UPPs, mais uma história de esperança e fracasso na segurança pública do Rio

Prestes a completar 10 anos, programa apresenta resultados opostos ao que foi previsto

Felipe Betim – El País

Na madrugada do dia 24 de fevereiro, moradores da favela Santa Marta e do resto do bairro de Botafogo foram acordados com intensos tiroteios entre policiais e traficantes no morro. Esta comunidade da nobre Zona Sul do Rio de Janeiro foi a primeira a receber uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) há quase 10 anos, em novembro de 2008. O programa, que — em tese — consiste em ocupar determinando território dominado por facções criminosas, estabelecer um policiamento comunitário, que seja próximo ao cidadão, e abrir caminho para serviços públicos do Estado teve no Santa Marta sua principal vitrine. Hoje, após a instalação de 38 UPPs, o modelo que representou nos últimos anos a esperança de um Rio mais seguro se mostra esgotado, após colecionar uma série de fracassos e escândalos nos últimos anos. Algo que também já se reflete no Santa Marta, que chegou a ficar mais de seis anos sem tiroteios. A velha rotina está de volta. Em meio a uma intervenção federal decreta pelo Governo de Michel Temer, que colocou um general no comando da segurança pública fluminense, qual será o destino das UPPs? Os confrontos nas favelas, incluindo a Santa Marta, se intensificarão? Não há respostas concretas.

Apesar das incertezas, a paz parece reinar absoluta na Santa Marta em uma tarde chuvosa de quinta-feira. Crianças com uniformes da escola pública entram e saem, assim como trabalhadores e trabalhadoras, mães e pais, comerciantes e mecânicos. Nos becos e vielas, silêncio. Ao redor, algumas das recentes conquistas dessa favela modelo são evidentes: há uma clínica da família, uma Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), um plano inclinado que leva moradores e turistas para o alto do morro, casas novas que substituíram velhos barracos de madeira… O esgoto, que em favelas do Rio geralmente corre a céu aberto, está de baixo do chão. “Fizeram obras de urbanização e 85% das casas estão ligadas à rede de esgoto. Como presidente, cobrei que não viesse só a secretaria de segurança. E aqui funcionou, entraram outras secretarias, como a de turismo e educação”, conta José Mário Hilário dos Santos, presidente da associação de moradores. “O que aconteceu no Santa Marta não aconteceu em outras comunidades. Se tivesse acontecido simultaneamente, acredito que o quadro seria diferente”.

Essa aparente calma esconde certa tensão que é possível constatar ao conversar com moradores. Perguntados sobre a UPP instalada no local, a maioria desvia o olhar e diz preferir não falar sobre o assunto. Outros dizem que estão com pressa. Uma mulher chega a dizer: “Meu filho, eu moro no morro. Não posso me expor”. Alexandre, que nasceu e foi criado no Santa Marta, finalmente decide falar. “Para mim continua a mesma coisa: tem a polícia, tem o bandido que nunca saiu da aqui. Mas a parte de governo melhorou sim: a escadaria, as casas, a frequência dos comércios… Tudo isso melhorou”, explica o homem de 46 anos “Morava em uma casa de madeira e ganhei uma de alvenaria com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Então essa parte pra mim foi boa”. De repente, quando pombos encostam em um fio elétrico em meio a chuva que começa a aumentar, escuta-se um barulho.”Olha aí, acabou a luz de novo. Isso daí foi uma das melhorias que não chegou. Pode anotar”, diz ele, rindo.

Elana Paulino, que prefere não falar sobre o tema dentro da comunidade, conta que “durante a ocupação”, muitos projetos apareceram. “Eu mesma fui monitora num projeto muito bom, o Rio Estado digital. Trabalhava de carteira assinada e tinha uma ótima internet! Tivemos projeto de turismo, de música…”, conta ela. A qualidade de vida do morador, diz ela, ficou “muito boa”, as casas “se valorizaram”, pessoas de fora quiseram morar na comunidade e Botafogo “se tornou um bairro seguro”. “Depois mudou o governo e os projetos foram acabando, a polícia voltou a ser aquela invasiva que havia quando ainda não era pacificado…  Agora temos constantes conflitos e ficamos entre essa guerra, pois moro no morro por falta de opção”, explica.

José Mário, presidente da Associação de Moradores, explica que uma pesquisa feita no início da UPP mostrou que o programa tinha quase 90% de aprovação dos moradores. Era o tempo da major Pricilla de Oliveira Azevedo, que se tornou o principal rosto de um policiamento próximo ao cidadão e engajado na comunidade. Recebeu vários prêmios por seu trabalho na Santa Marta. “Foram seis anos e cinco meses sem tiroteios. Mas o tráfico nunca acaba. Ele diminui o ritmo e o material bélico. Fica o comércio de drogas, como existe em Ipanema. A territorialidade é que acaba. Mas quando começaram o desvios, aí o bolo azedou”, explica o presidente da associação. Ele diz que a confiança que chegou a ser construída no início do programa acabou de forma “automática” quando começaram os primeiros tiroteios, esporádicos há poucos anos e mais constantes agora. Sobre a intervenção federal, diz ser favorável, “desde que seja feita em todo o Estado do Rio de Janeiro” e não nas favelas, que para ele sempre pagam o preço.

Herança das UPPs

Para o sociólogo Ignacio Cano, especialista em Segurança Pública da UERJ, a herança mais importante das UPPs foi que ela mostrou “uma outra forma de enfrentar o tráfico, que não é a de entrar, atirar e sair”. “Apesar da crise de hoje, não vai ser como antes. As pessoas não imaginavam que havia outra opção. Além disso, com o programa o objetivo já não era acabar com o tráfico, mas sim diminuir a violência e o controle territorial. Isso vai ficar”, explica ele, que coordenou em 2012 um estudo sobre o plano, que estava em seu auge. O Estado do Rio havia conseguido então diminuir sua taxa de homicídio para 28 mortes para cada 100.000 habitantes, quase a metade que nos anos finais do século XX.

Cano afirma que as UPPs de fato reduziram a letalidade em alguns territórios, mas garante que há outros fatores que explicam esta queda da violência. Uma delas é que policiais militares do Rio passaram a ser premiados ao poupar vidas. Já a antropóloga e cientista política Jaqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que durante as UPPs “houve um deslocamento dessa mancha criminal”. “As taxas de homicídio caíram porque a polícia parou de trocar tiro. Quem é o administrador da morte? O Estado. A polícia entrava para impedir disputas entre gangues rivais, e ela própria deixou de produzir o confronto e passou a ocupar o território”.

Mas foi naquele mesmo ano que o plano mostrou algumas falhas, com a morte de uma policial militar no Complexo de favelas do Alemão, na Zona Norte do Rio. O território foi ocupado em 2010 pela Polícia e pelas Forças Armadas e uma UPP foi instalada dois anos depois. Mas a relação entre moradores e policiais tanto lá como em outras comunidades foi tensa. E logo alguns abusos se fizeram evidentes. Em julho de 2013, o pedreiro Amarildo foi detido, torturado e morto por policiais na favela da Rocinha. Os especialistas coincidem em que a pacificação e o novo tipo de policiamento prometido pelo Governo do Estado se traduziu na simples ocupação policial de territórios e, em muitos casos, na continuidade de uma política de enfrentamento, com policiais sendo mandados para a linha de frente de um conflito para matar e morrer. E os possíveis efeitos do programa se mostraram provisórios: em 2017, a taxa de homicídio voltou ao patamar de 40 mortes por 100.000 habitantes, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Rio. “Essa queda durou um ou dois anos porque você tem rearranjo da economia criminosa”, explica Muniz.

Por que a UPP deu certo na Santa Marta, ao menos em seu começo, e fracassou em outras comunidades? Isso ocorre, segundo Cano, porque elas não funcionam de maneira homogênea no Rio. “Algumas funcionam bem, outras mais ou menos e em outras áreas nem deveria se chamar UPP, como é o caso do Alemão. Lá a UPP se tornou um fator de conflito, justamente o contrário se seu espírito inicial, que era o de evitar confrontos”, argumenta. Um levantamento da plataforma Fogo Cruzado, que monitora a violência armada no Rio, ilustra a fala de Cano sobre as UPPs. Em maio de 2017, por exemplo, registrou um total de 21 trocas de tiros, sete mortes e 14 feridos no Complexo do Alemão. Em julho de 2016, nas vésperas das Olimpíadas, foram 43 tiroteios, duas mortes e 10 feridos. Nessa época, o comandante da UPP Leonardo Zuma dava as cartas no território e adotou uma estratégia de enfrentamento aos traficantes. Mas uma vez afastado de seu posto e denunciado pelo Ministério Público, no meio do ano passado, tiroteios e mortes caíram drasticamente, como mostram os dados do Fogo Cruzado. A última pessoa a morrer foi em outubro. “Isso mostra como alguns oficiais são fatores de produção de violência. A polícia tem o poder de reduzir a violência, mas muitas vezes também funciona como motor dessa violência”, diz Cano.

O EL PAÍS entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Rio para entrevistar policiais e comandantes de UPPs, mas a autorização foi negada devido a troca no comando da Polícia Militar do Rio na semana passada.

Falta de investimentos sociais

Também ao contrário da favela Santa Marta, o braço social do programa, chamado de UPP social, não saiu do papel. A maioria das favelas continuaram carentes de serviços públicos do Estado e nunca tiveram investimentos em infraestrutura, sobretudo em saneamento básico. No Alemão, um teleférico milionário chegou a ser construído. Foi aquele que em 2015 impressionou a diretora gerente do FMI, Christine Lagarde, que comentou após viajar nele: “Estou me sentindo numa estação de esqui nos Alpes”. Hoje, está parado. “A UPP social conseguiu fazer um diagnóstico, mas nunca foi tirada do papel. Mas eu sempre fui muito crítico porque se você leva serviços só para onde a polícia entra, isso vai aumentar a desigualdade. Você vai condenar territórios da Zona Oeste a não ter nem investimento social e nem presença das forças de segurança. Há áreas infinitamente mais pobres que em territórios centrais da cidade. Então sempre achei que os investimentos deveriam ser guiados por critérios sociais”, explica Cano. “As próprias UPPs não seguiram critérios de segurança. Ela serviu para tornar o Rio uma cidade de turismo e de negócios. Tornou-se um projeto político e econômico”.

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