Polícia pode despejar indígenas a qualquer momento em Caarapó; lideranças temem novo massacre

Reintegrações de posse previstas para os próximos dias levam tensão à terra indígena em que ocorreu o massacre de Caarapó, em 2016

Por Tiago Miotto, Cimi

Duas reintegrações de posse contra retomadas Guarani e Kaiowá na Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipeguá I, em Caarapó, podem ocorrer a qualquer momento a partir desta quarta (28). “Outro massacre está a caminho”, afirma Kunumi Apyka’i Rory, porta-voz das comunidades da TI. Ele faz referência ao ataque de fazendeiros e jagunços fortemente armados que, em junho 2016, assassinaram o agente de saúde indígena Clodiodi Aquiles de Souza, de 23 anos, e deixaram outros seis indígenas feridos por armas de fogo.

As reintegrações de posse que podem ocorrer nos próximos dias atingem os tekoha Jeroky Guasu e Guapoy, e delegados da Polícia Federal (PF) já entraram em contato dando prazo para os indígenas deixarem as áreas.

Hoje (27) pela tarde, um delegado da PF foi até o tekoha Guapoy e deu um prazo de cinco dias para que os indígenas deixassem a área. No caso do tekoha Jeroky Guasu, o prazo dado pela Justiça vence nesta quarta-feira (28), e a PF já afirmou que deve ir à área para fazer uma última conversa com os indígenas.

O clima é de tensão, e os indígenas aguardam uma resposta positiva do Supremo Tribunal Federal (STF) a um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) que pede a suspensão da ordem de reintegração de posse até que o processo transite em julgado. Cabe à presidente do STF, Cármen Lúcia, analisar o pedido.

“Estamos esperando essa decisão. Se a gente não conseguir, vamos esperar qualquer coisa que for. Estamos aguardando, nos sentindo ameaçados e sentindo insegurança”, afirma Kunumi. Ele é morador do tekoha Kunumi Vera, local onde foi morto Clodiodi e que foi rebatizado em sua homenagem – Kunumi Vera significa guerreiro iluminado.

Apesar da tensão, ele explica que os Guarani e Kaiowá estão determinados a resistir. “A comunidade não vai abrir mão de nenhum pedaço desse território”.

“Nós, indígenas, que somos originários desse país, não temos nenhuma segurança nenhuma e são desrespeitados nossos direitos. Essas ações demonstram que os povos indígenas são pisoteados no Brasil”

Morosidade e judicialização

Assassinatos de indígenas, cicatrizes e um emaranhado de ações judiciais são o reflexo da morosidade do Estado brasileiro em concluir a demarcação da TI Dourados-Amambaipeguá, adjacente à reserva indígena Tey Kue.

São nada menos que 18 processos que têm a “comunidade indígena Tey Kue” como parte na Justiça Federal de Dourados. Destes, oito são reintegrações de posse, em diferentes estágios, e nove são interditos proibitórios, ações para garantir o despejo imediato caso os indígenas ocupem determinada área.

Esta situação – que passa pelo assassinato dos indígenas Denilson Barbosa, em 2013, e de Clodiodi, em 2016 – tem origem no confinamento dos Guarani e Kaiowá da região de Caarapó na reserva Tey Kue, criada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1924.

A maior parte da área de ocupação tradicional dos indígenas ficou de fora da reserva, e essa decisão, quase um século depois, resulta num impasse: são mais de oito mil indígenas vivendo dentro dos 3524 hectares da reserva.

Em abril de 2016, após forte mobilização dos indígenas da região e quase dez anos depois de um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai, o relatório de identificação e delimitação da TI Dourados-Amambaipeguá I foi finalmente publicado pelo órgão indigenista, com 55,6 mil hectares.

A reação de fazendeiros e ruralistas na região foi imediata e concomitante ao afastamento de Dilma Rousseff, em Brasília. A atual presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), deputada Teresa Cristina (PSDB/MS), chegou a afirmar, em um evento na cidade: “Se bobear, prefeito, não vai sobrar nem mesmo a prefeitura”.

Com a pressão ruralista pela anulação do relatório, os indígenas partiram para retomar partes de sua terra. A violenta reação dos ruralistas foi com a violência, e cerca de 40 caminhonetes, três pás carregadeiras e mais de 100 pessoas, grande parte delas armadas, praticaram o massacre de Caarapó.

Logo após o massacre, conta Kunumi Apyka’i Rory, os Guarani e Kaiowá partiram para novas retomadas, que estancaram quando um acordo foi firmado. “Houve um acordo para que os indígenas não avançassem, e os fazendeiros não entrassem com ações de despejo também, até que a Justiça decidisse sobre a terra”.

Novas reintegrações a caminho

Apesar do acordo, desde 2017 os Guarani e Kaiowá vêm sofrendo sucessivas notificações de reintegrações de posse, quase sempre revertidas no último momento.

A ação de reintegração de posse de Jeroky Guasu chegou a ter uma decisão liminar suspensa pelo STF no início de 2017, juntamente com o tekoha Nhamoy Guavira’i. A suspensão foi garantida pela presidente da Suprema Corte até que houvesse uma decisão de mérito a respeito das reintegrações de posse, o que ocorreu em dezembro do mesmo ano, pela 1ª Vara Federal de Dourados.

No caso de Guapoy, o despejo pode ser realizado em função de uma decisão liminar. A suspensão de decisões e liminares podem ser requisitada apenas por órgãos ligados ao poder Executivo, como a Funai. Os indígenas esperam que um novo recurso seja feito pela procuradoria do órgão antes que prazo dado pela PF vença.

Em janeiro, uma carta da Terra indígena Dourados-Amambaipeguá 1 já havia manifestado apoio aos tekoha Pindoroky, Nhamoy Guavira’i e Guapoy Guasu, também alvos de possíveis despejos, caracterizados na carta como “decretos de morte”.

“Probabilidade de mortes”

A tensão em Caarapó é reconhecida pela própria Justiça. Em janeiro de 2017, um ofício da PF à 2ª Vara da Justiça Federal de Dourados alertava para a “probabilidade concreta de mortes” durante a execução de um dos pedidos de reintegração de posse em uma das nove retomadas da área. O ofício foi citado numa decisão que adiou o cumprimento de uma reintegração de posse contra os tekoha Nãmoy Guavira’y e Jeroky Guasu.

“Medo a comunidade não tem. Depois da perda dos nossos parentes e os outros sete que derramaram seu sangue no massacre, a comunidade tá bem preparada para enfrentar o que for. Ela não vai abrir mão de Dourados-Amambaipeguá I, está pronta para o que for a partir de amanhã”, alerta Kunumi.

Ele explica que há uma união entre as retomadas e os indígenas que vivem no interior da reserva de Tey Kue.

“A maioria das pessoas nas retomadas são da Tey Kue, nasceram aqui e foram conhecendo a história, ouvindo os mais velhos, estudando e sabendo como nosso povo foi massacrado e tendo seu território roubado. Então nós mesmos começamos a reagir e partir para as retomadas”, conta ele.

“É um espaço muito pouco para a comunidade, ainda mais sabendo que as nossas terras tão nas mãos dos fazendeiros enquanto a gente está aqui, espremido”, conta ele.

Imagem: Manifestação contra despejo no Tekoha Jeroky Guasu, em 2017. Foto: Rafael de Abreu

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