“As escolas reproduzem parte desse mesmo discurso, limitando-se ao papel do Estado assistencial e tutelar e dissociando a realidade dos índios dos modelos de exploração econômica predadores. O que não se fala de jeito nenhum é sobre os massacres, as demandas, as bandeiras de luta e a miséria que acometem os quase 900 mil indígenas brasileiros”.
No Vermelho
Neste dia 19 de abril, lembro-me dos desfiles cívicos que meu colégio realizava nas ruas do católico Bairro de Fátima, em Fortaleza. Sempre ia fantasiado de índio, figura referenciada como elemento étnico fundamental à formação do Brasil. O índio se constituiu no discurso oficial e na formação da nacionalidade brasileira como objeto de um romantismo reificado no mito da formação do caráter nacional a partir da convivência das três raças, ainda que conflituosa. Para essa interpretação nacionalista, tiveram importante contribuição ideológica Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, estrelas do culturalismo conservador impulsionado por uma USP acometida com o revés de São Paulo na Revolução de 1932.
86 anos depois, as escolas reproduzem parte desse mesmo discurso, limitando-se ao papel do Estado assistencial e tutelar e dissociando a realidade dos índios dos modelos de exploração econômica predadores. O que não se fala de jeito nenhum é sobre os massacres, as demandas, as bandeiras de luta e a miséria que acometem os quase 900 mil indígenas brasileiros.
De modo geral, a sociedade brasileira, bastante influenciada pelas instituições do Estado (escolas, universidades e poder legislativo) e pelos meios de comunicação, ignora ou instrumentaliza as lutas étnicas pela autodeterminação, as aspirações dessas minorias para o reconhecimento cultural e a formação de identidades comunitárias. Além disso, o preconceito se materializa na mercantilização da cultura e sua redução a alguns itens do consumo turístico, assim como a celebração da diferença meramente estética e a invisibilidade do conflito fundamental.
Em suma, o discurso do nacionalismo cívico escamoteia realidades humanas complexas e diversas que não admitem juízos rígidos ou mal informados, daí a importância de fazer leituras variadas e mais orientadas para a problematização da realidade desses povos. Quando tratamos de um universo de 305 etnias e 274 línguas não podemos nos reduzir a aspectos meramente imateriais ou de políticas públicas. A importante demanda por essas políticas (agricultura sustentável, saúde e educação diferenciadas, acesso a benefícios sociais, etc.), se referencia em um aspecto básico: a demarcação das terras. E nesse aspecto, os interesses econômicos privados ditam as regras, inclusive nos meios mais aparentemente ligados aos chamados “interesses nacionais”.
Dentre todas as falácias que já procuraram justificar posicionamentos políticos indefensáveis, nenhuma será mais superficial e mal-intencionada do que a que vem sendo ventilada pelos porta-vozes do latifúndio e da parcela mais predadora do agronegócio e de alguns comandantes militares – com o estarrecedor e até agora inexplicado apoio daquele que foi um dos líderes de maior visibilidade da esquerda brasileira, ex-presidente interino da República, Aldo Rebelo –, dando conta de que o prosseguimento das demarcações de terras indígenas dentro do presente marco constitucional representaria uma ameaça potencial à soberania nacional. Os ruralistas não estão sós nessa cruzada de preocupações inexequíveis com aldeias krahôssecessionistas, com uma Confederação dos Tamoios do Século XXI, separatista e respaldada pelo US Marine Corps.
Grosso modo, o raciocínio tortuoso desse grupo de interesses fundamenta-se no falso temor de que, ao cumprir integralmente o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 (CF-88), que assegura maior autonomia às comunidades indígenas e critérios mais justos para a delimitação de seus domínios históricos, o Estado brasileiro estaria de alguma forma submetendo-se ao risco de estimular-lhes sentimentos independentistas. Por isso, melhor não as contemplar com a merecida e singela parcela de um território que já lhes pertenceu na totalidade.
Trata-se de uma projeção das mais estapafúrdias: o próprio texto constitucional determina que, se as terras são indígenas, a propriedade legal segue em mãos da União. Isto sim: se a União quiser lançar mão delas, prepare-se que a peleja é brava, há freios e garantias; recordai Belo Monte. O que é relevante, em prol da objetividade do discurso e para fugirmos a suspenses desnecessários, é proclamar desde já que a lei é clara, que o artigo 231 tem todos os requisitos de uma cláusula pétrea constitucional e que a resposta é não, as terras indígenas não atentam nem podem vir a atentar contra a soberania nacional. Havia muitas raposas jurídicas entre os constituintes de 1988 para que se permitisse um descuido tão elementar. O Estado brasileiro impõe aos seus indígenas, mesmo nas terras indígenas mais remotas, a lei brasileira, bastando respeitar-se, em alguns casos mais graves, um devido processo jurídico-legislativo, algo mais elaborado e ritualístico. E se o Estado impõe sua lei, ou pode impô-la a qualquer momento, então necessariamente é soberano.
O Supremo Tribunal Federal também tem responsabilidades. A mais alta corte do país é concessiva de inúmeras medidas liminares que entravam o processo demarcatório de terras indígenas, mesmo nos termos da CF-88. A lentidão de tais processos no STF reforça a estratégia de “judicialização” das demarcações de terras indígenas, justificativa confortável do Estado para a negação do direito à terra. Além disso, operam o poder Executivo e Legislativo, através da tramitação da PEC 215/00, que transfere o poder de demarcação para o Congresso Nacional, de maioria ruralista. Em âmbito administrativo, o Executivo publicou a Portaria nº 80/2017, que institui o Grupo Técnico Especializado (GTE), no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania que, entre outras atribuições, tem o poder de decidir pela declaração ou não dos limites da terra indígena ou alterar sua demarcação, bem como de desaprovação do processo de identificação. Também atacam em outras frentes, como na instalação da CPI da Funai e Incra.
O tema da demarcação desafia as mobilizações, organizações e demandas indígenas à luta pelo reconhecimento, que historicamente tem duas grandes dimensões: camponesa (demandas por empréstimos agrícolas, melhoria de infraestrutura etc.) e étnica (respeito pela identidade cultural, educação bilíngue intercultural e discriminação legal positiva, entre outras).
Esse é o cenário de luta. E diante dessa realidade ocorrerá a 15ª edição do Acampamento Terra Livre 2018, a maior mobilização indígena do país, nos dias 23 a 27 de abril. Entre atos políticos e marchas, haverá debates sobre diversos temas como a demarcação de terras, a criminalização dos movimentos indígenas, as iniciativas legislativas anti-indígenas e a precarização de serviços básicos como educação e saúde. O mote deste ano é: “Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena – Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos”.
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*Gustavo Guerreiro é indigenista especializado e pesquisador do Observatórios das Nacionalidades.
ATL 2015. Márcio Kaingang e a Constituição de 1988, até hoje (e cada vez mais) desrespeitada. Foto: Fábio Nascimento /MNI