Execução de Marielle: Justiça também precisa punir assassinos de reputação, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

O deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF) teve que suspender suas contas em redes sociais. Ele, que pode ser acusado de difamar (desonrar alguém espalhando informações falsas, três meses a um ano de prisão mais multa) a vereadora Marielle Franco, executada na última quarta (14), no Rio de Janeiro, recebeu uma avalanche de críticas por suas declarações.

Fraga havia publicado que ela seria casada com uma liderança do tráfico de drogas e teria sido eleita com a ajuda de uma facção criminosa – farsas que foram largamente denunciadas por plataformas de checagem de notícias e veículos de comunicação.

Sentindo na pele a enxurrada de reclamações e sendo chamado de mentiroso na TV, ele refugou. ”O arrependimento, talvez, é em ter colocado algo que eu não tenha checado, que não tenha uma informação. Por eu ser um policial, um coronel da polícia, eu deveria ter tido uma informação mais consistente, de uma fonte idônea”, afirmou à TV Globo.

A desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Marília Castro Neves também espalhou as mesmas informações em rede social. Mas não se arrependeu, apenas lamentou que agiu ”de forma precipitada”.

”Por que eu deveria me arrepender de ter feito um comentário? É só um comentário reproduzindo um outro. Eu não estou me sentindo culpada por nada. Eu não criei o comentário. Se é boato, se alguém criou, o autor da criação que pode ou não estar arrependido. Eu, por quê?”, disse ao jornal O Dia. Em um outro comentário, já havia sugerido o fuzilamento do deputado federal Jean Wyllys. Questionada, disse que era apenas uma ironia.

Caso você não se assuste com o fato de uma desembargadora desconhecer um dos principais artigos do Código Penal Brasileiro, o 139 (difamação), então não deve ver problema algum em ser operado de apendicite por um mecânico. Com todo respeito aos mecânicos, porque eu não levaria um carro para ser consertado por um médico.

Tanto o deputado quanto a desembargadora deveriam responder na Justiça por suas declarações.

Não, isso não é censura. Pelo contrário, seria a consequência correta em um lugar que preza pela liberdade de expressão como direito inerente ao ser humano.

O direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição e pelos tratados internacionais que o país assinou. E, da mesma forma, as pessoas têm o direito de ver preservada a sua integridade – em vida ou após a morte. Ou seja, o mesmo direito que temos de dar nossas opiniões e declarações, as pessoas também têm de ver garantida sua dignidade.

Contudo, a liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Porque não há direitos fundamentais absolutos. Nem o direito à vida – prova disso é o direito à legítima defesa. Pois a partir do momento em que alguém abusa de sua liberdade de expressão, indo além de expor a sua opinião, atribuindo crimes a quem não os cometeu, espalhando o ódio e incitando à violência, isso pode trazer consequências mais graves à dignidade alheia.

Claro que, no final das contas, não é a mão de um deputado ou uma desembargadora que segura a faca ou o revólver, mas é a sobreposição de discursos como os seus ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de esfaquear, atirar e atacar banais. Ou, melhor dizendo, “necessários”, quase um pedido do céu. São pessoas como eles, do alto de suas posições de autoridade, que alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.

Não a execução de Marielle, cometida por profissionais. Mas quantas outras lideranças sociais ou pessoas ”matáveis” por sua classe social, gênero, cor de pele, identidade e orientação sexual tombam regularmente aos olhos complacentes de ”homens e mulheres de bem”?

Mas, aí, temos uma informação importante: a liberdade de expressão não admite censura prévia. Ou seja, apesar de alguns magistrados não entenderem isso e darem sentenças aqui e ali para calar de antemão biografias, reportagens, propagandas, movimentos sociais, a lei garante que as pessoas não sejam proibidas de dizer o que pensam. E foi isso o que aconteceu. Alberto Fraga e Marília Neves quiseram divulgar essas informações e assim o fizeram.

O que nos leva ao outro lado da moeda: as pessoas são sim responsáveis pelo impacto que a divulgação de suas opiniões causa. E toda pessoa que caluniar ou difamar está sujeita a sofrer consequências: pagar uma indenização, ir para a cadeia, perder o emprego, ter sua candidatura cassada.

Afinal, o exercício das liberdades pressupõe responsabilidade. Quem não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate público, recolhendo-se junto com sua raiva e ódio ao seu cantinho.

E a responsabilidade por uma declaração é diretamente proporcional ao poder de difusão dessa mensagem. Quanto mais conhecida ou poderosa a figura pública, mais responsável ela deve ser.

E se o deputado e a desembargadora defenderem que as interações em redes sociais estão desvinculadas do tecido da sociedade, como se fosse uma Terra de Ninguém aonde a lei não alcança, precisariam entregar imediatamente os cargos públicos que ocupam. E, a partir de então, serem tutelados como incapazes.

Certamente há outras pessoas que não gostavam de Marielle Franco – seja por seu combate aos privilégios de setores da sociedade, seja pelo preconceito puro e simples. Mas ficaram em silêncio. Tanto o deputado quanto a desembargadora também tinham o direito ao silêncio. E não o exerceram.

O problema não é ter opinião. Muito menos declará-la. Contudo, devemos avaliar não só forma, mas conteúdo. Ela é divulgada de forma respeitosa ou agressiva? Privilegia o diálogo e busca uma convivência pacífica, ou conclama as pessoas a desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes, por medo ou desconhecimento?

Desconfio que quando o sistema de Justiça conseguir gerar incômodo à gente graúda, como os dois, por conta do esgoto que postaram nas redes sociais, teremos passando a um outro patamar de civilidade no país.

Para tanto, não é necessário criar novas leis sobre notícias falsas e afins – até porque, pior do que mentiras correndo nas redes sociais, seria o Estado definindo em lei o que é verdade e o que é mentira. Basta aplicar as que já existem, com celeridade.

A dúvida não é se temos instrumentos para tanto. Mas se os donos do país querem que isso aconteça.

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