Os mecanismos capitalistas, o “governo” de exceção e a morte: atos de um colóquio demente

Por Marilia Lomanto Veloso[1]

Giles Deleuze evoca O Capital de Marx para indagar sobre o deslumbre com a demência e o bom funcionamento dos engenhos capitalistas. Nas demais sociedades existem escândalos e segredos, inclusive, códigos de segredos, até mesmo para os segredos. No capitalismo nada é secreto “ao menos em princípio e segundo o código (é por isso que o capitalismo é ‘democrático’)”. (Deleuze[2])

Parece ter sido esse clima de desvendamento aberto e impudente dos interesses do capital (nacional e especulativo estrangeiro) que infligiu a nosso país o espetáculo burlesco reles, pusilânime e criminosamente arquitetado do “golpe das togas”, promovido pelo (des)governo que se apropriou do poder legitimamente escolhido pelo voto popular. Construção coletiva “negativa” resultante de um ato de molecagem aparafusado entre sujeitos destinados a garantir o pacto politico estabelecido na Constituição Federal de 1988, causa aversão confirmar a demência ideológica instalada em um país com a dimensão do Brasil, após o golpe de Estado de 2016.

Aprendemos com a história (que me corrijam os historiógrafos) que dentre os povos bárbaros, os hunos foram os mais violentos e ávidos por batalhas e pilhagens. A conjuntura que o Brasil experimenta vem mostrando caricaturas truanescas dos três poderes (e dos que disputam o poder, a exemplo do Ministério Público e da mídia), que se comportam de modo a permitirem indagar se vivenciamos uma tragédia grega, uma diversão medieva ou se recuamos aos povos hunos, com narrativas  de que espalhavam o medo, a crueldade, a guerra.  No Brasil acutilado, a folia grotesca da rapinagem de direitos, garantias, liberdades, dignidade, respeito humano, consciência política, valores republicanos é festivamente propalada pela mídia hegemônica e ladina que distorce os fatos e traduz o que ordenam os caudilhos financeiros aos quais se agacha.

Somos agredidos diuturnamente por um espetáculo teatral de baixa categoria, que nenhum grupo mambembe ousaria imitar. Um presidente usurpador é satirizado atravessando a Avenida do samba ornamentado de “Vampirão Neoliberalista”. A linguagem carnavalesca não poderia ser mais fiel ao que o (des)governo golpista “vampiriza”, sugando nossa democracia, sôfrego de sangue libertário dos que se  acreditam capazes de demolirem as frágeis estruturas que esse poder sem legitimidade insiste em afirmar.

Não menos patético o tratamento cáustico à Ministra Carmem Lucia, que pulula nas redes sociais, as mesmas que conspurcaram a dignidade da Presidenta Dilma Rousseff, sem que as togas das mulheres do sistema de justiça se unissem em solidariedade à também mulher Chefe do Executivo. A mídia eletrônica voraz e cáustica agora se delicia em deslustrar outra personagem, habitante da chamada Alta Corte da Justiça, e sem nenhum pudor refere-se à Ministra presidenta como “Bruxa Carmem Lúcia”, “Dra. Carminha do STF”, presente a evento com “sultões” da Shell e de grandes empresas.

Não bastava o ativismo de um magistrado de piso subterrâneo, deslumbrado com o filme fascista da Operação Mãos Limpas, simbolicamente “vestido de fraque, calças, cartola e gravata borboleta nas cores da bandeira do país”, nessa hipótese, dos Estados Unidos, constituir, dentro de uma República Federativa, sem qualquer cerimônia ou contenção hierárquica, uma República de onde saliva toxina em princípios e garantias pisoteadas ao sabor de sua toga partidária. Não era suficiente um títere medíocre exibindo currículo de Harvard se reabastecer da história de “acusador por excelência” agachado aos pés e a serviço do rei, “gens du roi” do século XXI,  para desandar a função social do Ministério Público até o nível infantilizado e insano da postura de herói da moralidade e do combate à corrupção.

O plano de poder imposto pelo capital estrangeiro que exige a submissão quer também a venda do patrimônio nacional, o esbulho de direitos da classe trabalhadora, a fragmentação de nossas garantias constitucionais. E quer mais.  Para além de exercer a dominação sobre nossa soberania, esfacelar o Estado Democrático de Direito, tripudiar sobre nossa consciência de nação livre, golpeia uma cidade expressivamente bela e estrategicamente exposta aos olhos do mundo, com uma desonrosa intervenção militar.

O discurso missionário da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) a justificar tanques e botas no Rio de Janeiro é a sequencia da velhacaria politica do (des)governo do golpe. Nada mais é que um embuste para dar continuidade à vassalagem que conduziu um personagem anódino (apesar de acadêmico) ao cargo que tomou de assalto da presidenta eleita, com a cumplicidade do Sistema de Justiça e da mídia.

Esse (des)governo de exceção, macabro, tirano e agora militarizado acaba de sofrer um penoso coice que despe sua infausta e macambúzia política de (in)segurança pública, quando não teve envergadura para garantir a vida de uma cidadã. Marielle Franco, mulher, negra, mãe, socióloga, “sobrevivente da Maré”, ativista social, identificada por suas lutas pelos direitos humanos, guerreira em defesa das comunidades que o aparato do Estado esmaga com seus discursos virulentos e práticas assépticas, vereadora de uma cidade maculada por quepes, botas e fuzis, foi brutalmente assassinada, e, junto a ela, Anderson, trabalhador, pai, cidadão, motorista/assessor da vereadora.

O Brasil se comoveu, se manifestou, protestou. Gritos de dor, de indignação, Mariella, Presente, Anderson, Presente, ecoaram por todos os cantos, repercutindo para além do horizonte verde-amarelo. Marielle era uma voz que brandia contra o luto rotineiro resultante da violência policial nas comunidades pobres, um corpo representativo de milhares de corpos dilacerados pela ação do Estado policial contra o morro, uma fala legitimada pela vontade popular que discordava da cirurgia bélica imposta ao Rio de Janeiro, mais um golpe também legitimado por um Poder Judiciário e um Ministério Público que decidiram fazer da Constituição Federal uma Cartilha fascista a serviço do poder das elites e da economia especulativa.

Arengas de que “serão adotadas providencias rigorosas” para apurar o duplo assassinato não convencem. Centenas de militantes políticos, de movimentos sociais, de defensores de direitos humanos perderam a vida, foram brutalizados por mortes violentas, são historicamente pranteados e as cruzes colocadas em seus túmulos não são honradas pela redução desses crimes. O logro das investigações é manifesto. As autoridades sabem muito bem onde buscar a responsabilidade por essas tragédias que causam dor, acirram o ódio, açodam o conflito e reafirmam o Estado como agente principal da insegurança que anuncia reprimir e da violência que finge combater.

O engodo da intervenção militar está exposto. A política de segurança do governo golpista é autofágica. Marielle e Anderson não foram vítimas da “guerra entre traficantes”, de balas perdidas, de disputas entre organizações criminosas. Foram assassinados por mãos experientes, hábeis, licenciadas e adestradas para matar o ‘inimigo”. No contexto hostil (e histórico) do país, ao negro, pobre, trabalhador do campo, morador da favela, e outros/outras  “clientes preferenciais” do sistema de justiça, se agregam e se consolidam como inimigos a esquerda, a resistência, a militância, o partido político, o movimento social, a autonomia universitária e quem se manifesta contrariamente ao “governo” de Exceção de Temer.

O comando do golpe e sua fatídica política de Garantia da Lei e da Ordem têm o dever de prestar contas desses crimes que comoveram o país e o mundo. E a sociedade precisa se organizar e coletivamente destituir essa “gerência despótica”,  intolerável que não consegue apartar de nós a repulsa por sua permanência.

Marielle e Anderson, que suas mortes prematuras signifiquem a esperança de resistência à opressão e a retomada da força do povo embravecido rumo ao restabelecimento da ordem democrática rompida pelo governo golpista que usurpou o lugar da presidenta legitimamente eleita e espraiou o desagrado coletivo, a pilhagem de direitos, o desrespeito à dignidade das pessoas, a perda de liberdades construídas e a morte violenta de nossas representações nas lutas por direitos, principalmente, humanos.

Salvador, março, 2018.

[1] Advogada da Bahia, Doutora em Direito PUC/SP, Professora aposentada da UEFS, ex-membro do Ministério Público do Estado da Bahia, membro da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia – AATR, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP, da Frente Brasil de Juristas pela Democracia – FBJD,  Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, Militante de Direitos Humanos.

[2] http://aindanaocomecamos.blogspot.com/2011/12/ideologia-nao-existe-deleuze.html12 dez. 2011. Acesso em 20 de fevereiro de 2018.

Foto: Felipe Uruatã / Mídia NINJA

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

onze + 15 =