Jacqueline Muniz: “Desde FHC, presidentes usam Forças Armadas como gambiarra”

por Beatriz Drague Ramos, Carta Capital

O uso das Forças Armadas em operações de segurança pública está longe de ser uma novidade. A intervenção federal no Rio de Janeiro e a adoção de ações recentes de Garantia da Lei e da Ordem em estados como Pernambuco, Rio Grande do Norte e Espírito Santo são parte de uma antiga estratégia que se repete desde os anos 1990. Apesar do uso frequente das forças, essas operações não geraram resultados substantivos, até por seu caráter de improvisação. Desde Fernando Henrique Cardoso, os presidentes têm usado os militares como uma espécie de gambiarra.

A análise é da pesquisadora Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo ela, há ausência de relatórios que demonstrem a “eficácia, eficiência e efetividade” das ações já realizadas. Na entrevista a seguir, a pesquisadora questiona a capacidade das Forças Armadas de investigar a polícia local e reflete sobre o risco de militares serem cooptados pela corrupção. “Os soldados, além de não serem capacitados para a ação cotidiana e individualizada de polícia, são jovens sem experiência de rua.”

CartaCapital: Em recente entrevista à GloboNews, a senhora disse que sua expectativa não é otimista para a intervenção federal no Rio. Qual é o motivo principal?
Jacqueline Muniz: Simplesmente é uma crônica de uma história anunciada. No caso doRio de Janeiro, o emprego das Forças Armadas com o propósito de policiamento em operações tem ocorrido frequentemente desde 1992. Foram níveis de intervenção diferentes, não foi propriamente uma intervenção federal em que as Forças Armadas assumiram o comando. No entanto, elas atuaram em quase todos os grandes eventos do estado e em momentos entendidos como de crise, sem que isso tivesse gerado um resultado substantivo no crime organizado. Serviu como uma espécie de abafa provisório.

Isso produziu dispersão de mancha criminal sem resolver a causalidade que originaram os crimes cotidianos. O que se tem na verdade é um efeito ostensivo e um gasto grande para um baixo rendimento em resultados de controle do crime. Seja o crime cotidiano, seja a chamada dinâmica criminal organizada em rede.

CC: Há estados em situação mais crítica em relação à taxa de homicídios, como por exemplo o Pernambuco e Ceará. O caso do Rio é mais urgente?
JQ: Curiosamente estão atuando onde o crime é mais desorganizado, porque no Rio de Janeiro não há uma unidade de comando. Quem tem unidade de comando é o PCC, que aliás por funcionar como empresa verticalizada e não como franquias ocupacionais está se expandindo por todo o território nacional, e de maneira diferenciada. Não tem nada de “metástase”, essa é uma péssima imagem, ela pode ser moral, apelativa, mas revela ignorância criminológica e de informação. Essa cartada política é de alto risco, o prazo de validade dela não será tão grande quanto se pensa

CC: Os militares já atuam no Rio, nas chamadas operaçnoes de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Qual a avaliação que a senhora faz dessas operações?
JQ: O uso das Forças Armadas e das ações de GLO foram banalizados. Isso significa que nós não temos uma política de defesa e uma política nacional de segurança pública substantiva. No caso da Maré, por exemplo, gastou-se cerca de 350 milhões durante um ano (segundo dados atualizados obtidos pela Lei de Acesso a Informação, até junho de 2017 haviam sido gastos 441 milhões de reais na operação), o que se produziu foram desgastes e riscos. Por exemplo, nos primeiros dias da Rocinha se apreendeu muito pouco de armamento e em munição, não se sabia o que se faria lá, não haviam relatórios de inteligência prévia, não se tinham diagnósticos substantivos.

É uma falácia achar que nós temos um sistema integrado de segurança, nós não temos protocolos de ação conjunta, eles não estão escritos e publicizados. Nós já fizemos um conjunto de operações no estado, e não se prestou contas de quanto gastou. Quais são os critérios de eficiência, eficácia, e efetividade?

Por que será que as Forças Armadas demandaram um decreto que as blindam dos erros em suas ações, migrando a responsabilidade desses equívocos para a Justiça Militar? Elas tem plena clareza de que seus integrantes não são treinados para tomarem decisões individuais, eles são capacitados para tomada de decisão em grupos táticos, então o efeito será decorativo.

CC: Muitos especialistas afirmam que essa não é a forma ideal de combater o crime organizado. O que a literatura e prática nos dizem sobre isso? O que funciona de verdade?
JQ: É preciso desenhar protocolos de interagências, submetê-los à aprovação da sociedade, do contrário essa intervenção não servirá para nada. Como a corrupção na polícia será investigada? Quem faz isso são setores de investigação exteriores a polícia, não serão as Forças Armadas. Para desenhar ações repressivas de qualidade, tem de ser discreto, usar a informação. Com menos se faz mais e melhor.

CC: Quais as possíveis consequências das Forças Armadas assumirem o comando da segurança pública no Rio?
JQ: De Fernando Henrique Cardoso para cá, todos os presidentes fizeram uso das Forças Armadas como uma espécie de gambiarra, como placebo. O emprego continuado destas no policiamento fazem com que essas forças percam a sua capacidade combatente por um lado, e não adquiram a capacidade policial por outra, ficando no meio do caminho. Além disso, elas passam a experimentar o risco da violência, de violações e da cooptação pelo crime e da corrupção, porque os seus soldados além de não serem capacitados para a ação cotidiana e individualizada de polícia, são jovens sem experiência de rua.

No Brasil, nós não desenhamos mecanismos de governabilidade das polícias para se fazer o que está na Constituição. Desde a redemocratização, não mexemos no poder de polícia, ele segue desregulado, num limbo procedimental, legal e normativo. A Constituição não define mandato de polícia, ela define monopólios no exercício do policiamento, numa espécie de reprodução “caduca” dos lobbies que foram feitos em 1988. Se tem um lugar que a Constituição Federal é fraca é no que diz respeito a segurança pública. Essa informalidade faz com que a polícia tenha vários patrões.

Polícia Civil está sendo desmantelada por dentro, ajudei a implantar a sua principal base de dados integrada em 1999, com um software de análise criminal. Curiosamente isso está sendo desmontado, para que a informação seja pessoal, vendida e negociada, pois é uma mercadoria poderosa. O policial civil e militar é leiloado na esquina, tão inseguro quanto a população está o policial.

CC: Como as facções criminosas tendem a se comportar após a intervenção?
JQ: Da mesma maneira que aconteceram das outras vezes. Como a dinâmica criminal do Rio é de franquias ocupacionais elas passam pelas brechas, é por isso que toda dinâmica criminal não decreta independência das comunidades onde atuam, porque é mais fácil corromper. A economia criminosa atua como qualquer economia, ela compra e paga seus capangas que estão dentro do Estado.

Ademais, tende-se a valorizar certas mercadorias criminosas, como a informação. Esse é o risco que correm os jovens combatentes que ficarão amedrontados, em um ambiente acidentalizado como são as comunidades populares, onde não se tem 360 graus de visão e controle sobre o terreno. As desvantagens táticas culminaram no desesperado pedido de uso de mandados coletivos de busca e apreensão. Instrumento de violação de garantias individuais dos cidadãos moradores das comunidades.

CC: O Exército e as outras forças têm condições de cuidar da segurança pública?
JQ: As Forças Armadas não dispõem das capacidades logísticas e táticas para poder atender as necessidades cotidianas de policiamento no ambiente urbano. Todas as suas ações são adequadas para conflito de larga escala, para a guerra, seus instrumentos amedrontam a população, essa é sua razão. As Forças Armadas tem um papel na segurança pública hoje na Constituição, elas não tem apenas o papel GLO, fazem o controle aéreo, marítimo e territorial de fronteiras. O problema é o seu mal uso para interesses políticos partidários e eleitorais, que não fica claro para a população.

Imagem: “Estão atuando onde o crime é mais desorganizado, pois no Rio não há uma unidade de comando” – Reprodução Facebook/Jacqueline Muniz

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