por Patricia Fachin, em IHU On-Line
O ativismo de Martin Luther King Jr. pela não violência e o fim do racismo “fez parte de um movimento social bastante maior, mais antigo e que continuou depois de seu assassinato”, diz a historiadora Maria Clara Sales Carneiro Sampaio à IHU On-Line. “No meu ponto de vista, que talvez seja diferente de outros estudiosos do tema, suas contribuições mais preciosas se dividem em duas vertentes: os subsídios para filosofias da não-violência para o Ocidente e uma capacidade de comunicar e de provocar o pensamento crítico absolutamente extraordinária. Sobre esta última, seus discursos, por exemplo, são ao mesmo tempo fáceis de se compreender e profundamente eruditos. Seus escritos são politicamente e literariamente muito ricos, incluem interpretações complexas da filosofia cristã, mas também se utilizam de estruturas shakespearianas. Suas mensagens eram ao mesmo tempo compreensíveis e belas para pessoas com diferentes graus de erudição”, frisa.
Apesar de o “poder simbólico” de Luther King ainda ecoar entre as lutas dos afro-americanos nos dias de hoje, Maria Clara pontua que “é preciso relembrar que King representa apenas parte das lutas dos afro-americanos por igualdade. Outros líderes carismáticos contemporâneos a King, como é o caso de Malcolm X, questionavam se a postura de não-violência não seria uma forma de conformidade com os poderes estabelecidos. Os debates em King e Malcolm X são interessantíssimos para se compreender como o racismo — e consequentemente a luta antirracista — é fibra do tecido social estadunidense e de suas instituições políticas”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a historiadora também comenta o passado e a atualidade das lutas racionais e apresenta alguns dos resultados da sua pesquisa de doutorado, intitulada “Não diga que não somos brancos: os projetos de colonização para afro-americanos do governo Lincoln na perspectiva do Caribe, América Latina e Brasil dos 1860”, que demonstram tanto as disputas acerca do nome do ex-presidente Lincoln no Partido Republicano, como sua postura acerca das questões afro durante sua gestão como presidente dos EUA. “No final dos anos 1850, nas prévias, Lincoln era o candidato mais conservador em relação à questão da escravidão. Essa é uma das razões que contribuiu para sua indicação pelo partido. Especialistas, historiadores e biógrafos de Lincoln mostram que suas visões sobre a escravidão e sobre as comunidades negras livres que viviam no Norte do país mudaram muito ao longo de seu governo. Minha pesquisa, contudo, mostrou um certo entusiasmo de Lincoln pelos projetos de remoção de populações afro-americanas para fora dos Estados Unidos”, conclui.
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio é bacharel em História e Direito, mestra e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente leciona na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais diria que são os aspectos mais importantes que sua tese de doutorado revela sobre as negociações internacionais promovidas pelos EUA no início da Guerra da Sucessão (1861-1865), que pretendiam transferir os afrodescendentes residentes nos EUA para países da América Latina e Caribe? Ainda nesse sentido, o que as fontes documentais desse período revelam sobre os debates acerca da escravidão, da construção nacional e do trabalho no período pós-abolição?
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio – Acredito que o mais interessante e surpreendente da minha pesquisa de doutoramento foi perceber discursos sobre o Brasil de meados do século XIX que se pareciam muito com os discursos da democracia racial que vimos no século XX. Tive contato, por exemplo, com o ministro estadunidense no Rio de Janeiro, James Watson Webb. Nos primeiros anos dos 1860, Webb relata em despachos oficiais a seus superiores sobre uma suposta harmonia racial na sociedade brasileira. O ministro chega, inclusive, a afirmar que no Brasil não havia qualquer preconceito de raça ou cor. Posteriormente, analisando a biografia de Webb, bem como outras fontes, pude compreender que ele provavelmente não acreditava que de fato a sociedade brasileira era completamente desprovida de preconceito. As linhas de cor no Brasil e as relações raciais apenas operavam em frequências diferentes daquelas da sociedade estadunidense. Esse tipo de discurso da harmonia racial brasileira, contudo, já estava circulando e Webb, um estrangeiro, logo entrou em contato com essas narrativas.
Faz-se importante lembrar que Webb viveu no Rio de Janeiro em um momento histórico em que a circulação de escravas e escravos era muito intensa. Grande parte dos africanos e africanas desembarcados como escravos no Brasil se processou justamente no século XIX. Não havia possibilidade de viver no Brasil dos 1860 sem entrar em contato contínuo com a escravidão. Ainda assim, não imaginei que encontraria esses discursos de harmonia racial de maneira tão aberta e clara (décadas antes da abolição). Como foi uma pesquisa longa, muitos outros aspectos se mostraram extremamente interessantes também. Pude, por exemplo, conhecer superficialmente alguns dos debates que intelectuais afro-americanos têm feito sobre a memória do presidente Abraham Lincoln. Lincoln tem uma carga afetiva muito grande para os estadunidenses até o presente. A posse do primeiro presidente negro dos Estados Unidos em 2009, Barack Obama, foi planejada para refazer o percurso feito na ocasião da posse de Lincoln em 1861. O menu do primeiro banquete presidencial de Obama foi cuidadosamente escolhido a partir dos hábitos e gostos de Lincoln. O famoso discurso que Martin Luther King Jr. fez na marcha pelos direitos civis em 1963 (Eu tenho um Sonho) foi proclamado no Memorial de Lincoln em Washington. Em muitos aspectos Lincoln era à frente de seu tempo, mas já se tem questionado essa cristalização dele como o articulador central da causa abolicionista e da aprovação da décima terceira emenda constitucional.
A décima terceira emenda foi aprovada em 1865 e é aquela que extingue a instituição da escravidão nos Estados Unidos. Pude dedicar algum tempo para estudar um pouco os bastidores da disputa de Lincoln à presidência pelo Partido Republicano. No final dos anos 1850, nas prévias, Lincoln era o candidato mais conservador em relação à questão da escravidão. Essa é uma das razões que contribuiu para sua indicação pelo partido. Especialistas, historiadores e biógrafos de Lincoln mostram que suas visões sobre a escravidão e sobre as comunidades negras livres que viviam no Norte do país mudaram muito ao longo de seu governo. Minha pesquisa, contudo, mostrou um certo entusiasmo de Lincoln pelos projetos de remoção de populações afro-americanas para fora dos Estados Unidos. Minha pesquisa, entretanto, não foi sobre Lincoln e nem acredito que os debates críticos sobre sua presidência tenham o objetivo de negar suas contribuições políticas e históricas para o desfecho da Guerra de Secessão. Mas essas novas pesquisas questionam essa memória dele como patrono (único) da abolição e procuram priorizar as contribuições de outros atores sociais para a memória da emancipação.
IHU On-Line – Um século depois da Guerra de Secessão, Martin Luther King faz seu famoso discurso, em 1963, reivindicando direitos civis para os negros e pedindo o fim da segregação racial. Que diferenças e aproximações estabelece sobre a situação dos negros nos EUA nesses dois períodos?
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio – A abolição da escravidão nos Estados Unidos em 1865 não foi acompanhada necessariamente de políticas públicas (estaduais e/ou federais) que permitissem de verdade uma inserção mais justa de populações advindas da escravidão em uma nova lógica de trabalho que se instalou principalmente naqueles estados do Sul do país. Iniciativas mais efetivas que procuraram integrar dignamente ex-escravizados partiram mais comumente das próprias comunidades negras como a famosa National Association for the Advancement of Colored People (em tradução livre Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor). Para além da deficiência de iniciativas de reparação mais abrangentes, as políticas oficiais de segregação afetaram profundamente crianças, mulheres e homens negros nas esferas econômica, social e psicológica. Ainda que a segregação legal em universidades, escolas, transportes públicos, banheiros públicos e estabelecimentos privados tenha ficado mais famosa naqueles estados do Sul dos Estados Unidos, as práticas de segregação racial eram bastante comuns em todo o país.
Para além dos efeitos de empobrecimento e exclusão causados pela segregação racial legal ou costumeira, setores brancos da sociedade norte-americana imprimiram nas populações afro-americanas técnicas de profunda violência e terror. Assassinatos, linchamentos, estupros e incêndios culposos em propriedades de afro-americanos eram comuns e cotidianos em estados como o Alabama, o Mississippi e a Louisiana, entre outros. A abolição da escravidão, assim, não garantiu nem permitiu que os afro-americanos, junto com outros grupos não-brancos, gozassem dos mesmos direitos e oportunidades que os brancos. O Movimento dos Direitos Civis, destarte, demandou a real inserção social e política de mulheres e homens negros que a emancipação não garantiu. O século entre a décima terceira emenda constitucional, a da emancipação, e a décima quarta (dos direitos civis) é marcado por muitos avanços em relação aos direitos e oportunidades para a população afro-americana. Foram fundadas universidades para o estudo e educação de questões específicas, grandes intelectuais negros e movimentos de empoderamento evidenciaram as condições de vida da maioria dos afro-americanos e afro-americanas. Contudo, é também um século de muitas permanências: as populações negras, principalmente no Sul, via de regra, permaneceram à margem das melhores oportunidades econômicas, vítimas do racismo estrutural do Estado e sujeitas a violências cotidianas.
IHU On-Line – Quais são as principais contribuições de Martin Luther King para a garantia dos direitos civis?
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio – Martin Luther King Jr. fez parte de um movimento social bastante maior, mais antigo e que continuou depois de seu assassinato. Mas sem dúvida ele foi uma figura carismática e extremamente brilhante. Suas contribuições pessoais são inúmeras e, ao fim, King contribuiu para a causa dos direitos civis com sua vida. No meu ponto de vista, que talvez seja diferente de outros estudiosos do tema, suas contribuições mais preciosas se dividem em duas vertentes: os subsídios para filosofias da não-violência para o Ocidente e uma capacidade de comunicar e de provocar o pensamento crítico absolutamente extraordinária. Sobre esta última, seus discursos, por exemplo, são ao mesmo tempo fáceis de se compreender e profundamente eruditos. Seus escritos são politicamente e literariamente muito ricos, incluem interpretações complexas da filosofia cristã, mas também se utilizam de estruturas shakespearianas. Suas mensagens eram ao mesmo tempo compreensíveis e belas para pessoas com diferentes graus de erudição. Assim, não seria justo listar suas contribuições para o movimento dos direitos civis apenas com as vitórias aparentes, que podemos resumir com a pressão social que culminou na aprovação da décima quarta emenda constitucional.
Seu poder simbólico ainda ecoa entre as lutas dos afro-americanos hoje em dia. Sobre a questão da não-violência, contudo, é preciso relembrar que King representa apenas parte das lutas dos afro-americanos por igualdade. Outros líderes carismáticos contemporâneos a King, como é o caso de Malcolm X, questionavam se a postura de não-violência não seria uma forma de conformidade com os poderes estabelecidos. Os debates em King e Malcolm X são interessantíssimos para se compreender como o racismo — e consequentemente a luta antirracista — é fibra do tecido social estadunidense e de suas instituições políticas.
IHU On-Line – Qual é a atualidade do discurso de Martin Luther King, 50 anos depois? Quais das reivindicações feitas por ele ainda estão em pauta nos dias de hoje?
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio – O desejo por igualdade de Martin Luther King Jr. não se tornou realidade ainda. O momento político internacional parece apontar para o fortalecimento de movimentos de extrema-direita ligados a agendas políticas abertamente racistas (anti-imigracionistas e antirrefugiados). A própria eleição do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é indicativa do robustecimento de ideologias relacionadas a discursos da supremacia branca. Nesse sentido, as agendas de lutas por igualdade, por vezes, parecem perder espaços já conquistados com suor, lágrimas e sangue de milhares de ativistas.
Contudo, é preciso matizar a tendência pessimista que é quase automática quando interpretamos o cenário internacional, ainda mais se partirmos de informações provenientes desses grandes conglomerados midiáticos internacionais. A prática social de denunciar os diferentes tipos de racismo estrutural — e o machismo também — está se tornando um mecanismo de contraposição a comportamentos preconceituosos profundamente enraizados na cultura. O movimento do Black Lives Matter (em tradução livre Vidas Negras Importam), por exemplo, tem confrontado a permanência da violência policial contra a população afro-americana, através de grandes demonstrações públicas que não podem ser ignoradas nem pelos Estados Unidos, nem pelo mundo. Um dos papéis positivos das redes sociais, por exemplo, têm sido dar voz a grupos e pessoas que vivem violências cotidianamente.
Comparativamente, talvez, a expressão desses canais que relatam essas experiências de subalternidade ainda seja muito menos abrangente frente à força dos grandes discursos hegemônicos. Mas me parece que a caixa de pandora foi aberta no sentido de que um número expressivo de mulheres e homens negros já enfrentam as formas de racismo estrutural com atitudes de resistência e crítica. E essa resistência já ecoa no restante da sociedade. O empoderamento pessoal e coletivo de grupos subalternos já demandam dos poderes estabelecidos senão respostas, pelo menos justificativas mais convincentes para embasar a violência da dominação.