“O museu é o tipo de intervenção que podia provar a legitimidade das comunidades e lutar contra a criminalização e discriminação que elas sofrem.” – Museólogo Mario Chagas
por Gitanjali Patel, em RioOnWatch
O primeiro museu em favela foi o Museu da Limpeza Urbana construído no Caju, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 1996. Desde então pelo menos dez outros museus foram criados em favelas em toda a cidade. Em cada caso, houve um reconhecimento da necessidade de preservar a história local e as memórias da comunidade para abordar a sua falta de representação nacionalmente.
Em 2006 nasceu o Museu da Maré através de uma iniciativa da comunidade chamada Rede de Memória, que começou a registrar a história do complexo de favelas coletando fotos, vídeos, recortes de jornais e histórias orais de dentro e de fora da comunidade. Este museu abriu o caminho para outras comunidades seguirem o seu exemplo. Assim como a Maré, favelas como Horto e Rocinha já possuíam iniciativas de memória. No Horto, por exemplo, a Escola Capistrano de Abreu iniciou o projeto ‘Memórias Brincantes ou Histórias Saltimbancos’ em 2000, onde os alunos entrevistavam os seus avós sobre os brinquedos com que brincavam. O sucesso deste empreendimento incentivou seus líderes a ampliar o projeto. Cacos de Memória é uma coletânea de entrevistas com membros de toda a comunidade, sobre uma ampla variedade de tópicos incluindo a história da comunidade, os problemas enfrentados pela comunidade, e histórias pessoais das famílias.
A ideia de reestruturar estas iniciativas populares para se tornarem museus foi introduzida pelo museólogo Mario Chagas que, durante o fim dos anos noventa, familiarizou-se com a Rede de Memória na Maré e propôs a ideia de transformá-la em um museu. Apesar do trabalho de Mario com a museologia social estar baseado principalmente no Brasil, ele viajou à França em 2001 com o objetivo específico de aprender como aplicar o conceito francês do ecomuseu às iniciativas de museus no Brasil. Ele afirma que “O museu é o tipo de intervenção que podia provar a legitimidade das comunidades e lutar contra a criminalização e discriminação que elas sofrem”. Favelas como Manguinhos, Cerro-Corá, Cantagalo, e Pavão-Pavãozinho criaram seus museus baseados nos exemplos de outras comunidades.
É útil considerar a emergência dos museus das favelas à luz da observação de Walter Benjamin que afirma que “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Isto não quer dizer que a história é somente articulada em resposta a uma ameaça, mas que estes momentos de lembrança súbita ameaçam desaparecer se não os reconhecermos no presente.
Para a maioria dos museus, ‘agarrar’ a oportunidade para documentar histórias soa verdadeiro. Para alguns deles, o “momento de um perigo” ao qual Benjamin se refere não é apenas figurativo. O museu mais recente, o Museu das Remoções, foi fundado para registrar o processo da remoção da Vila Autódromo na Zona Oeste do Rio e o movimento de resistência que permitiu que vinte famílias permanecessem, e por fim para ser usado em apoio aos esforços de mobilização de favelas que venha a enfrentar ameaças de remoções no futuro. A comunidade do Horto também foi ameaçada com remoção e o seu museu teve um papel fundamental nesta resistência. Usando o arquivo do museu para reformular a percepção do público sobre a comunidade bicentenária–seus moradores foram rotulados como “invasores” recentes pelo conglomerado da mídia Globo–os moradores do Horto afirmam o seu direito à terra.
A tabela abaixo enumera alguns museus comunitários no Rio de Janeiro:
Favela | Museu |
Rocinha | Museu da Rocinha-Sankofa |
Pavão, Pavãozinho, Cantagalo | Museu de Favela |
Maré | Museu da Maré |
Cerro-Corá | Memórias do Cerro-Corá |
Manguinhos | Ecomuseu de Manguinhos |
Horto | Museu do Horto |
Andaraí | Ecomuseu Amigos do Rio Joana |
Santa Marta | Ecomuseu Nega Vilma |
Vila Autódromo | Museu das Remoções |
São Bento* | Museu Vivo de São Bento |
Mangueira | Museu do Samba |
*São Bento não é uma favela mas um bairro de baixa-renda na Zona Norte do Rio de Janeiro
A criação do que é comumente considerado como uma instituição de elite, um museu, em uma favela, apresenta-se apenas como o primeiro ato de resistência. Além disso, os museus comunitários de favelas do Rio subvertem a forma tradicional do museu, a maneira como apresenta as informações, bem como o seu relacionamento com o público alvo.
Um museu sem paredes
A maioria destes museus comunitários foram inspirados pelo conceito francês de ecomuseu. Por esta visão o museu interpreta o espaço e o ambiente natural da favela como sendo rico em significado e valor. O conceito de ecomuseu lança um desafio ao museu tradicional e sua estrutura curatorial como “não necessariamente o meio ideal de capturar certa distinção local ou o espírito do lugar”, nas palavras do museólogo Peter Davis.
O Museu de Favela (MUF) é o ecomuseu do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, que usa o espaço físico destas três favelas como museu, tornando-o uma ‘instituição viva’ sem paredes e sem janelas. Esta ideia mais holística e inclusiva de fazer com que a exposição do museu seja o próprio espaço em questão, ajuda a transformar a visão que os membros da comunidade têm do seu próprio ambiente natural. O MUF, por exemplo, proporciona uma visita guiada centrada nas doze casas grafitadas que se tornaram parte da história da comunidade com suas pinturas externas.
Rita de Cássia Santos, uma das fundadoras do museu, explicou: “Não coletamos objetos. Quando eu vejo os tijolos daqui, eu sei que é meu mundo. Eles me representam. Não necessitamos construir algo que já temos”. Os museus no Horto, Rocinha, Santa Marta, Cerro-Corá, e São Bento e o Museu de Remoções usam o seu território de maneira similar como espaço para o museu.
Invertendo a hierarquia do conhecimento
Os museus comunitários se opõem aos métodos ocidentais de produção de conhecimento, desafiando a maneira pela qual a informação é convencionalmente apresentada a nós. O Museu da Maré, por exemplo, subverte os métodos ocidentais lineares de narrar a história, concebendo o tempo como uma entidade cíclica. A sua exposição permanente, inspirada por Les Calendriers (Os Calendários) de Jacques Le Goff, narra a história da Maré através de doze ‘fases’ que retratam os aspectos mais importantes da vida na Maré. Embora o Museu da Maré seja o único museu comunitário com um espaço formal e exposição permanente, ele desafia os métodos de exibição dos museus tradicionais adaptando a representação da história da favela de modo a refletir as experiências da realidade na favela. A exposição começa informando: “Se a vida se conta pelos anos, dias e horas, nos relógios e calendários, neste museu ela é contada por tempos, onde nada está acabado, tudo está em transformação”. O tempo é concebido de modo diferente na favela, simultaneamente sincrônico e diacrônico, onde os desafios diários, a violência inclusive ameaças de remoção, entre outros fatores, colocam o foco no presente, pois o futuro é incerto. Como Cláudia Rose Ribeiro da Silva, uma das diretoras do museu, afirmou no artigo ‘Museu da Maré: Memórias e Narrativas a Favor da Dignidade Social‘: “O museu não está totalmente pronto. É um museu em construção, como o complexo das comunidades da Maré, como as favelas, como a vida!”
Engajando com a comunidade
O conceito do ecomuseu como uma ‘escola’ demonstra como o espaço do museu também pode ser usado para o desenvolvimento social. O Ecomuseu de Manguinhos realiza um programa que reúne artistas, escritores e produtores que desenvolvem literatura focada em oferecer contranarrativas aos discursos oficiais. Este programa oferece residência literária aos moradores e promove debates públicos na comunidade.
O Museu Sankofa na Rocinha opera principalmente através de eventos e oficinas focadas em ensinar à comunidade a história da favela. ‘Chá de museu’, por exemplo, reúne moradores em um fórum para compartilhar as suas memórias e experiências sobre um certo tópico ou evento histórico. Durante a época da pesquisa desta autora, o Museu Sankofa promoveu um evento ao ar livre na comunidade convidando moradores a contemplar imagens antigas da favela através de uma câmera pinhole e assistir um documentário sobre a história da favela que apresentava entrevistas com os moradores. Uma moradora, Cataline, expressou a importância destes eventos na comunidade para a maneira como os moradores veem o relacionamento entre a favela e o bairro vizinho São Conrado: “O evento me mostrou como o povo da Rocinha construiu o bairro de São Conrado, e que nós estávamos aqui antes dos promotores imobiliários chegarem com seus condomínios de luxo”.
A criação dos museus comunitários de favelas proporciona então um meio de registrar histórias que são omitidas dos registros oficiais e que assim poderiam ser esquecidas. Esses museus apresentam um desafio para a instituição em sua forma original, adaptando-a às necessidades de cada comunidade específica.
As matérias finais desta série usarão três estudos de caso para demonstrar como os museus comunitários definem as histórias que os moradores querem contar para desfazer os mitos de marginalidade e, no caso do Horto e Vila Autódromo, para resistir à remoção.
Esta é a segunda matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018). Volte amanhã para a Parte 3.
Gitanjali Patel é pesquisadora e tradutora. Ela é mestre em Antropologia Social pela SOAS, Universidade de Londres. Sua pesquisa analisa a memória e a produção da história nas favelas do Rio de Janeiro.
Boa tarde,
Grata pelas contribuições. Uma questão apenas, o Museu Vivo do São Bento, ao qual vocês se referem, não seria em Duque de Caxias, Baixada Fluminense?
Abraços