Intimidação e virada crucial na luta da Vila Autódromo (2013-2014)

A Ascensão da Vila Autódromo Como Símbolo de Resistência Olímpica (2013-2014)

Theresa Williamson – RioOnWatch

Até o final de 2012 todos os ingredientes estavam reunidos para o que se passaria ao longo do crucial ano por vir. A resistência da Vila Autódromo, com bases sólidas, seguiu crescendo no início de 2013. O convincente Plano Popular estava sendo distribuído, uma forte rede de líderes comunitários se reunia e se mobilizava, uma diversa gama de parceiros se engajava, a mídia global começava a prestar atenção e a batalha judicial da comunidade seguia resolutamente sem solução. Legalmente, o prefeito não poderia remover a comunidade sem consentimento ou justificativa para a desapropriação. E dada a visibilidade e a mobilização da comunidade, uma remoção relâmpago estava, cada vez mais, fora de questão politicamente.

Em abril de 2013, o professor de planejamento urbano Lawrence Vale do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (Massachusetts Institute of Technology ou MIT) publicou o primeiro sumário extenso da luta da Vila Autódromo, comparando-a com o que ocorreu nas Olimpíadas de Atlanta, na publicação Places, The Design Observer. Intitulada “O Decatlo das Remoções: Desafios Olímpicos para encontrar imóveis a preços acessíveis — de Atlanta ao Rio de Janeiro“, a publicação da matéria deixou claro o alcance internacional e a reputação da resistência da Vila Autódromo. Nesse mesmo mês, a Vila Autódromo fez sua comovente argumentação no canal australiano Special Broadcasting Service (SBS) a partir do curto documentário “Reshaping Rio” (“Remodelando o Rio”).

A essa altura, o prefeito de uma cidade em uma democracia avançada possivelmente pararia e negociaria coletivamente ou reconheceria o estrago político que poderia ser causado com a insistência na remoção de uma comunidade pequena e amplamente apoiada como essa, e mudaria de estratégia. Mas no Rio, o Prefeito Eduardo Paes se firmou na sua abordagem, obviamente dedicado às demandas, por trás dos panos, de magnatas do mercado imobiliário responsáveis pela construção do Parque Olímpico que seriam os beneficiários finais dessa remoção.

O que havia se iniciado no final de 2011 só se intensificou até os primeiros meses de 2013, quando a Secretaria Municipal de Habitação expandiu, de porta em porta, a pressão sobre a comunidade. Funcionários da prefeitura usaram diversos meios para preencherem formulários em que listavam tudo, desde nomes e endereços dos moradores ao grau de interesse no reassentamento e o quão grandes eram suas casas. Alguns moradores relataram terem se recusado a falar com esses funcionários, enquanto outros disseram que parentes passaram informações sem perceber o que estava em jogo ou até que responderam por medo de serem deixados de fora de uma eventual realocação forçada.

O propósito desse processo de coleta de dados extenso e altamente duvidoso, ficou claro, em 1 de julho de 2013 no OsteRio, uma série de debates exclusivos promovidos pelo Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (IETS), um respeitado centro carioca de estudos sobre trabalho e economia urbana. No evento, o prefeito anunciou para um público de uns sessenta executivos, jornalistas, pesquisadores e ONGs que 70% dos moradores da Vila Autódromo queriam sair de lá. A inclusão de seus nomes aos formulários de pesquisa, independente de suas razões para tal, foi usada como declaração da disposição dos moradores para, ou até mesmo desejo de reassentamento, segundo a declaração do prefeito.

Moradores da Vila Autódromo reagiram organizando um grande protesto em 20 de julho de 2013. Em seguida, as narrativas concorrentes estavam prestes a entrar em choque quando, no início de agosto, o Prefeito Eduardo Paes convocou uma reunião com os líderes da Vila Autódromo, os secretários municipais de meio ambiente e de habitação, os subprefeitos da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, um representante da Empresa Olímpica Municipal e o procurador geral do município.

Na reunião de 9 de agosto de 2013, a Vila Autódromo estava representada por uma série de líderes comunitários e moradores, defensores públicos, a Pastoral das Favelas e parceiros técnicos da UFRJ e da UFF que auxiliaram na criação do Plano Popular. Os líderes saíram da reunião esperançosos, se sentindo vitoriosos, após o prefeito admitir publicamente os erros no tratamento à comunidade e concordar em abrir uma rodada de negociações coletivas para urbanizar e garantir “a permanência da Vila Autódromo”, afirmando que eventuais casos de reassentamento seriam realizados somente “na própria área, caso o morador assim o deseje”.

Ao longo do mês, e no início de setembro, um grupo de trabalho composto por moradores e seus assessores técnicos universitários trabalharam com o secretário de meio ambiente, o secretário de habitação e arquitetos municipais em uma série de reuniões semanais para encontrar um plano de urbanização com que todos concordassem. O grupo de trabalho da Vila Autódromo foi claro em seu compromisso de não permitir remoções e utilizou o Plano Popular elaborado coletivamente como base para a negociação. Autoridades municipais, porém, foram a essas reuniões com planos completamente diferentes, que requereriam remoções significativas, dos quais não abriam mão. Eles se recusavam a falar de outros detalhes sem que os outros concordassem com algumas remoções. Em consequência, os líderes comunitários não negociaram mais. Eles conheciam a tática da prefeitura bastante comum em outras comunidades de usar remoções dispersas para iniciar remoções mais amplas. Nesses casos, a demolição de algumas casas resultava num efeito dominó em que moradores assustados desistiam um por um e comunidades inteiras, por fim, se desmantelavam. Partindo de posições tão divergentes, as reuniões se tornaram inconsequentes, e em meados de setembro ficou claro para membros da comunidade que o prefeito havia feito suas declarações públicas de má fé, “para inglês ver“.[a]

Dentro de duas semanas do encerramento das negociações, aproximadamente cem moradores da Vila Autódromo receberam um convite do prefeito para uma reunião fechada a ser realizada ali perto, no centro de convenções RioCentro, em 6 de outubro de 2013. Esses cem moradores decididamente não eram os moradores eleitos para representar a comunidade nas negociações públicas. Também não faziam parte dos centenas de moradores em resistência. Estava claro que os dados dos funcionários da SMH sobre quem estava disposto a negociar formou a base para quem seria convidado a participar do grande evento. A prefeitura selecionou apenas aqueles dispostos a negociar, e o prefeito se encontraria somente com eles.

A pequena divisão na comunidade exposta no evento de Bittar no final de 2011, provou-se portanto catastrófica para a comunidade como um todo dois anos depois. Domingo de manhã, centenas de moradores da Vila Autódromo que não haviam sido convidados para a reunião, junto à mesma quantidade de jornalistas e apoiadores, invadiram o Riocentro, passando por uma cerca que rodeava um posto avançado de segurança, atravessando uma piscina e finalmente acessando o prédio, onde foram barrados antes de entrarem no grande salão onde Paes se dirigia aos moradores convidados há mais de meia hora. A entrada não foi barrada somente para moradores da comunidade que não haviam sido convidados e seus líderes eleitos, mas também para a BBC e os jornalistas alternativos e independentes presentes.

Enquanto isso, o prefeito teve uma audiência privada de quase uma hora com os cem moradores e seus familiares. O único meio de comunicação permitido na sala foi a Globo, e executivos das construtoras do Parque Olímpico também estavam presentes. Após diversos moradores da Vila Autódromo, inconformados com a ideia de uma reunião fechada como essa decidir seus futuros, serem feridos por seguranças particulares em suas tentativas de entrar na reunião, o prefeito finalmente liberou a entrada dos moradores, de uma urbanista da UFF que os auxiliava e de alguns poucos jornalistas profissionais. Todos os outros apoiadores e meios de comunicação foram obrigados a permanecer do lado de fora.

Lá dentro, aqueles que receberam convites tiveram prioridade na fala ao microfone, e poucos outros tiveram a oportunidade de falar. Durante sua longa apresentação destacando os planos de realocar a comunidade no Parque Carioca–o projeto de habitação pública com o tobogã feito “especialmente para a Vila Autódromo”– o prefeito Paes fez declarações que divergiam de suas declarações anteriores e de protocolos padrão em relação a regras de habitação pública. Ele declarou, por exemplo, que donos de diversos imóveis na Vila Autódromo seriam compensados com vários imóveis, apesar de que habitação pública deve ser distribuída com base na necessidade, e não na especulação. Ele também declarou que moradores poderiam vender suas unidades imediatamente, sendo que normalmente há uma obrigatoriedade de permanência de dez anos, e que pessoas que alugavam imóveis na Vila Autódromo receberiam apartamentos no Parque Carioca, sendo que essas pessoas normalmente não recebem nenhum tipo de indenização durante uma remoção. Por fim, ele declarou que moradores de casas mais valiosas poderiam optar pela compensação a preço de mercado. Os moradores que pediram por urbanização conforme o Plano Popular ouviram do prefeito que deveriam se dirigir à administração regional da prefeitura para se cadastrarem para reassentamento ou indenização.

A essa altura, estava claro que o prefeito se encontrava entre a cruz e a espada. Seus interesses pessoais e as promessas políticas feitas a empreendedores imobiliários claramente eram seu único compromisso, mas o sistema judicial não finalizava o processo favoravelmente à prefeitura e logo chegaria a hora de cumprir o combinado com as construtoras. Caso contrário, não teria havido necessidade de negociar de forma individual com moradores–ele poderia ter mantido sua promessa feita em agosto de reassentar somente aqueles que quisessem e urbanizar o restante da comunidade. Se o objetivo era remover a comunidade inteira, sua única opção era encontrar algo que poderia ser considerado “uma realocação consensual”, portanto, identificar e convencer as famílias que não participaram da ampla resistência comunitária e que viviam em condições precárias a saírem primeiro, seria sua estratégia mais viável.

Então, a partir dessa reunião, e apesar do Plano Popular da Vila Autódromo ter sido escolhido entre 170 projetos do Rio de Janeiro como ganhador do conceituado Deutsche Bank Urban Age Award, a prefeitura entrou em uma fase que misturava diversas formas de intimidação e negociações família por família, detectando o que as convenceria a se mudar ao invés de urbanizar seu bairro. A administração chegou até a forjar um protesto em prol do reassentamento, contratando dois ônibus para levar vinte moradores para a prefeitura onde “protestaram” para serem designados para habitação pública. Nesta mesma noite, mobilizadores comunitários promoviam uma reunião com quase 200 moradores que assinaram um compromisso com a permanência.

E foi assim que as famílias–uma por uma–que viviam em situações mais precárias, atraídas por anúncios lustrosos, foram as primeiras a partirem, recebendo apartamentos no Parque Carioca. Quando suas casas foram demolidas, o medo começou a se instaurar entre vizinhos, e uma leva após a outra de moradores aceitou níveis variados de indenização ao longo de 2014, com a principal leva saindo em seguida ao acordo feito para a saída da Igreja Evangélica. A Igreja Evangélica aceitou uma oferta bem grande para mudar de local, o que levou seus seguidores a sairem também. As ofertas começaram com apenas um apartamento mas, pouco depois, as famílias começaram a receber dois, três ou mais apartamentos. Quando ninguém mais aceitava apartamentos, a prefeitura começou a oferecer compensações financeiras que aumentaram de dezenas de milhares de reais ao ápice de R$3 milhões, dados a um coronel que tinha terras lá. Essas ofertas, no contexto de uma comunidade que se desintegrava sob escavadeiras, poeira, serviços suspensos e outras formas de coação, levou até alguns que se declaravam inteiramente comprometidos com a permanência a irem embora.

Notas

[a] A expressão surgiu no início do século XIX no Brasil, refletindo uma tendência cultural de se fazer promessas públicas vazias—inclusive na criação de leis—quando não há real intenção de implementação, e apenas para ganhar tempo, esconder motivações reais, ou de alguma forma permitir que medidas impopulares sejam postas em prática, como foi feito também com os soldados de Canudos que receberam a promessa de terras no Rio.

Vídeos Referenciados no Texto Acima:

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