por Patricia Fachin, em IHU On-Line
O “apego religioso” da esquerda ao Estado, sua “fetichização do progresso” e a “secundarização das questões ambientais”, especialmente na América Latina, demonstram que a esquerda tem “dificuldade em lidar com cenários mais complexos, como foi o caso dos atos de junho de 2013, cujo erro de análise quase era cometido mais uma vez com a greve dos caminhoneiros, onde uma parte da esquerda, dessa vez minoria, adotou o pensamento cartesiano”, avalia João Paulo do Vale de Medeiros, professor de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele frisa que a esquerda precisa saber se inserir nos cenários mais complexos, que são comuns na América Latina. No caso da greve dos caminhoneiros, exemplifica, “creio que acertadamente, tivemos que abandonar mais uma vez os manuais importados, deixando de exigir do povo tão sofrido e vítima de alienação, um purismo ideológico que nem nós temos. Ela foi, ao mesmo tempo, um grito dos oprimidos e uma estratégia do empresariado”. E acrescenta: “A greve dos caminhoneiros foi um rasgo na história política deste país. Ela conseguiu algo que sempre tentamos, que foi não apenas uma paralisação de impacto nacional duradouro, mas o apoio da população que, mesmo prejudicada, aderia ideologicamente ao paro”.
Medeiros também comenta as semelhanças e a transição do neoliberalismo para o neodesenvolvimentismo na América do Sul e frisa que os atuais modelos de Estado e democracia não nos servem mais. “O Estado que temos hoje é a continuidade de um projeto que começou a nascer na Europa no final século XV, por uma necessidade de mercado. Esse Estado, ao contrário do que se diz, não surge por uma vontade de bem comum, mas pela imposição de uma classe, a burguesa, que o dirige segundo suas vontades. (…) Somos uma esquerda viciada em Estado, que não consegue enxergar a utopia para além das estruturas burocráticas de poder. Como diz Raúl Zibechi, ‘o poder estatal é um problema grave que transforma os revolucionários em uma nova burguesia de gestores, que não são proprietários dos meios de produção, mas, a partir do poder, os administram em benefício da nação e de si mesmos’”.
João Paulo do Vale de Medeiros é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e atualmente faz doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF. É coordenador do Projeto Ser-tão de assessoria jurídica e educação popular no semiárido.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em artigo recente você menciona a transição do neoliberalismo para o neodesenvolvimentismo. Como isso se deu e que aspectos políticos e econômicos marcam essa transição?
João Paulo do Vale de Medeiros – Essa é uma reflexão que se faz da América Latina, especialmente da América do Sul. A parte da América Central, apesar de economicamente muito parecida com a parte Sul, não viveu o bloco de governos progressistas das bandas de cá. Gosto de dividir a reflexão sobre as últimas décadas em blocos, ou períodos: o dos regimes militares, do neoliberalismo e do “neodesenvolvimentismo”. Mas também é importante não perder de vista os limites dessa análise mais geral devido às especificidades de cada país, sob o risco de cair numa leitura homogênea ou linear da história. De qualquer forma, os eixos de interligação são muito fortes, e permitem essa digressão.
As mazelas sociais acumuladas nos dois primeiros períodos deram origem a grupos de esquerda combativos (movimentos sociais, partidos, sindicatos, igrejas etc.) que conseguiram/optaram canalizar suas forças também na via eleitoral, acumulando vitórias. Eis o ciclo dos governos progressistas, que se confunde com o período neodesenvolvimentista. Nosso continente carrega uma complexidade política desafiadora. As categorias sociológicas mais tradicionais, às vezes, não dão conta de explicar tudo. Esses governos progressistas, uma vez no poder, não cambiaram as bases estruturais da política econômica, mas realizaram uma mistura de Estados fortes, ideologias de esquerda ou centro-esquerda e modelo capitalista de desenvolvimento. A alta do preço das commodities deu legitimidade econômica a esse processo — viramos o celeiro do mundo. De um lado, reprimarizando a economia e consolidando o modelo de dependência e colonialidade; de outro, permitindo o investimento em políticas públicas sem, contudo, tocar nas estruturas de poder e desigualdade. Nós crescemos economicamente — ao mesmo tempo que crescia o fosso entre os mais ricos e os mais pobres.
IHU On-Line – Quais são os aspectos distintivos do neoliberalismo e do neodesenvolvimentismo?
João Paulo do Vale de Medeiros – Afirmei em outro texto: Neoliberalismo, de uma maneira geral, é quando as empresas — internacionais e nacionais — gerem a política econômica de uma nação. Não são os tanques e a tortura que impõem amarras à população — como nas ditaduras militares —, é o mercado globalizado, com uma fantasiosa aparência de liberdade, que é o responsável pelo julgo. No neodesenvolvimentismo a política econômica é bem parecida, só que com a participação do Estado, que, ao mesmo tempo, potencializa o modelo capitalista e efetua políticas públicas não estruturais com os dividendos acumulados. Como disse Lula uma vez: “no meu governo todo mundo ganha, rico e pobre”. Sem, contudo, dizer que os ricos ganharam bem mais, como exemplo os bancos, que nunca acumularam tanto lucro quanto nos governos petistas. Ou o agronegócio, escolhido como mola do desenvolvimento. Ele tinha tanta força nos governos petistas que era ao mesmo tempo oposição e situação.
Ao que me parece, o termo neodesenvolvimentismo foi cunhado para que pudéssemos nos localizar melhor temporalmente e geograficamente no que acontecia. Não seria um erro, acredito, dizer que o neodesenvolvimentismo é uma evolução do neoliberalismo, parte das mutações a que o pensamento e a política neoliberal já se permitiram em outros momentos da história. Adaptado a novas épocas e com novas estratégias, mas sem perder sua essência, algo como um neoliberalismo tropical. Por isso, acho que não seria bom situarmos neoliberalismo e neodesenvolvimentismo em campos opostos, mas como uma continuidade ou evolução diabólica.
IHU On-Line – Como o Estado atua no neoliberalismo e no neodesenvolvimentismo? Quais são os pontos de convergência da atuação do Estado nesses dois modelos?
João Paulo do Vale de Medeiros – É dito que, em uma política neoliberal, o Estado está ausente — o que sabemos que é uma grande mentira. Os capitalistas não seriam ingênuos. Nos liberalismos não existe uma repulsa religiosa ao Estado, tanto que as forças repressivas estatais são sempre bem-vindas. O que ocorre é o impedimento da interferência do Estado na livre dinâmica da sociedade de mercado; é uma organização e estruturação seletiva do Estado. Ele aparece em pontos estratégicos para a manutenção do modelo, como nas forças repressivas e na salvaguarda das empresas por meio dos bancos públicos.
Parece-me que no neodesenvolvimentismo — ou neoliberalismo tropical — essa atuação estratégica ganha novos contornos, já que o Estado é mais presente, ele atua também para impulsionar a economia capitalista, seja através de participação econômica em empresas privadas ou no seu financiamento por meio de bancos públicos, ou ainda na regulação das taxas de juro. Os neoliberais perceberam que melhor que um Estado inimigo e ausente, é um próximo e amigo. Se a esquerda, antes das conquistas eleitorais, era a principal inimiga do capital, uma vez no poder ela optou por sua parceria no modelo de desenvolvimento. Em resumo: ruim é a interferência estatal anticapitalista. Um Estado forte, mas que use sua estrutura em benefício das grandes empresas, é sempre bem-vindo.
IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, os governos progressistas apostaram no neodesenvolvimentismo na América Latina?
João Paulo do Vale de Medeiros – Somos muito apegados à ideia de progresso e modernidade, que seriam etapas fundamentais na emancipação que um dia viria. Uma romantização de uma suposta evolução linear da história, que nega, inclusive, a própria dialética. Muita gente acredita que o problema central não é o modelo, mas quem o dirige. Basta apenas trocar o motorista que tudo caminhará bem. É o que lembra Immanuel Wallerstein: “a adesão marxista ao modelo evolucionário do progresso tem sido uma enorme armadilha, da qual os socialistas só começaram a desconfiar recentemente, como um elemento da crise ideológica que é parte da crise estrutural global da economia mundial capitalista”.
Quando a esquerda chega ao poder, vê como possibilidade forte de crescimento econômico o modelo extrativista e de exportação de commodities. E como isso não seria contra a sua agenda de progresso, adota-os como eixos econômicos. Os governos oferecem ao mercado algo que não lhes pertence — a natureza —, e o mercado oferece as tecnologias e o dinheiro. Está feito o acordo.
IHU On-Line – Quais são as consequências positivas e negativas dessa aposta no neodesenvolvimentismo?
João Paulo do Vale de Medeiros – Quando você me pergunta coisas positivas, interpreto que está fazendo relação com o período anterior, não é isso? Eu não preciso repetir aqui as conquistas sociais dos governos petistas, que são muitas e inegáveis. Os governos que optaram por esse modelo conseguiram vários avanços comparados aos períodos anteriores, de redução da pobreza a políticas de inclusão. Como afirmei, esse rearranjo do neoliberalismo permitiu que o Estado efetuasse políticas públicas inclusivas. O problema é quando a reflexão começa e acaba aí. Existem coisas antes e depois que não podem ser deixadas de lado. É muito contraditório não haver, em geral, uma reflexão sobre os limites dessa aposta no neodesenvolvimentismo. A aposta da inclusão desses países na geopolítica internacional através do mercado de commodities e da emancipação das pessoas através do consumo provocou feridas graves, seja na destruição dos territórios e da natureza ou nas subjetividades. A aposta neoliberal — ou neodesenvolvimentista — nos torna também sujeitos neoliberais, onde tudo é permitido mercantilizar, de nossos corpos, sonhos e mentes às fontes de água e aos ventos.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades da esquerda latino-americana em considerar as questões ambientais em seus projetos de desenvolvimento? Ainda nesse sentido, haveria uma alternativa à esquerda em contraposição a essa aposta no desenvolvimentismo que faz uso dos recursos naturais, ou não há saída? Se sim, o que seria um modelo adequado à esquerda?
João Paulo do Vale de Medeiros – Considerar as questões ambientais é, necessariamente, mudar o modelo de desenvolvimento. É totalmente incompatível o modelo neodesenvolvimentista e extrativista com a preservação da natureza e dos povos da natureza. Ora, esse modelo depende da espoliação dos recursos naturais para a geração de capital e ampliação de seus lucros. É inadmissível que tanta gente de esquerda se diga defensora de obras como Belo Monte.
É claro que há saída. Não podemos nos render aos fatalismos que dizem que as coisas só podem ser assim. Isso é o que os poderosos querem que acreditemos. Mas o modelo não está dado — ainda bem, ele deve estar em permanente construção. Este é um dos problemas: achar que existe um único modelo fixo no espaço e no tempo. Existem, porém, premissas centrais: uma delas é romper com o capital, ou permaneceremos nessa insistente contradição de espoliar os pobres para poder conceder-lhes algo; abandono do modelo extrativista — já passou do tempo de percebermos que a luta dos/as oprimidos/as é a luta da natureza; construção a partir de baixo e da pluralidade, horizontalizando os processos e trocando a luta por poder pela luta por um outro mundo possível e necessário.
IHU On-Line – Você declarou recentemente que o modelo de Estado moderno não serve mais. O que seria um modelo de Estado para os dias de hoje, especialmente considerando o caso do Brasil?
João Paulo do Vale de Medeiros – O modelo de Estado e o modelo de democracia não nos servem mais. O Estado que temos hoje é a continuidade de um projeto que começou a nascer na Europa no final século X, por uma necessidade de mercado. Esse Estado, ao contrário do que se diz, não surge por uma vontade de bem comum, mas pela imposição de uma classe, a burguesa, que o dirige segundo suas vontades. E aí vem essa mesma burguesia e diz que democracia é a possibilidade de votar. E consolidamos a democracia de baixa intensidade, como diz Boaventura, onde praticamente só essa mesma burguesia ocupa os cargos de Estado.
Mas também é fato que os/as oprimidos/as passaram a lutar pelo seu controle, conseguindo importantes vitórias e mudanças. Sem, contudo, alterar sua lógica centralizada e vertical. Um dos primeiros desafios para a construção de um outro modelo de Estado é a sua dessacralização. Somos uma esquerda viciada em Estado, que não consegue enxergar a utopia para além das estruturas burocráticas de poder. Como diz Raúl Zibechi, “o poder estatal é um problema grave que transforma os revolucionários em uma nova burguesia de gestores, que não são proprietários dos meios de produção, mas, a partir do poder, os administram em benefício da nação e de si mesmos”. O Estado, na trilha da síndrome do pensamento monocultural, quando único pilar de um projeto de uma nova sociedade, dirigido por um grupo que se considera vanguarda e tenta impor sua leitura de governo popular, será sempre homogeneizador e uma gaiola de aprisionar liberdades.
Esse Estado que queremos, que poderá ser antropófago, pegando o que tem de bom do passado, mas sempre em construção, deve necessariamente reconhecer e ser construído a partir da diversidade de sujeitos coletivos que vivenciam seus territórios. Deverá ser necessariamente anticapitalista, construído desde baixo, com profundo e cotidiano processo de participação direta e não homogeneizante, respeitando, inclusive, quando os sujeitos optam por não dialogarem com o Estado.
IHU On-Line – Hoje são feitas muitas análises sobre a situação da esquerda no país. Como você avalia a crise da esquerda? Diria que se trata de um projeto esgotado ou não? Que propostas a esquerda ainda tem para oferecer num país como o Brasil?
João Paulo do Vale de Medeiros – Tudo está em crise, a humanidade, a civilização está em crise. A ideia é que essa crise, inclusive da esquerda, dê origem a algo bom. Mas é importante também se reconhecer enquanto em crise, que é um pouco mais complicado. De qualquer forma, acho que temos que falar de esquerdas, porque elas são diversas, apesar de existir o pensamento de esquerda hegemônico, cuja figura central é o lulismo. Não acredito que as coisas se esgotam, elas se transformam. Vão para um lado, ou vão para outro. Aquilo que estávamos conversando, apego religioso ao Estado, fetichização do progresso, secundarização das questões ambientais, já não há mais sentido ser assim, não cabe mais no horizonte utópico.
Existe uma dificuldade nossa em lidar com cenários mais complexos, como foi o caso dos atos de junho de 2013, cujo erro de análise quase era cometido mais uma vez com a greve dos caminhoneiros, onde uma parte da esquerda, dessa vez minoria, adotou o pensamento cartesiano. É importante entender e saber se inserir nos cenários mais complexos, tão comuns na América Latina. Até hoje a esquerda Europeia ainda balança com a inserção do fenômeno da religiosidade nas lutas políticas. No caso da greve dos caminhoneiros, creio que acertadamente, tivemos que abandonar mais uma vez os manuais importados, deixando de exigir do povo tão sofrido e vítima de alienação, um purismo ideológico que nem nós temos. Ela foi, ao mesmo tempo, um grito dos oprimidos e uma estratégia do empresariado.
Na verdade, acho que a greve dos caminhoneiros foi um rasgo na história política deste país. Ela conseguiu algo que sempre tentamos, que foi não apenas uma paralisação de impacto nacional duradouro, mas o apoio da população que, mesmo prejudicada, aderia ideologicamente ao paro. O povo está em tempos de revolta, o nosso desafio enquanto esquerda é a canalização, é a disputa de consciências. A direita faz isso todo dia e o dia todo: televisão, jornal, igreja, universidade. Não dá para se eximir e achar que todo mundo que apoia Bolsonaro é golpista; na verdade o pensamento fascista se impõe justamente nos momentos de medo e insatisfação. Recuar é abrir mão do povo. Sem ele, qual nossa razão de lutar?
Acredito que temos que voltar a ter raiva do capitalismo, raiva mesmo, sabe? Essa raiva se transforma em indignação e depois em rebeldia. Acho que o que pode ajudar é se aproximar cada vez mais das periferias, rurais e urbanas. E essa aproximação não pode ser somente em reuniões ou ações políticas, mas no dia a dia, sentindo, junto com o povo, as suas dores. É preciso estar territorializado na pobreza para que o alicerce revolucionário seja o chão dos subalternos e não as estruturas de poder.
IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, o semiárido tem reaparecido como uma nova fronteira do capital e como esse ambiente tem sido explorado?
João Paulo do Vale de Medeiros – O semiárido aparece na história do Brasil como colônia da colônia. Já que o litoral era território exclusivo da cana-de-açúcar, o interior, o sertão, foi sendo ocupado pela pecuária, cujo objetivo era fornecer carne, leite, couro e animais de carga à economia açucareira. Ou seja, enquanto o litoral existia para satisfazer o exterior, o sertão era reinventado para dar sustento ao litoral. Não era tida como atividade econômica principal, mas era essencial para o bom andar da exploração colonial. Dessa marcha para o interior resultou o genocídio dos índios do sertão em razão da disputa por água e terra. Sempre foi assim, o sertão foi escolhido na geopolítica para ser uma das zonas de sacrifício, inclusive zonas nômades, como é o caso dos retirantes, corpos em movimento em razão da indústria da seca.
Porém, especialmente na última década, o semiárido deixa de ser, aos olhos do capital, espaço de sofrimento (mas também de muita vida e resistência para o povo do sertão) e vira local da modernidade. A tecnologia tem permitido a exploração do território sertanejo por meio da privatização dos territórios e a espoliação dos seus recursos naturais. Posso citar três exemplos: a fruticultura irrigada, seja por águas superficiais ou poços profundos (de até mais de um quilômetro de profundidade) tem secado lençóis freáticos, expulsado pequenos agricultores e envenenado o solo; a energia eólica tem privatizado os territórios e desterritorializado comunidades; e a monocultura de energia solar tem reconfigurado e impactado espaços da agricultura sertaneja. Isso fora as mineradoras e as tentativas de instalação de usina nuclear etc.
IHU On-Line – Como, a partir dos povos tradicionais, é possível pensar em um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil?
João Paulo do Vale de Medeiros – Existe aquele discurso entre desenvolvimento ou alternativas ao desenvolvimento. Mas, fora o jogo semântico, o que estamos falando é de um novo modelo de sociedade. Não sei se teria um modelo pronto, mas acredito em princípios de uma nova sociedade. Não dá para dizer que existe um modelo matemático, mas podemos afirmar que existem princípios que são eixos e estão bem presentes em diversos povos tradicionais, como solidariedade, comunitarismo, autonomia, cuidado, afeto, respeito com a natureza, não apaixonamento pelo poder e dinheiro, e, mesmo não chamando assim, anticapitalismo. Lembrando que povos tradicionais não são apenas os indígenas e os quilombolas, mas também ribeirinhos, pescadores, ciganos, catingueiros…
IHU On-Line – Hoje há uma aposta em movimentos autonomistas. Quais são as vantagens desse tipo de movimento e que papel eles podem desempenhar na cena política hoje?
João Paulo do Vale de Medeiros – Quem aposta? Infelizmente pouca gente. Os movimentos autonomistas questionam o modelo exterior, amplo de política, mas também as próprias relações estruturais de esquerda. Ainda somos apegados a figuras de grandes líderes, que guiarão as massas, cujo papel é apenas seguir. É um patriarcalismo político. Os autonomistas questionam isso, e também a sacralização do Estado, como conversamos há pouco.
De qualquer forma, não acredito que tudo deva virar autonomista, mas me parece que as velhas estruturas merecem ser reformadas e democratizadas. Isso não pede o fim dos partidos e sindicatos, mas talvez a sua atualização a partir de novos desejos políticos. O autonomista tem uma vantagem, que é a impaciência — que não pode ser confundida com falta de paciência histórica. A impaciência autonomista é a coragem de mudar coisas sem esperar a tomada do poder, é o já ir fazendo, ou uma nova história já em construção. A ideia de mudar o mundo sem tomar o poder. Não esperar.
IHU On-Line – Que cenários vislumbra em relação às eleições deste ano?
João Paulo do Vale de Medeiros – Nesses tempos, qualquer análise para mais de um mês à frente tende a ser muito frágil. Acho que existem duas coisas. A instabilidade política não nos dá a certeza de que teremos eleições, ou pelo menos eleições democráticas. É uma nova modalidade de golpe, não mais depondo, mas usando as estruturas legais do Estado. Acho que se Lula fosse de fato concorrer, dificilmente haveria eleições. A outra coisa é que pode haver eleições, mas apenas com os candidatos que a direita permite. A questão é que não devemos esperar para ver. Parece-me que a cada dia cresce a insatisfação. Confesso que estou esperançoso, tanto com a reação que a esquerda está esboçando nos últimos tempos, mas principalmente com o que vem das pessoas que não são ligadas a movimentos sociaisou partidos. Acho que a greve dos caminhoneiros nos ensinou, o povo não se adivinha.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
João Paulo do Vale de Medeiros – Agradecer pela conversa. Acredito que é isso, que as ideias voltem a ser perigosas, e que estejamos sempre incomodado/as. O Povo está incomodado, muito. Vivemos um momento de convulsão, de rebeldia, cabe à gente funcionar como chama — e não como quem apaga clarões. Como diz Frei Betto, “deixemos o pessimismo para dias melhores”.