cômodos onde dormiam, guardavam-se agrotóxicos e ferramentas, havendo frestas de madeira para ventilação, em vez de janelas. “A dona da fazenda conhecia a realidade dos trabalhadores, se beneficiava da exploração do trabalho humano e atuou perante a fiscalização”, disse o MPF/ES na denúncia, com fotos que demonstram instalações elétricas adaptadas, a ventilação mínima de frestas de madeira e as camas improvisadas.

Aos quase 130 anos desde a Lei Áurea, o trabalho escravo segue na pauta do país e, assim, do MPF. Nas fazendas e na pastelaria, equipes de fiscalização viram muito em comum. A maior semelhança é que os empregadores cometeram redução a condição análoga à de escravo, crime de repressão reforçada a cada 28 de janeiro, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Levantamentos feitos pelo MPF em escala nacional e estadual atestam a persistência, em todos os estados, do crime e da impunidade, evidente na tramitação de alguns casos há mais de 10 anos sem ter sentença definitiva.

Atualmente, há 13 ações em andamento contra casos de escravidão no Estado do Rio. Os processos tramitam nas Varas Federais de Campos dos Goytacazes (4), Rio de Janeiro e Teresópolis (três), Macaé, Três Rios e Niterói (uma). No Espírito Santo, sete ações correm em Vitória, Colatina e São Mateus (duas) e Linhares (uma). São julgados processos da cidade-sede e dos municípios vizinhos.

MPF em todo o país em 2017: 72 denúncias recebidas pela Justiça

Em todo o país, a Justiça recebeu 72 ações penais movidas pelo MPF em 2017 pelo crime do art. 149 do Código Penal. Segundo balanço nacional, os estados com maior concentração de denúncias foram Tocantins (13), Minas Gerais (12), Bahia (7) e Maranhão (6). Também em 2017, nada menos que 265 inquéritos policiais foram iniciados e 283 procedimentos extrajudiciais, autuados.

“O MPF tem assumido seu papel como protagonista nesse tema”, avalia a procuradora da República Ana Carolina Roman, da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). “Somos nós que temos que propor a ação penal. E era uma demanda da sociedade civil.” Iniciativas recentes são apontadas por ela como decisivas à expansão do MPF na causa, como a participação de membros do MP em operações de resgate, a realização de cursos sobre o assunto e a inclusão do tema no Curso de Ingresso e Vitaliciamento dos novos procuradores.

OUTROS EXEMPLOS (RJ)

Pastelaria em Copacabana – Três chineses cumpriam jornadas extenuantes na cozinha de uma pastelaria em Copacabana. Toda noite, voltavam ao pequeno quarto mal ventilado do apartamento do patrão, que os monitorava por câmeras e vedava seu acesso à sala. Não tinham carteira de trabalho, o salário era retido e os passaportes tinham vistos de turismo já expirados. O patrão foi acusado a partir de fiscalização em 2015, que viu tratamento distinto a funcionários brasileiros, seguindo lei trabalhista, e chineses, aproveitando sua vulnerabilidade e situação migratória irregular.
A denúncia foi recebida 15 meses após a fiscalização. Desde então, a defesa tem buscado tumultuar o andamento do processo criando supostas nulidades inexistentes, de acordo com parecer do MPF. O TRF2 recentemente deu razão ao MPF ao refutar a arguição da violação da incomunicabilidade entre fiscal e padre ouvidos em juízo como testemunhas de acusação. (0509055-21.2015.4.02.5101)

Haras em Vargem Grande – A dona de um haras em Vargem Grande, no Rio, foi acusada de manter empregado em más condições e sem registro na carteira de trabalho. A vítima vivia em local de 6 metros quadrados e condições precárias, sem banheiro interno ou ventilação. As investigações constataram que a situação durou 14 anos, até a assinatura de um termo de ajustamento de conduta com o MPF. (JF-RJ-0507189-41.2016.4.02.5101)

Obra de shopping – Fiscais viram, na obra de shopping na zona oeste carioca, oito trabalhadores de outros estados sem residência no Rio. Dois dos três alojamentos eram precários e insalubres, sem condições de habitabilidade. Segundo fiscais, o ambiente tinha odor desagradável e má ventilação, sem cama para todos, colchões e instalações elétricas improvisados e sem água nos banheiros, o que impedia a higiene pessoal ou limpeza do lugar de moradia. (JF-RJ-0021730-10.2014.4.02.5101)

Canavial em Campos – Dois homens foram denunciados por manter 32 trabalhadores rurais em condições de escravidão em lavoura de cana. Um deles ainda é réu por ter tido contato com o grupo e não lhes dar condições dignas, como acesso a água potável, alimento, refeitório, banheiro, óculos protetivos, luvas e outros equipamentos de proteção. (JFRJ/CAM-0001995-82.2014.4.02.5103)

OUTROS EXEMPLOS (ES)

Grupo sucrooalcooleiro – 1.551 trabalhadores do grupo Infinity Bio-Energy, de falência decretada, foram submetidos a trabalho escravo em Pedro Canário e Conceição da Barra. O fato foi descoberto em inspeções por um programa contra irregularidades trabalhistas nesse setor no Estado. Cortadores de cana tinham jornada exaustiva, em condições degradantes, obtendo menos de um salário mínimo (0000233-11.2012.4.02.5003).

Fazenda em Alegre – Sete trabalhadores passaram anos – alguns, mais de 20 anos – cuidando do gado, lavouras de café, feijão e milho e da sede da propriedade sem receber salário. Quem esteve na operação de resgate dos empregados se chocou com as más condições dos alojamentos, comparados a jaulas de zoológico – consideradas mais dignas pelos participantes. (0500473-67.2017.4.02.5002)

Fazenda em Santa Teresa – Foram resgatados nove trabalhadores, incluindo uma mulher, em fazenda na zona rural de Santa Teresa. O empregador não fornecia alimentos aos funcionários, que trabalhavam em condições precárias, a céu aberto e sem equipamentos de proteção. No alojamento, havia aracnídeos, cobras e escorpiões, mas faltava sistema de captação de água e sanitários. (Ação nº 0005545-03.2014.4.02.5001)

Fazenda de café em Sooretama – Cafeicultor foi acusado de submeter 86 trabalhadores, incluindo uma jovem de 17 anos, a condições análogas à escravidão. Faltava ventilação e instalações elétricas no alojamento, com botijões e fogareiros nos quartos e esgoto exposto. Os empregados não tinham carteira de trabalho assinada, ficando fora do regime previdenciário. A maioria foi trazida da Bahia em dois ônibus clandestinos e uma van e fazia jornadas de 5h às 17h. (0000042-55.2015.4.02.5004)

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