“No mês de março a Naturantins, órgão de meio ambiente do Estado do Tocantins, publicou em diário oficial notificação à Comunidade Quilombola Margens do Rio Novo, Rio Preto e Riachão no município de Mateiros-TO, a fim de dar ciência da suspensão do CAR da comunidade e conferir prazo de 45 dias para que apresentem documentos de propriedade da terra, sob pena de cancelamento da sua inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A justificativa apresentada pela Naturantins é de que há sobreposição entre os mapas da Comunidade e o de um particular, sendo que o particular havia apresentado “documentação comprovando a propriedade da área”.
Tal procedimento adotado pela Naturantins é flagrantemente ilegal, como também viola frontalmente o art. 68 do ADCT da Constituição Federal, pelas seguintes razões:
DESNECESSIDADE DE IMISSÃO DE TÍTULO DE PROPRIEDADE PARA INSCRIÇÃO NO CAR POR COMUNIDADES QUILOMBOLAS: DIREITO TERRITORIAL QUILOMBOLA É REALIDADE PRÉ-EXISTENTE. IMISSÃO DO TÍTULO DE PROPRIEDADE É ATO MERAMENTE DECLARATÓRIO.
- Conforme recente julgamento do STF na ADI 3239 e Nota Técnica do Ministério Público Federal, fundada no Parecer Território Quilombolas e Constituição de Daniel Sarmento, o art. 68 do ADCT é suficientemente denso para permitir sua aplicação imediata, fazendo com que a própria Constituição Federal, desde 1988, já tenha afetado as terras ocupadas por comunidades quilombolas, transferindo sua propriedade definitiva e coletiva imediatamente. Deste modo, o ato de reconhecimento de seus territórios pelo INCRA, é meramente declaratório de realidade pré-existente, conforme também reconhece a Convenção 169 da OIT. Lembre-se que o STF não aplicou o marco temporal de 05 de outubro de 1988, considerando a relação de ancestralidade com a terra para que haja tal afetação da propriedade em prol das comunidades quilombolas, independentemente se estivessem ocupando tal área quando da edição da Constituição Federal.
- Deste modo, as comunidades quilombolas podem se valer de todos os procedimentos administrativos, inclusive de instrumentos processuais como as ações possessórias para garantir seu direito ao território, mesmo antes do ato declaratório de imissão na posse e desapropriação de eventuais particulares que se encontrem ocupando a área. Assim, a inscrição no CAR por comunidades quilombolas “em processo de demarcação” e, portanto, sem o título de imissão de posse, não só é legal como plenamente constitucional, tendo em vista a natureza declaratória do ato de reconhecimento pelo INCRA.
- Ressalta-se que o STF no julgamento da ADI 4903 sobre o Código Florestal, declarou a inconstitucionalidade dos termos “demarcadas” e “tituladas” do paragrafo único do art. 3 da Lei 12.651/12, por ferir o princípio da isonomia, já que tratava diversamente situações idênticas, o que corrobora o entendimento de que o ato de titulação é natureza declaratória de situação fática já existente. As comunidades “em processo de demarcação e titulação”, inclusive, devem ter maior apoio do estado, já que mais fragilizadas. No julgado, o STF reafirma não haver distinção entre áreas já tituladas e demarcadas e em processo de demarcação, passando tais comunidades a gozar do procedimento facilitado, gratuito e com apoio técnico e jurídico do estado para fins de inscrição no CAR, conforme determina o art. 53 e seu parágrafo único.
- Deste modo, a exigência de apresentação de “documentações do imóvel atualizada, originais ou cópias autenticadas, comprovando a titularidade da área” pela comunidade quilombola, sob pena de cancelamento de seu CAR, viola frontalmente o art. 68 do ADCT e as recentes decisões do STF em sede da ADI 3239 e ADI 4903, de caráter vinculante e erga omnes, ou seja, vinculando todos os entes federativos do poder judiciário e executivo, inclusive, portando, os órgãos ambientais como a Naturantins, sujeito tal ato à proposição de Reclamação constitucional diretamente no STF.
- A comunidade quilombola Margens do Rio Novo, Rio Preto e Riachão está com processo de titulação em andamento no INCRA, cuja inscrição no Sistema do CAR se deu através de acordo firmado entre Naturantins, a Defensoria do Estado e o MP, assim como contou com apoio do Projeto Nova Cartografia Social para levantamento das coordenadas geográficas. Esta documentação é suficiente para a manutenção do referido CAR da comunidade ativo e para que produza todos os seus efeitos legais.
- Reconhecendo o entendimento da propriedade constitucional coletiva das comunidades quilombolas, o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), através da promotora de justiça da I Região Agrária do Estado, Eliane Cristina Pinto Moreira, expediu, no último dia 26 de março, recomendação à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) para que adote providências a fim de efetivar o imediato cancelamento dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR), incidentes em projetos de assentamento agroextrativistas e territórios quilombolas.
ORGÃO AMBIENTAL É INCOMPETENTE PARA DECIDIR QUESTÃO FUNDIÁRIA NO ÂMBITO DO CAR
- Primeiramente, o CAR, segundo art. 29 da Lei 12.651/12, não tem efeitos fundiários. O órgão ambiental deve verificar a veracidade da situação fática da ocupação daquela pessoa física e jurídica sobre o perímetro da área apresentado, apenas para fins de aplicar a responsabilidade ambiental sobre a manutenção de Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL). Portanto, nenhum órgão ambiental tem competência para declarar qual é a melhor posse ou decidir qual é a documentação capaz de comprovar a titularidade da área. Segundo a promotora estadual Eliane Moreira, “para enfrentar a questão fundiária, não basta o cruzamento com outras bases de dados; é preciso fazer uma varredura em toda a cadeia dominial dos imóveis para ver se os documentos de cartórios são legítimos1”. Ora, a autoridade competente para se verificar o histórico da cadeia dominial são os órgãos fundiários de terras dos Estados e da União, assim como, no âmbito jurisdicional, as varas civis e agrárias. No caso das comunidades quilombolas, o procedimento de identificação e delimitação do território no INCRA é quem cumpre tal função.
- No caso de sobreposição de mais de uma inscrição do CAR sobre a mesma área, a IN nº 02 de 2014 do Ministério do Meio ambiente determina que se declarem pendentes os cadastros sobrepostos até que haja a devida comprovação das informações e documentos apresentados no CAR (art. 46). O Cadastro só pode ser cancelado, no caso de informações falsas, omissas ou enganosas; quando não cumprido o prazo para manifestação ou por decisão administrativa ou judicial justificada (art. 51, III). Assim, verificando sobreposição de inscrições no CAR, o órgão ambiental deve declarar a pendência de ambos até que se esclareça o vínculo fático entre a pessoa física ou jurídica e o perímetro determinado, para fins de imputação da responsabilidade ambiental. Havendo documentação comprobatória em ambas as inscrições do CAR, deve o órgão ambiental suspender tais inscrições e remeter o caso ao órgão fundiário competente.
- Neste ponto, observa-se que a tentativa do CAR em separar a questão fundiária da questão ambiental, ao exigir documentação frágil para comprovação de domínio, pode incentivar o movimento de grilagem de terras, assim como a legitimação discricionária de posse e propriedade, mesmo que para fins “exclusivamente” ambientais, por órgão não competente, podendo gerar grave violação ao direito de posse e propriedade, principalmente dos mais vulneráveis, como os agricultores familiares, indígenas, povos e comunidades tradicionais, e como neste caso, das comunidades quilombolas.
- Conclui-se que é flagrantemente ilegal que a Naturantins cancele o CAR da comunidade quilombola Margens do Rio Novo, Rio Preto e Riachão no município de Mateiros-TO por falta de documentação que comprove a titularidade da área, já que é órgão incompetente para decidir a questão fundiária subjacente à área. Devendo, por presunção de dominialidade constitucional do território quilombola, manter o CAR ativo até que se finalize o procedimento de demarcação do INCRA.
MÓDULO DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS EM RESPEITO A SEUS DIREITOS ESPECÍFICOS
- Cabe ainda ressaltar que o CAR para povos e comunidades tradicionais ainda não está em operação. O Cadastro foi concebido segundo a lógica de gestão dos imóveis particulares, em que se autoriza a supressão da vegetação nativa, reservando-se apenas uma parte para proteção em APP e RL. Os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais manejam seus territórios de acordo com seu modo de vida, muitas vezes realizando plantio intercalado ou consorciado entre vegetação nativa e cultura agrícola em um manejo coletivo, mediado pela cultura de cada povo e comunidade. Deste modo, se torna impossível se delimitar, de forma estática e permanente, uma pequena área de proteção ambiental em detrimento de todo o resto.
- Foi por isso que o MMA e INCRA criaram Grupos de trabalho para pensar em um sistema específico de CAR que respeite tais formas comunitárias de manejo dos territórios e recursos naturais, assim como o conjunto de direitos internacionais e nacionais destinados a estes sujeitos de direitos coletivos. Destaca-se o dever de respeito à Convenção 169 da OIT, principalmente acerca do dever de consentimento livre, prévio e informado antes de qualquer lei ou ato administrativo ou empreendimento que afete o direito destes povos.
- Este módulo estava em discussão nos GTs e entre os membros do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, devendo estar em operação a partir deste mês de abril. Portanto, ainda está em construção normativas no âmbito federal, para que o CAR se adeque à realidade dos Povos e comunidades tradicionais e povos quilombolas, inclusive acerca do entendimento quanto aos documentos necessários de dominialidade para os fins do Cadastro.
- O módulo de povos e comunidades tradicionais deve gerar um novo prazo e um novo procedimento a ser regulamentado por resoluções do MMA, e a ser observado pelas OEMAs e demais órgãos competentes para o devido reconhecimento dos direitos dos povos e comunidades tracionais e quilombolas. Deste modo, está vedado aos órgãos ambientais realizar quaisquer atos que atinjam a esfera jurídica destes sujeitos coletivos de direitos, que contam com normas internacionais e nacionais específicas tanto no que tange ao direito material, como regras processuais que devem ser observadas por toda administração, e ainda em vias de regulamentação para fins do CAR.
Destacamos, por fim que, tanto a Naturantins, outros órgãos ambientais, quanto o próprio Serviço Florestal Brasileiro – autarquia federal competente pela gestão e execução do SICAR – tem criado obstáculos para o reconhecimento de comunidades tradicionais e quilombolas no sistema de cadastro e regularização ambiental. O racismo ambiental aqui evidenciado será denunciado e combatido em todas as instâncias e âmbitos cabíveis em um Estado Democrático de Direito. Reiteramos ainda, que o pragmatismo do cumprimento das metas de proteção ambiental no Brasil não pode se dar através de uma política de exclusão dos direitos dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e comunidades quilombolas, em desrespeito às decisões da Suprema Corte e em grave violação aos direitos humanos e constitucionais garantidos.”
GRUPO CARTA DE BELÉM
LARISSA AMBROSANO PACKER | PEDRO SÉRGIO VIEIRA MARTINS |
OAB nº 07730090 | OAB/PA 17.976 |
CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO | ANDRÉ DALLAGNOL |
Professor Titular de Direito da PUCPR | OAB/PR 54633 |
KATYA REGINA ISAGUIRRE | FERNANDO PRIOSTE |
Professora de Direito Ambiental da UFPR | OAB/PR 53530 |
OAB/PR 23.818 |
1 O cadastro ambiental rural: a nova face da grilagem na Amazônia. Disponível em: https://www.abrampa.org.br/site/?ct=noticia&id=230
Madalena Cardoso, quilombola. Foto: Marcelo Prest