A quem serve a intervenção militar?

Por Leonardo Isaac Yarochewsky, no Justificando

“Isso não resolve o nosso problema. Não é o que a comunidade e a sociedade querem. Queremos o respeito de ir e vir. O Exército na rua não vai adiantar nada. Só vai aumentar a violência. As crianças vão pensar que estão morando no Vietnã. O governo falou que ia botar o social, o emprego, a cultura e o esporte, mas só botou polícia dentro da comunidade. É só tiro, porrada e bomba”.[1] (Marquinho Balão)

O atual ocupante do Palácio do Planalto Michel Temer assinou, nesta sexta-feira (16), o decreto de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro. A medida prevê que as Forças Armadas assumam a responsabilidade do comando das polícias Civil e Militar no estado do Rio, a princípio, até o dia 31 de dezembro de 2018 (art. 1º do Decreto). A decisão ainda terá que ser aprovada pelo Congresso Nacional.

O interventor federal será o general Walter Souza Braga Netto, comandante do Leste. Além de interventor federal, ele vai assumir o comando da Secretaria de Administração Penitenciária e do Corpo de Bombeiros.

Michel Temer que, paradoxalmente, enfrentou duas denúncias: por corrupção e organização criminosa – ambas barradas pela Câmara dos Deputados – afirmou que o momento pede uma medida “extrema“. Ele ressaltou que o governo dará as respostas “firmes” para derrotar o crime organizado.

Tomo esta medida extrema porque as circunstâncias assim exigem. O governo dará respostas duras, firmes, e adotará todas as providências necessárias para enfrentar e derrotar o crime organizado e as quadrilhas“, disse Temer.

A decisão de decretar a intervenção na segurança pública do Rio foi tomada por Temer após reunião de emergência na noite de quinta-feira (15), no Palácio da Alvorada. O governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, que passou o carnaval fora da cidade do Rio, concordou com a medida.

Segundo o decreto, ações que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública, permanecerão sob a responsabilidade do governador Pezão.

Já o interventor federal ficará subordinado ao presidente da República e poderá “requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção“.

O objetivo da intervenção, de acordo com o decreto, “é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro (art. 1º, § 2º)

Para o sociólogo e presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, “a intervenção é uma medida que vai deslocar a atenção por completo da pauta muito ruim da área que já era tocada por este governo. Um exemplo é o Plano Nacional de Segurança Pública, criado há um ano e que não obteve nenhum efeito prático. É um jogo profissional de xadrez habilidoso para atenuar um problema que não será resolvido agora e vai cair em cheio no colo do próximo presidente”.[2]

Conforme já dito alhures, a opção do Estado pela intervenção militar colocando o Exército nas ruas do Rio de Janeiro ou em qualquer outra cidade, para “golpear o crime organizado” é, na verdade, uma demonstração inequívoca da prevalência do estado penal sobre o estado social.

Desgraçadamente, quando o Estado faz a opção pelo uso da força, os vulneráveis, pobres, negros e favelados – os mesmos que integram a grande maioria da população carcerária – são os principais alvos da repressão para atender os desejos, conscientes e inconscientes, dos endinheirados e da classe média conservadora e preconceituosa.

Diante dessa situação é imperioso que se reduza drasticamente a desigualdade social e os déficits de cidadania.

Neste diapasão, Vera Regina Pereira de Andrade, pesquisadora e professora Titular da UFSC, propõe a necessidade da reconstrução do conceito de cidadania para além do liberalismo. Segundo a professora,

faz-se necessário pensar a cidadania de indivíduos histórica e socialmente situados. E situados em categorias, classes, grupos, movimentos sociais, e não de indivíduos atomizados, com autonomia referida a si, como no liberalismo, pois é desse locus que se engendram as identidades, as diferenças e o s conflitos e se criam as condições para a emergência do(s) sentido(s) das cidadania. Em uma palavra, é fundamental a percepção do pluralismo na base da cidadania, pois suas formas de expressão são múltiplas e heterogêneas.[3]

Assim, somente quando todas e todos, independente de cor, sexo, orientação sexual, religião, condição social etc. forem considerados efetivamente cidadãos e deixarem de ser tratados com “amigos” ou “inimigos”, será dado um passo importante para redução das desigualdades e, consequentemente, para diminuição da violência.

Marcio Sotelo Fellipe,[4] ex-Procurador-Geral do Estado de São Paulo, referindo-se ao capítulo 2 do livro “A Casa da Vovó”, do jornalista Marcelo Godoy, a chamada “inversão de Clausewitz” – teórico militar prussiano que dizia que a guerra é a contaminação da política por outros meios. A doutrina que Godoy investiga, exposta no livro, consiste na inversão do conceito de Clausewitz.

No conceito de Clausewitz, explica Sotelo Fellipe, “a política dá racionalidade instrumental à guerra. Ela limita a determinados objetivos. Quando a lógica é invertida, a guerra é absoluta e a política seu apêndice, secundária e subordinada aos interesses de uma guerra ilimitada”.

A inversão do conceito de Clausewitz, afirma Sotelo Fellipe, presidiu a lógica de uma nova guerra, “a guerra do Estado contra seus próprios cidadãos”. O inimigo não é mais outro Estado, mas membros da própria sociedade.

Na guerra em que o Estado resolve tratar seu povo como inimigo, todos sairão perdendo, e a democracia será a principal derrotada.

Por tudo, é preciso martelar que a melhor política-criminal é justamente aquela da substituição do Estado penal pelo Estado do Bem-estar social, pois somente através de uma política social adequada, que favoreça a erradicação da pobreza, que torne a educação realmente um direito de todos, que não permita ser a saúde um privilégio de poucos, não propiciando que crianças morram de fome. E, por fim, que o homem seja respeitado por aquilo que é, e não por aquilo que tem, somente assim, torna-se verdadeiramente possível alcançar-se o patamar do tão proclamado Estado democrático de direito.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG).

[1]  http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/08/rj-lideres-comunitarios-dizem-que-exercito-na-rua-nao-resolve-problema-da-violencia

[2] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/intervencao-no-rio-e-jogo-de-xadrez-de-temer-afirma-especialista.shtml

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegra: Livraria do Advogado, 2016.

[4] FELIPPE, Marcio Sotelo. “O homem que amava as crianças: Estado, Política e Repressão”. InBrasil em fúria: democracia, política e direito. Giane Ambrósio Alvares et al. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.

Foto: Alan Marques /Folhapress

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