O 25 de Abril, os médicos e a saúde dos portugueses

Temos algo raro no mundo: os nossos médicos sabem gerir um SNS, porque foram eles que o construíram quando não havia quadros para tal.

Por Raquel Varela*, no Público

A ampliação dos cuidados de saúde no fim do Estado Novo – que decorre da urbanização, da guerra colonial e da emigração – foi realizada segundo um sistema dual: previdenciário e assistencialista. O primeiro destinado às camadas da população com mais rendimentos ou força de trabalho de difícil substituição, o segundo um sistema assistencial para camadas pobres da população – a larga maioria. Sistema pobre para pobres, mediano para medianos. E que nunca alcançou lograr o pleno desenvolvimento possível – nunca foi um sistema rico para ricos, porque justamente não tinha escala, até à revolução dos cravos.

Um sistema de excelência – que chegou a colocar Portugal entre os 15 melhores sistema de saúde do mundo – só vai ser possível com a criação de um sistema planificado, centralizado e unificado à escala nacional após revolução de 1974 e 1975 – o Serviço Nacional de Saúde, institucionalizado em 1979. Fomos todos SNS.

Se em Inglaterra serão os enfermeiros, com a sua experiência na II Guerra, que vão ser uma das forças propulsoras do National Health Service, em Portugal este papel é centralmente realizado pelos médicos em 1974-1975 e nos anos seguintes. Anatematizados durante tantos anos como corporação, foram eles na verdade que fizeram pressão para existir uma carreira médica, desde o início dos anos 60. Carreira médica que só era possível num SNS que servisse todo o país, o que a revolução tornou possível. Com a revolução há uma transferência de rendimento do capital para o trabalho, segundo dados oficiais, de 18% – a maior de sempre da nossa história –, esse ganho é sobretudo em salário social, ou seja, em serviços públicos. O interesse corporativo dos médicos lutarem por si próprios era na verdade só possível de ser realizado pelo interesse da nação em ter um sistema de saúde universal e gratuito, lutando por todos. Por isso têm sido os médicos, e outros profissionais de saúde, os que mais resistem à sua mercantilização. Mais do que os utentes.

Este papel dos médicos é ainda mais importante porque na ausência de quadros técnicos, pelo caos a que tinha chegado o país na ditadura, são eles que vão assumir a gestão dos cuidados de saúde. A este respeito cito o testemunho de Coimbra de Matos: “Foi no dia 2 ou 3 de Maio, pelas 9/10 horas. Eu estava no Hospital Júlio de Matos. O João dos Santos apareceu lá com o carro cheio de cravos vermelhos e o convite ‘vamos ocupar o Instituto de Assistência Psiquiátrico’ (órgão central de coordenação e administração dos serviços psiquiátricos, num 2.º andar da Rua Pinheiro Chagas). Fomos até lá uns 20 ou 30. O director tinha saído. O sub-director pôs uma primeira condição para ser substituído: tinha de assinar os cheques. Respondi-lhe – ‘mas na minha presença’ (entretanto tinha sido eleito, nas escadas e de braço no ar, para tal função). Pôs uma segunda questão: precisava de uma ordem da Junta de Salvação Nacional. Fomos lá. Falei com um major. Perguntou-me se era pelo povo, disse que sim. Trouxe um papel escrito à mão. À saída falei para a TV. E assim acabou a tomada do IAP.”

Muitos vêem neste testemunho um exemplo do caos da revolução. Omitindo que caos era o que existia antes. Em 1974, a mortalidade infantil era quase quatro vezes maior que a da Suécia; a mortalidade materna era o dobro da França, por doenças infecciosas era 30% superior à de Itália. O sangue era “pago”, “vendia-se”.

A 16 de Maio de 1974 é criado o Ministério dos Assuntos Sociais, que junta o antigo Ministério da Saúde e a pasta da Segurança Social. O médico António Galhordas, membro da comissão de elaboração do relatório sobre as carreiras médicas, é chamado para desempenhar funções de secretário de Estado da Saúde (até Julho de 1974). O segundo passo para centralizar os serviços de cuidados de saúde numa única estrutura é dado em Novembro de 1974 com a passagem dos serviços médico-sociais para a alçada da Secretaria de Estado da Saúde. Era então secretário de Estado da Saúde Carlos Cruz de Oliveira. São também desse período as primeiras acções para trazer para o Estado o controlo de instituições particulares como as Misericórdias. Em entrevista que me deu antes de morrer, o antigo secretário de Estado da Saúde, Cruz de Oliveira, relatou-me: “Eu tinha a ideia de que havia uma medicina estatizada e uma medicina particular; a estatizada, o Estado tratava dela; a particular, eles faziam o que queriam, mas não vamos lá misturar estas coisas! Quem quer particular vai, mas depois não venham cá pedir ao Estado. Nacionalizei quando estava no Governo os hospitais todos das Misericórdias (a maioria da Igreja), por decreto, com a ideia de juntar companhias de seguros, hospitais conde não sei o quê, centros de saúde, num único sistema.”

Ninguém nega a complexidade da gestão da saúde e os novos desafios que se colocam como a híper urbanização, o envelhecimento da população, etc. Mas não se pode correr riscos de naturalizar problemas sociais e políticos. Hoje os custos são mais altos mas a produtividade média do trabalho é quase cinco vezes superior à que existia há 40 anos atrás. Temos mais custos, temos mais problemas mas temos muito mais capacidade para os resolver. Não estamos só perante novos problemas constantes intermináveis, como afirmou Marcelo Rebelo de Sousa. A maioria dos problemas do SNS estão identificados, as soluções são conhecidas, há meios e (ainda) há conhecimento para os resolver.

Menos de metade dos médicos portugueses trabalhavam há dois anos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) – são formados muito mais médicos pelo SNS do que aqueles que ficam a trabalhar nele. Há um aumento das horas de trabalho acima do aumento de profissionais, sobretudo na fase pós Memorando de Entendimento, ou seja, faz-se mais pagando menos. O cenário hoje antevê uma escassez dramática de força de trabalho – que já existe e vai piorar se não se investir rapidamente naquilo que de mais importante um país tem e que é o centro da prestação de serviços públicos, cuidar de quem os assegura. O pacto do Estado Social era a universalização de serviços públicos mediante impostos progressivos, não era transformar dívida privada em dívida pública. Não somos todos Centeno.

Sem se mudar duas questões chave nenhum pacto para a saúde vai evitar a sua degradação – elas são a gestão democrática e a exclusividade com salários dignos, com o fim dos hospitais EPE/SA. Precisamos de um serviço público unificado, nacional, gratuito que não entre em concorrência consigo próprio. Temos, além disso (ainda temos, não por muitos mais anos), algo raro em todo o mundo, afirmo-o sem sombra de dúvida – os nossos médicos sabem gerir um SNS, isto porque foram eles que o construíram quando não havia quadros para tal. Este é o país onde mais médicos escrevem sobre a gestão da sua profissão e dos seus serviços – desejaria eu que outros sectores tivessem este saber-fazer (talvez os quadros mais velhos do ensino). E isso é magnífico.

Esse saber adquirido quando no calor da revolução foram chamados a tratar doentes, mas também a criar e gerir serviços de saúde, em alguns casos do nada, como foi o Serviço Médico à Periferia, e antes as campanhas de saneamento. Ninguém está em condições de provar que uma gestão profissionalizada hierárquica é superior em matéria de eficiência em relação à gestão médica democrática. É simplesmente impossível gerir com eficácia força de trabalho nos serviços, que lida com pessoas a tratar de pessoas, sem introduzir mecanismos de decisão e responsabilização colectivos. Doentes não são automóveis numa linha de montagem. E actos médicos não são montar peças protocoladas. Gerir equipas colectivas com trabalho altamente criativo sem respeito pelas opiniões e decisões dos que exercem esse trabalho é um erro crasso porque vai ter como consequência burn out, absentismo, desrealização e todo o rol de doenças do trabalho. São relações sociais e laborais, equipas, sensibilidades de direcção que se adquirem em anos de experiência, que o melhor gestor sozinho do mundo não substitui. É necessário devolver a palavra (e a responsabilidade) aos que trabalham.

*Historiadora; coordenadora do Grupo de História Global do Trabalho – Universidade Nova de Lisboa

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